Formalizando a Origem: as indicações geográficas no Brasil

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            Nas últimas décadas, novos atributos de qualidade vêm sendo incorporados a produtos de origem agropecuária. Pode-se observar parâmetros de qualidade de preservação ambiental e preocupação social, como os produtos orgânicos e do comercio solidário, assim como a valorização da tradição e origem da produção. Um exemplo que se destaca quanto à diferenciação é o das Indicações Geográficas (IGs), que buscam valorizar a qualidade de um produto associada à reputação de uma certa característica, fruto da interação do homem com seu território.

             As tentativas informais de associar a qualidade à origem de alimentos e as iniciativas de regulamentá-la remontam à antiguidade. Mas a definição moderna de produtos e serviços de origem integra território e saber fazer. As IGs são iniciativas formais de reconhecimento da qualidade, fruto de um processo histórico de organização e construção social de regras para definir e controlar direitos de propriedade intelectual.

            Num dos protocolos da Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1994 em Marrakesh, há um acordo sobre os direitos de propriedade intelectual relativos ao comércio, o Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS), que reconhece a legitimidade da proteção de IGs2. Na definição oficial, 'entende-se por indicação geográfica uma indicação que serve para identificar um produto como sendo originário do território de um [país] membro, de uma região ou localidade deste território, no caso em que uma qualidade, reputação ou outra característica determinada do produto possa ser atribuída essencialmente a esta origem geográfica'3.

            A Europa foi quem primeiro associou as marcas coletivas a características de atributos de qualidade que diferenciam o produto, regulamentam a produção e agregam valor à marca. Portugal foi pioneiro na formalização da origem. Em 1756, o Marquês de Pombal fundou a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, com o objetivo de assegurar e proteger a qualidade do Vinho do Porto. Esta foi a primeira demarcação vinícola, considerada precursora das IGs, que significou uma ampla regulação econômica com aplicação da fitogeografia e a intervenção de organismos públicos para regê-la.

            A França, que é internacionalmente reconhecida pela qualidade de produtos associados à origem, comemorou em 2005 o centenário da primeira lei que instaurou as bases do conceito de origem, e os 70 anos de criação das 'Apellations d’Origine Controlées' (AOC), ou as Denominações de Origem Controlada (DOC). A tradição francesa baseia-se no conceito de terroir, um termo que considera não só a localização geográfica dos produtos, mas é definido como uma composição única entre solos, clima e planta, além do savoir faire do produtor.
 
 

            Em 1927, foi delimitada a área vinícola de Champagne, o que trouxe diversos condicionantes para a produção. Foi autorizado o cultivo de três cepas de uvas: pinot noir, chardonnay e pinot mernier. Além disso, as normas passaram a limitar a produção por hectare e definir o sistema de poda, altura, espaçamento e densidade dos pés de uva. As regras para produção de Champagne foram a base para as DOCs. Os critérios de seleção das DOCs, uma forma de valorização legitimada pelo Estado, foram instituídos na França a partir de um decreto de 1935 e associam a raridade e a excelência de um produto a uma base territorial4.

            A União Europeia dispõe hoje de três sistemas para promover e proteger as designações de produtos de qualidade, que são mais brandas que a rigorosa legislação francesa5. As Denominações de Origem Protegida (DOPs) são denominações de produtos cujo reconhecimento requer que todas as fases de produção, transformação e elaboração tenham lugar numa área geográfica determinada, com um saber fazer constatado e reconhecido.

            As Indicações Geográficas Protegidas (IGPs) designam os produtos estreitamente ligados a uma zona geográfica dentro da qual se dá pelo menos um estágio de produção, transformação ou elaboração.

            Já as Especialidades Tradicionais Garantidas (ETGs) destacam a composição tradicional de um produto, ou seu modo tradicional de produção. A legislação europeia, que tem validade em todos os países-membros, tem forte influência das regras de proteção francesas.

            No entanto, as tentativas formais de valorizar a qualidade associada à origem são muito recentes no Brasil, que é signatário da Convenção da União de Paris (CUP), do Acordo de Madrid sobre Indicações de Origem. As regras de proteção intelectual de IGs no país têm pouco mais de uma década.

            A Lei 9.279/96 estabelece no Brasil duas modalidades de Indicações Geográficas: a Indicação de Procedência (IP) e a Denominação de Origem (DO). A IP considera o nome geográfico de um país, cidade da região ou da localidade do seu território, que tenha se tornado reconhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou prestação de serviço. Na DO, o nome geográfico designa produto ou serviço cujas características ou qualidades se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos aí os fatores naturais e humanos.

            Algumas regiões brasileiras, apresentadas a seguir, têm conseguido se promover por meio da produção e certificação de produtos típicos, de locais específicos, com características peculiares reconhecidas pelas IPs. Até o momento, ainda não foram designadas DOs para nenhum produto, serviço ou região do país.

            A primeira IP foi concedida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) em 2002 para a Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos (APROVALE) para os vinhos tintos, brancos e espumantes do Vale dos Vinhedos, que congrega parte dos municípios gaúchos de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul.
 


 

            Além de melhorias na qualidade do produto, o processo de construção social trouxe modificações tanto na organização como na gestão do espaço público e privado da região. Construiu-se um sentido coletivo antes inexistente, que possibilitou a cooperação entre as vinícolas. Além disso, foram introduzidas inovações de produto com investimentos na qualidade da uva; de processo, com o aprimoramento do manejo dos parreirais, redução da carga produtiva e adoção de tecnologias modernas para a vinificação e engarrafamento; e de distribuição, com a busca de novos mercados, tanto internos quanto externos.


   

            As tentativas formais de IGs para valorizar a qualidade associada à origem dos cafezais são ainda muito recentes, não só no Brasil como também no mundo. A primeira IG formal para o café brasileiro foi concedida ao Conselho das Associações dos Cafeicultores do Cerrado (CACCER) em junho de 2005. O CACCER obteve o reconhecimento oficial da IP da denominação Região do Cerrado Mineiro, que se caracteriza por áreas de altiplano, com altitude de 820m a 1.100m, clima ameno sujeito à geada de baixa intensidade e com possibilidade de produção de bebida fina, de corpo mais acentuado.

            A IP avançou nesta região não só graças à alta qualidade do café lá produzido, mas também pela união e complementaridade de esforços e pelo forte poder de organização de seus cafeicultores. A IP foi concedida a uma região que não pode ser considerada tradicional na cultura, uma vez que a ocupação cafeeira no cerrado, iniciada em meados dos anos 1970, está entre as mais recentes no país.

            A primeira IP brasileira para produtos de origem animal, mais especificamente produtos cárneos, foi a terceira concedida no país. Em 2006, a Associação dos Produtores de Carne do Pampa Gaúcho da Campanha Meridional (APROPAMPA) obteve formalmente a IP mista, para carne bovina e seus derivados, provenientes desta região.

            A carne lá produzida tem como diferencial, além do bioma Pampa Gaúcho, o tipo de gado que é criado, as técnicas de criação e os cortes dos animais, o que lhe confere o         reconhecimento de seu sabor e qualidade especiais. Os criadores e frigoríficos reconhecidos estão distribuídos em dez municípios. Os padrões de qualidade estabelecidos para obtenção do selo buscam mesclar tradição e inovação, uma vez que exigem maiores cuidados com o abate dos animais e com a preservação do meio ambiente.

            Em 2007 a Associação dos Produtores e Amigos da Cachaça Artesanal de Paraty (APACAP) obteve a quarta IP brasileira, para a sua aguardente tipo cachaça e aguardente composta azulada. Os nomes 'cachaça', 'Brasil' e 'cachaça do Brazil' foram as primeiras IGs do país para esse destilado de cana-de-açúcar genuinamente brasileiro, segundo o Decreto Presidencial 4.062/01. A terceira IP para bebidas foi concedida à 'cachaça de Paraty'.

            A cidade do Estado do Rio de Janeiro é um dos polos mais antigos de produção de aguardente no país. Foi o principal produtor no Brasil Colônia, cuja qualidade ajudou a transformar a designação parati em sinônimo de boa cachaça. Desde o período colonial, na Corte e em Portugal todos costumavam saborear uma dose de parati. O termo, que inicialmente designava a aguardente proveniente da cidade, acabou, por extensão, sendo usado para denominar toda cachaça. Como na música 'Camisa Listrada', imortalizada por Carmen Miranda, que Assis Valente compôs em 1937: 'Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí. Em vez de tomar chá com torrada ele bebeu parati...'

            A APACAP conseguiu comprovar que a bebida é uma das atrações turísticas da cidade, mesmo que a cana-de-açúcar não seja plantada lá. A bebida é elaborada em alambiques tradicionais de cobre e obedece a padrões próprios e superiores aos determinados pela legislação, como o estabelecimento de regras rígidas de respeito ao meio ambiente e às leis trabalhistas.

            Em 2009, duas novas IPs foram concedidas pelo INPI. Em maio foi homologada a quinta do país e a terceira do Estado do Rio Grande do Sul: o Couro Acabado do Vale do Sinos, obtida pela Associação das Indústrias de Curtumes do Rio Grande do Sul (AICSul). O selo é concedido ao couro acabado na região delimitada, que envolve 43 municípios, independente da origem da matéria-prima. Servirá para várias finalidades, como a fabricação de acessórios, vestuário, estofamentos etc. É a primeira IP concedida para produtos não alimentares e a segunda para produtos de origem animal. Além de valorizar a história, a tecnologia e os sistemas de gestão adotados pelas empresas, foram definidas especificações técnicas para cada tipo de acabamento. 

            A sexta IP foi concedida em junho para as Uvas de Mesa e Mangas do Vale do Submédio São Francisco, por meio do Conselho da União das Associações e Cooperativas de Produtores de Uvas de Mesa e Mangas do Vale do Submédio São Francisco (UNIVALE). Esta é a primeira IP concedida tanto para dois Estados – Bahia e Pernambuco –, quanto para a região nordeste. A área delimita 70 municípios, mas a fruticultura irrigada está presente em apenas 10. As frutas precisam ter padrão para exportação e enquanto o regulamento de uso não é estabelecido, o Programa Integrado de Frutas (PIF) é considerado o requisito mínimo.

            Apesar dos esforços que vêm sendo empreendidos para valorizar a qualidade associada à origem dos produtos agropecuários, ainda resta muito a ser feito, sobretudo na organização e mobilização dos atores sociais nos territórios6. Também são escassos os instrumentos para fortalecer políticas em diferentes esferas, seja nacional, regional e municipal. Eles servem para apoiar os valores culturais e tradições locais que promovam o avanço das IGs não só como mecanismo de diferenciação e agregação de valor, mas também de desenvolvimento territorial.
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1Artigo elaborado como parte do "Projeto CAPES/COFECUB 624/09".

2CHADDAD, F. R. Denominações de origem controlada: uma alternativa de adição de valor no agribusiness. 1996. 106 f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Economia, Administração de Empresas e Ciências Contábeis, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.

3Institut National des Appellations d’Origine – INAO. Le goût de l’origine. Paris: HACHETTE/INAO, 2005.

4GARCIA-PARPET, M. - F. Le marché de l’excellence: le classement des grands crus à l’épreuve de la mondialisation. Dossier Espaces de l’activité économique, Genèses, n. 56, p. 72-96, Sept. 2004.

5WATANABE, K. Typical product, an alternative for rural development. In: INTERNATIONAL PENSA CONFERENCE ON AGRI-FOOD CHAINS/NETWORK ECONOMICS AND MANAGEMENT, 5., 2005, Ribeirão Preto (SP). Anais... Ribeirão Preto: USP/FEA/PENSA, jul. 2005. 12 p.

6SOUZA, M. C. M. Cafés sustentáveis e denominação de origem: a certificação de qualidade na diferenciação de cafés orgânicos, sombreados e solidários. 2006. 177 f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

Palavras-chave: indicações geográficas, indicações de procedência, Brasil.


Data de Publicação: 30/09/2009

Autor(es): Maria Celia Martins De Souza (mcmsouza@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor