Governo e Estado: um esclarecimento

            Muitas análises sobre políticas públicas podem, às vezes, trazer em seu bojo o descuido do (s) autor (es) com relação à precisão dos conceitos de Estado e de Governo. Os autores, em suas considerações e análises, tratam indiferentemente Estado e Governo como se ambos fossem conceitos equivalentes ou similares.
            Este equívoco, muito freqüente em textos de análise e pesquisas sobre políticas públicas para os mais variados setores, desvaloriza sobremaneira a força do seu conteúdo. E isso porque, ao não distinguir os conceitos, se acaba atribuindo a responsabilidade por uma ação ou omissão político/administrativa a um governo que se situa fora do periodo em que ocupou o poder executivo.
            Ainda que esse tipo de equívoco dificilmente possa trazer prejuízos econômicos ou sociais, eventuais críticas estariam defasadas no tempo ou colocadas em tempos errados. O mais estranho é que a diferença é relativamente fácil de ser estabelecida, ainda que hajam inúmeras concepções teóricas de Estado.
            Vamos dar dois exemplos fictícios, mas que tenham respaldo na realidade. Um autor, ao dar tratamento correto a uma análise, diria que 'as constantes intervenções estatais, na forma das políticas agrícolas que ocorreram a partir da segunda metade dos anos 1960, imprimiram um rumo à modernização da agricultura brasileira'.
            Já outro autor um pouco descuidado daria tratamento inadequado aos conceitos, ao se confrontarem dois trechos de um mesmo texto, ou seja: '... já que muito do que ocorreu no passado foi feito no âmbito de um acordo do Estado com grupos de interesse de um grande complexo industrial, sem a sua participação as reformas seriam inviabilizadas' . Em outro trecho, diria o seguinte: 'no regime que vigorou nas ultimas décadas, a atuação do Governo na formulação das políticas continha forte poder discricionário, gerando efeitos não-esperados em alguns setores, segmentos do mercado e grupos da sociedade'.
            Notem que este autor teria utilizado corretamente o conceito de Estado no primeiro trecho, mas em seguida o confundiria com Governo. Ao se referir a décadas, não poderia utilizar o termo governo, embora pudesse utilizá-lo no plural – governos.
            Uma discussão sobre o conceito de Estado pode ser conduzida num nível de elevada complexidade, uma vez que pode envolver aspectos ideológicos e de visão de mundo. O nosso objetivo, porém, é tão-somente ressaltar aspectos básicos sobre o conceito de Estado, visando esclarecer as diferenças existentes, embora a maioria dos que escrevem sobre políticas públicas certamente tem noção da diferença conceitual existente entre Estado e Governo. Ocorre, entretanto, que no momento de analisar ou escrever um texto a esquecem completamente.
            O lapso mais comum encontrado em textos é confundir Estado com o Poder Executivo. A maioria dos autores esquece que o Estado na realidade é composto pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, dos quais os municípios têm apenas os dois primeiros.
            Um Estado 'democrático' é uma relação de poder entre as diversas forças políticas da sociedade, que se expressam através dos partidos políticos. Essas forças políticas, por meio de eleições periódicas, assumem o Poder nos três níveis da Federação e procuram implantar os seus programas de governo. Para tanto, dispõem de aparelhos de Estado que são os mais diversos órgãos públicos/estatais. Esses órgãos estão localizados e/ou têm atribuições que abrangem os níveis federal, estadual e municipal.
            Deve ressaltar-se que dificilmente um partido político ocupa o poder de Estado em todas as localidades do país. O mais comum é a instância federal e algumas unidades da Federação e municípios serem governados por determinado partido, que se tornou dominante enquanto as/os demais o são por outros partidos.
            Todos os partidos, estejam ou não no Poder, ocupam diferentes parcelas do poder de Estado, ou pelo menos se relacionam com o mesmo. Os representantes dos partidos, quando eleitos, fazem parte de governos e utilizam seus aparelhos e o pessoal do Estado, mas não são nem podem ser confundidos com o Estado.
            Buscamos em alguns autores pensamentos que podem dar uma idéia do caráter do Estado. BRESSER PEREIRA (1977)1 considera, por exemplo, que 'O Estado é uma estrutura de dominação, é um poder estruturado e organizado, que permite à classe economicamente dominante tornar-se também politicamente dominante e assim garantir para si a apropriação do excedente'. Para POULANTZAS (1974)2, ' O Estado não é uma entidade que possui uma essência instrumental intrínseca: ela é em si mesma uma relação, mais precisamente a condensação material de uma relação de classe'.
            De acordo com HIRSCH (1977)3, '...o Estado em função de sua forma específica e dos modos de funcionamento burocráticos internos que daí decorrem, se apresenta concretamente como um sistema profundamente escalonado, de filtros, de barreiras e de instâncias de transformação e de tratamento das exigências e de articulação de necessidades...'. Já HELLER (1968)4 afirma que '...o poder de Estado pode ser atribuído a uma cooperação na qual se distinguem três grupos não estáticos e dinamicamente mutáveis que são: o núcleo do poder do Estado, os que o apoiam e os participantes negativos que a ele se opõem'; e considera a compreensão desse fato importante para que se evite o erro de confundir o Estado com o Governo e poder de Estado com poder de Governo.
            Diante desses esclarecimentos, deve evitar-se a afirmação, por exemplo, de que '... o governo federal durante determinada década promoveu tal política para determinado setor da economia'. Esta constitui um sério equívoco pois é obvio que, em se tratando de um regime democrático, decorreram no mínimo dois governos e, portanto, caracteriza uma ação do Estado.
            Daí a importância de se ter clara a noção de Governo, aparelho de Estado e de Estado. Autores pouco rigorosos consideram que qualquer proposta ou ação de um determinado governo, em qualquer um dos três possíveis níveis da atuação, em uma época específica, equivale a uma ação do Estado. Não têm consciência de que as políticas são sempre produzidas por um grupo político que, através de um partido ou de aliança de partidos, assume o poder político. E esse assumir pode estar limitado ao Poder Executivo, se não tiver maioria de votos na Câmara dos Deputados e no Senado, no nível federal; na Assembléia Legislativa, no estadual; e na Câmara dos Vereadores, no municipal.
            Ignoram ainda que na democracia é sempre um partido ou grupo de partidos, ou seja, é sempre uma parte da sociedade que assume o poder político e tem a necessidade/obrigação de dialogar com as demais partes (partidos). Será desse diálogo que sairão as medidas viáveis politicamente e concretas daquele governo especifico, no período de tempo em que estiver ocupando o Poder Executivo e tiver maioria no Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal juntos) no âmbito federal.

1 BRESSER PEREIRA, Luiz C. Estado e subdesenvolvimento industrializado: esboço de um economia política periférica. São Paulo: Editora Brasiliense, 1977
2 POULANTZAS, Nicos. Las classes sociales dans le capitalisme aujourd’hui. Paris, 1974; citado por HIRSCH, Joachim. Observações teóricas sobre o Estado burguês e sua crise. In: POULANTZAS, Nicos. Coord. Estado em crise. Trad. de Maria Laura V. De castro. Rio de Janeiro: Graal, 1977(Biblioteca de Estudos Humanos - Série Política e Sociedade)
3 HIRSCH, Joachim. Observações teóricas sobre o Estado burguês e sua crise. In: POULANTZAS, Nicos. Coord. Estado em crise. Trad. de Maria Laura V. De Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1977 (Biblioteca de Estudos Humanos- Série Política e Sociedade)
4 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Trad. de Lyango G. da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968.

Data de Publicação: 13/02/2004

Autor(es): Richard Domingues Dulley Consulte outros textos deste autor