Origens Da Introdução Da Colhedora Mecânica De Cana Em São Paulo: Alguns Indícios Históricos(1)

            O momento atual da economia canavieira no Brasil e em São Paulo tem sido de crescimento e de transformações impulsionados pela recuperação de preços e rentabilidade setoriais. Uma das principais mudanças ocorre na colheita da cana, com a substituição do corte manual pelo mecânico.
            Esse fenômeno é comprovado seja pelo aumento da área de cana colhida mecanicamente, seja pela instalação de montadoras no Brasil. Além da tradicional empresa estabelecida em Ribeirão Preto, a Santal, nestes últimos anos observamos a vinda da Austoft, da Austrália, em associação com capital nacional - depois adquirida pela Case -, e a entrada forte em nosso mercado de máquinas da marca Cameco.
            Em São Paulo, a área colhida mecanicamente em 2000 já era de aproximadamente 420 mil hectares e, no Paraná, próximos a 30 mil, em 2001. Como a soma dessas áreas praticamente ultrapassa a área total cultivada com cana na Austrália, um dos países que compõem o grupo dos maiores exportadores de açúcar no mundo, percebe-se a grandeza do fenômeno e a originalidade dos problemas que estão sendo enfrentados e, por consequência, pode-se intuir a dimensão de seus impactos no sistema de produção, no emprego, etc.
            Para se chegar a esse tamanho, todavia, há uma longa história traduzida pelo acúmulo de experiências, pelos ajustes feitos, sucessos e fracassos obtidos, assim como pela descontinudade no processo. Este texto tem como objetivo contribuir para o conhecimento de como esse processo se iniciou no passado.

Relato das primeiras experiências de mecanização do corte em São Paulo

            Embora se costume localizar o início da colheita totalmente mecanizada em São Paulo por volta de 1972-1973, quando entraram em operação comercial as máquinas colhedoras do tipo chopper (RIPOLÍ, 1981 e ZANCA, 1980), as primeiras experiências em campo ocorreram logo depois do final da II Grande Guerra, nos anos 1950, com a importação dos Estados Unidos de máquinas do tipo cortadeiras de cana inteira.
            Uma primeira experiência foi realizada pela Usina Monte Alegre, em Piracicaba (SP), que importou uma máquina cortadeira da Lousiana (EUA), conforme relato de CARDOSO (1952). Esta máquina, montada sobre um trator de 36 HP na barra de tração, possuía um motor auxiliar de 20 HP para ajudar a propulsionar o equipamento. Foram feitos cortes em cana-planta e em duas socas, abrangendo cerca de 29 variedades, com quatro delas (C421, Co 331, CP 34-120 e CP 29-291) apresentando melhores condições para o corte mecânico, por serem resistentes ao transporte por correias e mais uniformes em altura, neste caso reduzindo as perdas no corte apical. Nenhuma delas, porém, obteve o melhor corte, atribuído à variedade CP 29-320, que era pouco atraente por ser suscetível ao carvão. O melhor desempenho, em termos de quantidade colhida por hora, foi conseguido pelo corte da Co 421, com 220 toneladas por alqueire e rendimento de 45 toneladas por hectare, quando queimada.
            O experimento detectou problemas nas canas de primeiro corte plantadas em sulcos, que, quando cortadas, deixavam tocos. Estes, se não fossem nivelados ao solo, enfraqueceriam a rebrota, prejudicando a exploração econômica do ciclo completo. Outro problema detectado foi a dificuldade em executar o serviço em terrenos acidentados. Apesar do tom otimista do texto de CARDOSO (1952), as dificuldades técnicas seguramente não sobrepujaram as vantagens em cortar manualmente, até porque a usina em pauta não havia começado ainda a mecanizar o carregamento, o que demonstrava a baixa capacitação de seus recursos humanos e inadequação do seu processo produtivo ao novo padrão.
            Uma segunda experiência malograda, mas com desdobramentos futuros, foi realizada pela Société de Sucreries Bresiliennes, também de Piracicaba (SP), na usina de mesmo nome, que importou equipamento dos EUA, mais ou menos na mesma época (MOURAS, 1957, ver foto). Embora tivesse mostrado aptidão para cortar uma parcela ponderável de cana da usina, várias dificuldades se verificaram na prática. Entre estas havia o fato de deixar as canas cortadas no solo, fazendo com que fossem carregadas com alta quantidade de raízes, folhas e terra, causando problemas no seu processamento industrial. Por outro lado, a utilização dessa máquina permitiu detectar algumas necessidades locais mais imediatas, como as de ter equipamento capaz de operar em terrenos com fortes declividades e de cortar canas deitadas e entrelaçadas nas touceiras, além da necessidade evidente de poder enviar uma cana mais limpa para a usina.
            Devido a isso e por iniciativa dessa empresa, construiu-se então a primeira colhedora automotriz do Brasil, patenteada pela Société Sucreries e que, segundo MOURAS (1957), esteve em operação na safra 1956/57. Essa máquina, montada num chassis de caminhão e utilizando um motor nacional Diesel Mercedes-Benz de 105 HP, pode ser considerada inovadora em pelo menos dois de seus aspectos: no sistema de levantamento de cana – feito por tubos de aço e correias, localizado na frente e numa posição inclinada, o que permitia reunir os colmos de uma touceira e cortá-los – e no sistema composto de um receptáculo que armazenava a cana cortada, transportada em seguida por um mecanismo elevador para um caminhão postado ao lado e caminhando em paralelo à colhedora.
            KALIL (1960) descreveu essa mesma máquina, denominada 'Colhedora Piracicaba', sem atribuir sua concepção à Sucreries, mas referindo-se à empresa Motocana SA como sua construtora2 . Esta se diferenciava da anterior pelo motor de 90 HP, de fabricação espanhola, e pelo menor peso, de 6 t, contra 6,5 t daquela descrita por MOURAS (1957), tendo as mesmas inovações nos sistemas de corte e de transporte dos colmos.
            A colhedora Piracicaba esteve em funcionamento nas áreas da Usina São Francisco do Quilombo, cortando as variedades Co 421, CB 36.14, CB 40.19, Co 421 e CB 40.77, apresentando os melhores resultados para as três primeiras. Esta máquina tinha, supostamente, condições de cortar de 120 a 150 t em dez horas de trabalho.
            KALIL (1960) fez provavelmente a primeira comparação de custos manual x mecânico para o corte e carregamento que se encontra publicada em São Paulo. O cálculo, considerando o número de horas de uso entre 200 e 1.200 horas anuais, permitiu verificar que o uso econômico mínimo era de 300 horas anuais, o que dava uma área mínima de 77,5 ha ao rendimento da época. Sua vantagem em relação ao custo do corte manual + carregamento, estimado em CR$ 65,00 (em cruzeiros de 1959), foi 15% menor para 400 horas de utilização, e 42% menor para 1.200 horas de utilização.
            Aparentemente, a superioridade dos custos não chegou a superar as deficiências técnicas de desperdício de canas não-cortadas pela máquina e deixadas no campo, assim como pelas quebras sistemáticas dos componentes como engrenagens, caixa de câmbio e coroa de diferencial, que eram peças de caminhão aproveitadas na construção do sistema mecânico. Estas razões, juntamente com a farta disponibilidade de mão-de-obra e as amplas deficiências na reposição de peças e na assistência técnica para manutenção e, vale repetir, um processo de mecanização em geral ainda incipiente nos anos 1950, acabaram impedindo o desenvolvimento tecnológico nessa área e sua difusão mais ampla. Esta só seria retomada nos anos 1970 com a introdução da colhedora tipo chopper, fabricada pela Santal SA, de Ribeirão Preto (ZANCA, 1980), e de colhedora fabricada pela Dedini, em associação com a australiana TOFT Bros Co (DEDINI-TOFT, 1979).

Conclusão

            Podemos situar a razão do insucesso da colheita mecanizada naquela época em vários fatores: grande oferta e consequente baixos custos da força de trabalho, altos custos dos investimentos envolvidos na mecanização, inadequação técnica face às características da cana cultivada em São Paulo e sua baixa eficiência em solos acidentados. Consideram-se ainda a baixa capacitação técnica disponível para as operações de campo, falhas na reposição de peças e ineficiências na assistência técnica, além dos efeitos na redução da extração da sacarose, na indústria.
            Esses fatores foram sendo, ao longo do tempo, superados, possibilitando assim a maior difusão desse processo, que foi acelerado atualmente pela maior rentabilidade que os produtos da agroindústria têm conseguido.

Bibliografia

CARDOSO, E. A motomecanização dos canaviais paulistas. Rio de Janeiro: Brasil Açucareiro, ano 20, v.39, fevereiro, n°2, 1952, p.67-69.

KALIL, E.B. Estudo econômico e agrícola de colhedora de cana-de-açúcar na região de Piracicaba. Anais do 1° Simpósio Nacional de Tratorização da Cultura Canavieira. Piracicaba(SP): ESALQ/USP, maio, 1960, p.29-35.

MOURAS, M.M. Mechanical cane harvester developed in Brazil. Sugar Journal, november, 1957, p.14, 16 e 40.

RÍPOLI, T.C. Considerações sobre colheita mecânica da cana-de-açúcar. São Paulo: Revista de Mecanização Rural, v.1, n°4, 1981, p.31-35.

ZANCA, O. The evolution of mechanized sugar cane harvesting in Brazil. International Sugar Journal, 82(973):7-10, 1980.
 

1 Este texto está baseado em parte do capítulo 4 da dissertação de mestrado do autor, intitulada “Mecanização da Colheita da Cana-de-Açúcar: uma fronteira de modernização tecnológica da lavoura”.
2 Em conversa telefônica com Elias Bechara Kalil, em fevereiro de 1998, não foi possível esclarecer a dúvida sobre a origem da Colhedora Piracicaba, embora se possa supor que se esteja tratando da mesma máquina e que a Motocana tenha participado de sua construção e reformulações desde o início, sendo abandonado pela Sucreries por dificuldades financeiras, cujo projeto foi depois conduzido pela Motocana.
 

Data de Publicação: 05/02/2002

Autor(es): Alceu De Arruda Veiga Filho Consulte outros textos deste autor