Reforma agrária no Estado de São Paulo: após duas décadas, sucesso ou fracasso?

            O programa Globo Rural1 apresentou, em 1º/2/2004, reportagem feita no assentamento rural Guarany, situado no município de Pradópolis, região de Ribeirão Preto. Resultado de uma invasão há 10 anos, em 1999 o assentamento foi regularizado e seus 270 lotes estão sob administração do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), fundação vinculada à Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania. Em 2001, com orientação técnica do ITESP, cada chefe de família, de um total de 227, fez um projeto para seu lote e recebeu R$12 mil do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Também, o ITESP disponibilizou cinco pessoas para prestar assistência técnica ao assentamento: dois agrônomos, um veterinário e dois técnicos em agropecuária.
            A resposta buscada pela reportagem foi se, com a terra, o financiamento e a assistência técnica o assentamento teve sucesso. Ainda não, foi a resposta, mostrando com exemplos que de cada quatro famílias assentadas apenas uma está alcançando seus objetivos. O que, então, poderá estar ocorrendo nos demais assentamentos rurais do estado paulista?
            Segundo o ITESP2, até fevereiro de 2002 o Estado de São Paulo possuía um total de 147 assentamentos rurais (v. Tabela 1), sendo 36 de domínio federal, representando 36% dos lotes e da área total, e 111 de domínio estadual, representando 64%. Os assentamentos se concentram (73%) na região oeste do estado, nas Regiões Administrativas (RAs) de Presidente Prudente, Araçatuba e Bauru que, juntas, reúnem 73% dos lotes e 78% da área total. Dos 50 municípios com assentamentos, 15 se localizam no extremo oeste, na região do Pontal do Paranapanema, com 63% dos assentamentos, 55% dos lotes e 60% da área total. Os assentamentos equivalem a somente 1% da área rural do estado3, porém, em certos municípios chegam a uma proporção significativa, como 48% em Euclides da Cunha Paulista e 28% em Mirante do Paranapanema (RA de Presidente Prudente), 26% em Promissão (RA de Bauru) e 23% em Iperó (RA de Sorocaba).

Tabela 1 – Assentamentos Rurais no Estado de São Paulo, 1981-2002

 

Região Administrativa

Nº de Municípios
Nº de
Assenta-
mentos
Nº de
Lotes
 

Área (ha)

Área Média do lote (ha)
% da
Área
Rural
Araçatuba
7
9
787
16.285,80
20,7
1,0
Barretos
2
3
184
3.808,59
20,7
0,5
Bauru
4
6
854
21.886,26
26,6
1,5
Campinas
6
9
312
4.511,74
14,5
0,2
Central
3
9
584
9.433,28
16,2
1,0
Franca
1
1
158
2.979,07
18,9
0,3
Presidente Prudente
15
92
5.016
119.573,76
23,8
5,6
Ribeirão Preto
3
3
360
5.383,31
15,0
0,7
São José do Rio Preto
1
1
19
309,6
16,3
0,0
São José dos Campos
1
1
97
1.290,02
13,3
0,1
Sorocaba
7
13
774
15.277,32
19,7
0,5
Estado de São Paulo
50
147
9.145
200.798,75
22,0
1,0
Fonte: Elaboração a partir de ITESP, 2004.

            Os resultados dos projetos de assentamentos rurais, aferidos pelo ITESP, não respondem diretamente se houve sucesso ou fracasso, nem explicitam os motivos. Entretanto, fornecem alguns indicadores interessantes.

Tempo de implantação - Na cronologia dos projetos de assentamentos rurais no estado paulista, o primeiro se deu em 1981, até 1994 foram assentadas cerca de 3.500 famílias, 4.000 entre 1995 e 1998, mais 1.600 entre 1999 e inícios de 2002, perfazendo cerca de 9.100 famílias num período de 21 anos. Numa ponderação, o tempo médio de assentamento das famílias era de nove anos.

Ocupação da área - Em 2002, 59% da área dos assentamentos era ocupada com pastagens (pecuária leiteira), 24% com lavouras temporárias (grãos e horticultura), 2% com fruticultura, 1% com reflorestamento, 10% eram terras ociosas, 1% terras inaproveitáveis e 3% ocupada pelas sedes.

Ocupação da população assentada – Do total de pessoas assentadas, 47% se ocupavam em tempo integral das atividades agropecuárias, 19% em tempo parcial, 9% apenas eventualmente e 25% simplesmente não participavam.

Experiência anterior dos titulares das famílias assentadas – Os titulares com experiência anterior na condução de lavouras ou criações somavam 34% (7% como proprietários. 17% arrendatários, 8% parceiros e 2% posseiros), 57% eram empregados rurais assalariados (14% em regime permanente e 43% em regime temporário), 7% vieram de atividade nos setores de comércio e serviços, e 2% da indústria. Portanto, somente um terço dos titulares possuíam experiência anterior na gestão e no trato de um negócio agropecuário.

Grau de escolaridade da população residente – Os estudantes constituíam 35% da população assentada (10% na pré-escola, 20% no fundamental, 4,8% no médio e 0,2% no superior). Da parcela da população não estudante (65%), 9,3% era de analfabetos, 43,4% com fundamental incompleto, 6,1% com fundamental completo, 1,9% com médio incompleto, 4,0% com médio completo, 0,1% com superior incompleto e 0,2% com superior completo. Então, pode-se concluir que dos trabalhadores rurais não estudantes, mais de três quartos eram analfabetos ou com o ensino fundamental incompleto, e seu tempo médio ponderado de estudo era de 4,4 anos.

Moradia das famílias assentadas – Casas de alvenaria eram 47,5% (20,5% com e 27,0% sem acabamento), 25,0% eram de madeira, 11,0% mistas de alvenaria e madeira, 10,0% eram unidades emergenciais (em madeirite), 5,2% barracos de lona plástica, 1,0% barracos de pau-a-pique/papelão e 0,3% sem moradia/em mudança. Pode-se considerar, então, que somente um quinto das famílias assentadas dispunha de uma moradia mais digna.

Participação em organizações comunitárias – Apenas cerca de 15% da população maior de 21 anos participavam de alguma organização comunitária, como cooperativas, associações e grupos.

Produção das áreas de assentamentos – Na safra 1999/2000 os principais produtos dos assentamentos eram leite, mandioca, milho, feijão, hortaliças e frutas, porém representando parcela ínfima da produção estadual: 0,007% da mandioca, 0,002% do leite, 0,001% do milho e do feijão, menos ainda das hortaliças e frutas.

Valor da produção – O valor médio de consumo alimentar per capita anual dos produtos obtidos nos lotes, em 1999/2000, correspondia a 2,8 salários mínimos então vigentes. Esse valor, já insuficiente para a sobrevivência, revela que a rigor os assentamentos não produziam excedentes para geração de renda adicional.

            As condições de vida nos assentamentos rurais parecem ainda piores se levados em conta fatores como a infra-estrutura urbana – saúde, educação, transportes, comunicação, indústria, comércio e serviços - da maioria dos municípios que os sediam: 27 (54%) municípios têm população de até 20 mil habitantes4, sendo 12 de menos de 5 mil, 4 de 5-10 mil e 11 de 10-20 mil, porém reuniam 64% das famílias assentadas. Característica comum da maioria dos micros e pequenos municípios é a insuficiência de receitas públicas municipais, mais de 90% supridas por transferências fiscais do estado e da União5. Com o custeio da administração e legislativo municipais e dos serviços na sede urbana, pouco ou nada sobra para investimentos nas áreas dos assentamentos rurais.
            A maior parte das famílias assentadas está em municípios posicionados entre os de menor desenvolvimento relativo do estado. Medido pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) municipal de 20006, metade dos municípios com assentamentos rurais se colocavam na metade inferior do grau relativo de desenvolvimento, porém reuniam 63% das famílias assentadas, sendo 38% delas em 10 municípios posicionados entre os 100 últimos classificados e 55% em 19 municípios entre os 200 últimos. No Índice Paulista de Responsabilidade Social (IPRS) de 20007, 40 (80%) municípios se classificavam nos grupos 3 a 5, sendo 20 no grupo 3, 13 no grupo 4 e 7 no grupo 5, mas abrigavam 88% das famílias assentadas. Sintomaticamente, 34 destes municípios incluem todos os das RAs de Araçatuba, Bauru, Presidente Prudente, São José do Rio Preto e Sorocaba, nas regiões noroeste, oeste e sudoeste do estado. Além disso, os municípios menores entre os que possuem assentamentos rurais, também estão passando por surtos de violência e são os que possuem renda mais concentrada8.
            A reportagem do Globo Rural terminou com amargas perguntas e nenhuma resposta: Qual o destino dos filhos dos assentados em Guarany? Que tipo de reforma agrária poderá dar a eles um futuro digno? As famílias tiveram a terra, o crédito e a assistência técnica, mas para a reforma agrária dar certo é preciso mais que iso. O que seria?
            É quase irresistível comparar-se a população dos assentamentos rurais paulistas, os 'excluídos do campo', aos 'excluídos urbanos', em grande parte egressos dos campos, e que fazem inchar a periferia e as favelas da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e de outros grandes centros regionais do interior. Ambos 'excluídos da esperança' frustrada por políticas públicas erráticas, falhas no econômico e no social, nas duas 'décadas perdidas'. Corrigir-se estas políticas fará com que a reforma agrária, outras reformas e o Brasil alcancem o sucesso.

1Em http://redeglobo.globo.com/cgi-bin/globorural/, acessado em 8/2/2004.
2 Em http://www.institutodeterras.sp.gov.br/, acessado em 8/2/2004.
3 V. trabalho de GONÇAVES e outros. Distribuição da malha viária rural e da produção agropecuária municipal do estado de São Paulo. Informações Econômicas: São Paulo, v. 33, n. 1, p; 41-91, jan. 2003. No trabalho, a área rural inclui as áreas ocupadas por lavouras permanentes e temporárias, florestas econômicas, pastagens existentes e vegetação natural.
4 Censo Populacional de 2000, em http://www,ibge.gov.br.
5 V. ANDRIETTA, A. J. Índice de Participação dos Municípios no ICMS do estado de São Paulo: uma proposta para sua recomposição e aperfeiçoamento. São Paulo. Informações Econômicas: São Paulo, v. 33, n. 9, p; 28-43, set. 2003.
6 Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil , 2002, em http://www.undp.org.br.
7 SEADE, 2003, em http://seade.gov.br. O grupo 3 classifica os municípios com baixa riqueza (indicador econômico) e altos/médios índices de longevidade e educação (indicadores sociais), o grupo 4 municípios com baixa riqueza e médios indicadores sociais, e o grupo 5 municípios com baixa riqueza e baixos indicadores sociais.
8 Em POCHMANN e outros. Atlas da exclusão social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003.

Antonio Joaquim Andrietta: Administrador de Empresas, Professor do Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul (IMES).

Data de Publicação: 01/03/2004

Autor(es): Antonio Joaquim Andrietta (ajandrietta@yahoo.com.br) Consulte outros textos deste autor