Qualidade de café

            Pela sua importância, esse tema foi amplamente discutido no 'I Simpósio Internacional de Qualidade de Café', organizado recentemente pelo Instituto Agronômico (IAC), em Campinas (SP), com presença de diferentes especialistas. O mencionado simpósio não foi apenas mais um dos tantos eventos que se realiza sobre café, mas, sim, uma oportunidade excelente para se debater com seriedade os vários aspectos ligados à qualidade. Estão de parabéns, pois, os seus organizadores.
            Como debatedor que fui do referido encontro, desejo compartilhar algumas preocupações em relação ao tema qualidade. Antes, porém, gostaria de chamar a atenção para o fato de que o Brasil foi grandemente beneficiado pelas pesquisas feitas com café já em décadas passadas, em instituições científicas como o próprio IAC e o Instituto Biológico, ambos da Secretaria de Agricultura e Abastecimento (SAA), bem como a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ/USP).
            Utilizando-se do jargão técnico de relação custo/benefício, as taxas internas de retorno, correspondentes aos investimentos feitos nas pesquisas com café, foram estimadas pelo Instituto de Economia Agrícola (IEA) entre 18% e 27%, em função de diferentes elasticidades de demanda consideradas.
            Quem entende de análise de projetos sabe o quanto são fantásticas essas taxas! Basta compará-las com a média dos rendimentos dos projetos de investimento no Brasil, no período do 'boom' econômico (início da década de 70), que foi de 15%. Para citar apenas um dos benefícios do café, ele foi por muitos anos o principal produto de exportação brasileiro e, assim, decisivo no processo de industrialização, sobretudo do Estado de São Paulo, fornecendo as cambiais necessárias à importação de máquinas e equipamentos.
            Mas, voltando ao assunto deste artigo, gostaria de fazer três considerações relacionadas com a qualidade de café, dentre as várias abordagens que o tema pode suscitar. Primeiro, do ponto de vista econômico, será que vale a pena produzir cafés especiais? Segundo, qual o tamanho desse mercado? E, terceiro, a relatividade desse conceito.
            Quanto ao primeiro ponto, mencione-se o fato de existir produtores (poucos, felizmente) que, além de argumentar que não compensa produzir café de melhor qualidade, afirmam, sem o menor constrangimento, que são 'especializados' em produzir café de baixa qualidade.
            Em contrapartida, os que optam por produzir cafés especiais, muitas vezes baseiam tal decisão tão-somente em um sobrepreço que conseguiriam sobre esses cafés de melhor qualidade, sem se levar em conta, outros aspectos relacionados com a sua economicidade.
            Embora essa questão da racionalidade econômica tenha preocupado alguns técnicos e analistas do setor, as decisões a respeito não são assim tão simples. Há que se levar em conta uma série de variáveis, tais como a percentagem do café que não recebe melhor remuneração, resíduos que sobraram, cuidados maiores na colheita, etc., etc.
            Um ponto decisivo é comparar a rentabilidade obtida com os gastos adicionais na produção desses cafés especiais com a rentabilidade alternativa que se poderia obter, por exemplo, em aplicações financeiras pré-fixadas. Para ficar mais claro, imaginem a situação de um produtor de café convencional, cuja taxa interna de retorno de seu empreendimento seja, por exemplo, de 9% (valor fictício, apenas para fins de raciocínio). Suponham que ele resolva produzir cafés especiais e que pelos seus cálculos esse novo empreendimento lhe proporcione uma taxa menor do que 9%. Contrariamente ao que possa parecer à primeira vista, não se pode descartar esse projeto tão-somente pelo fato de ter se encontrado menor valor do que o do projeto convencional. Isto porque, tecnicamente, o correto é tomar a taxa de retorno do chamado investimento incremental (que são os gastos adicionais do projeto para produção de cafés especiais) e compará-la com a rentabilidade já pré-estabelecida a que teria acesso o empresário se esses recursos fossem para uma aplicação financeira alternativa.
            Pela lógica econômica, essa taxa de retorno do investimento incremental poderia ser até menor do que a taxa de retorno do projeto convencional, mas nunca inferior à rentabilidade que se obteria numa aplicação financeira a que o produtor poderia ter acesso. Está em andamento no IEA uma pesquisa enfocando esse aspecto, utilizando-se um modelo do Banco Mundial1, desenhado especificamente para estudos dessa natureza
            Uma segunda questão que gostaria de comentar refere-se ao tamanho e crescimento do mercado de cafés especiais. Na análise desse mercado, chama atenção a falta de consistência dos dados tanto sobre o seu tamanho quanto sobre o seu crescimento. Quanto ao primeiro ponto, há números completamente diferentes sobre o assunto, apesar de idôneas as fontes de informações. O seu consumo, por exemplo, poderia corresponder a um volume de 4% ou 12% do consumo mundial de café, estimado em mais de 110 milhões de sacas pela Organização Internacional do Café (OIC)2. Algo de equivocado pode estar ocorrendo a esse respeito, pois não se pode ter uma diferença tão grande referenciando um mercado ainda tão pequeno, que é o caso dos cafés especiais. Aparentemente, são da Specialty Coffee Association of America (SCAA)3 os dados de maior credibilidade sobre esse setor. Segundo a entidade, o consumo mundial em 2002 teria sido da ordem de 5,0 a 5,5 milhões de sacas, das quais os Estados Unidos responderiam por mais de 3,5 milhões de sacas.
            Preocupa igualmente ao analista a taxa de crescimento do mercado. Num painel realizado ainda recentemente em São Paulo (o II Encontro de Cafés Especiais), coloquei essa questão nos debates, mas os participantes ficaram sem resposta, a despeito de sua importância para o setor, sobretudo para a produção para fins de planejamento estratégico.
            Para a SCAA, esse crescimento seria de 2% nos EUA, mas tem sido publicado taxas de até 20% ao ano, o que levaria a um volume de mais de 40% desse mercado em 2010, aparentemente exagerado, mesmo naquele país, por uma questão de renda individual. Por outro lado, a própria SCAA acredita que em 2010 os cafés especiais poderiam representar 30% do consumo naquele mercado, o que, entretanto, só seria condizente com uma taxa de crescimento anual de 10%, e não de 2% como divulgado.
            Enfim, seria bom que essas duas questões fossem esclarecidas, para dar mais transparência ao mercado, o que possibilitaria um posicionamento mais racional aos segmentos envolvidos. Isso preocupa não só ao Brasil, mas também a todos os produtores de cafés especiais, como, por exemplo, os sete países do Leste Africano, que esperam aumentar em 35% sua produção de cafés especiais nos próximos anos.
            Finalmente, é preciso chamar atenção para um ponto de suma importância, ou seja, a relatividade do conceito de qualidade de café. O café rio zona, por exemplo, pode ser considerado um gourmet para consumidores do Oriente Médio. Ainda recentemente um publicitário, informalmente, me definiu qualidade simplesmente como 'satisfação do consumidor'. Evidentemente que não se pode concordar com a visão reducionista desse profissional, mesmo porque se sabe que 'qualidade' pode até ser uma criação ou subproduto de um marketing bem feito, sem qualquer ou com pouca relação com os atributos intrínsecos e/ou incorporados do próprio produto.
            Se se retirasse, do consumo total de 110 milhões de sacas, 5,0 a 5,5 milhões de sacas de cafés especiais e mais ainda o equivalente entre 13 a 15 milhões de sacas de café verde na forma de solúvel, sobraria cerca de 90 milhões de sacas, que é volume representativo do consumo de massa de café na forma convencional (coador, filtros,expresso, etc.).
            Embora os cafés especiais continuem representando um nicho que deve ser explorado com a mesma competência observada até então, e cujas ações deveriam merecer o apoio de todos os segmentos, inclusive do Governo, por representar um excelente e barato instrumento de marketing da qualidade de nosso café, não se pode esquecer que o interesse econômico mais imediato do País no mercado de café verde deve estar centrado nesse mercado de 90 milhões de sacas.
            Melhorando a imagem do produto brasileiro lá fora, certamente os especiais ajudarão a vender mais café nesse grande mercado. O fato de a elasticidade preço da demanda do café brasileiro ser maior do que a dos países centro-americanos e da Colômbia significa que, para continuar sendo competitivo no mercado de café, o Brasil precisa estar sempre atento à questão de preços, o que implica também estar preocupado com a redução de custos. Tudo isso sem se descuidar da qualidade, inclusive no mercado de consumo de massa.

Banco Mundial:www.bird.org
2OIC: www.ico.org
3 SCAA: www.scaa.org

Data de Publicação: 22/12/2003

Autor(es): Luiz Moricochi (moricochi@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor