O papel do movimento orgânico na regulação do mercado

            Após anos de amplo debate dentro do movimento orgânico nacional, a legislação brasileira, para estruturação deste mercado, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República, em dezembro de 2003.
            O resultado deste processo, a Lei nº 10.831 de 23/12/2003, aguarda as regulamentações necessárias e há um movimento para construí-las participativamente. O texto abaixo concentra-se em um dos temas mais polêmicos, mas de fundamental importância, se o objetivo é criar mecanismos que salvaguardem a participação da agricultura familiar, neste mercado.
            O artigo 3º considera que: 'Para sua comercialização, os produtos orgânicos deverão ser certificados por organismo reconhecido oficialmente, segundo os critérios estabelecidos em regulamento.' Os parágrafos 1 e 2 fazem entretanto ressalvas:

'§ 1º. No caso da comercialização direta aos consumidores, por parte dos agricultores familiares, inseridos em processos próprios de organização e controle social, previamente cadastrados junto ao órgão fiscalizador, a certificação será facultativa, uma vez assegurado aos consumidores e ao órgão fiscalizador a rastreabilidade do produto e o livre acesso aos locais de produção ou processamento.

§ 2º. A certificação da produção orgânica, de que trata o caput deste artigo, enfocando sistemas, critérios e circunstâncias de sua aplicação, será matéria de regulamentação desta Lei, considerando os diferentes sistemas de certificação existentes no país.'

            Uma parcela significativa do movimento orgânico brasileiro, considera que a certificação é um processo de exclusão da agricultura familiar, não somente por questões associadas ao custo da sua obtenção, mas também por conta das dificuldades técnicas e culturais de absorver uma proposta gestada distante do universo de compreensão em que vive grande parte destes produtores, em que a honra e a palavra dada são garantias suficientes nas relações comerciais personalizadas.
            Existem diversos sistemas para dar garantia aos consumidores acerca da qualidade e segurança de produtos. Este tipo de certificação quando realizado por meio de avaliações de conformidade que envolvem auditorias e inspeções, norteadas pela Norma Internacional ISO 65, foi desenvolvida para a indústria, sobretudo a elétrica, e mais recentemente, a automobilística. Este sistema foi aplicado também à certificação de produtos orgânicos. Outra possibilidade é a certificação participativa em rede na qual as relações de proximidade, confiança e auto-controle da comunidade contam mais que as avaliações de terceiros.
            A IFOAM-International Federation of Organic Agriculture Movements1 desenvolveu, em parceria com várias entidades entre elas a Via Campesina2, instituição internacional de representação da agricultura familiar, uma estratégia que não só barateia custos como também fortalece as organizações sociais desses agricultores: a certificação em grupo. No entanto, esse sistema é fortemente dependente da existência de um órgão atuante e eficiente de extensão rural, o que infelizmente não tem e não se vislumbra perspectivas de que venha a ter, a capilaridade necessária para atender a todo o universo de agricultores familiares. Essa é a principal justificativa para, no parágrafo 1, se estabelecer a certificação como facultativa. O importante é definir em que condições isto pode ocorrer e vinculá-la a comercialização direta e a estruturação e fortalecimento da organização social que poderá dar a garantia necessária ao consumidor da qualidade, comprovável pela rastreabilidade.
            A legislação brasileira reconhecerá as diferentes estratégias de certificação, e sua regulamentação definirá as exigências legais que permitirão ao Estado acompanhar a qualidade do sistema proposto.
            O objetivo deste texto é desenvolver uma proposta de estruturação para regulamentação do artigo 3º da Lei 10.831 de 23/12/2003, para estimular um amplo debate do setor, visando garantir a comercialização orgânica com certificação facultativa sem comprometer a credibilidade do mercado orgânico certificado. A partir daí propõe-se algumas definições necessárias e uma estrutura de integração do poder público com o movimento orgânico nacional, a ser regulamentado pelo Estado Nacional.

1. Estruturando a regulamentação do artigo 3º

            A legislação considera que agricultores familiares podem ser isentos da certificação na comercialização direta quando possuem processos próprios de organização e controle social, e estão cadastrados junto a órgão fiscalizador.
            Uma primeira questão que emerge, refere-se ao que se entende por comercialização direta, pois além das feiras de produtor, cestas e outros mecanismos em que a relação direta se dá através da proximidade física, também se desenvolvem atualmente os mecanismos de redes de comércio solidário. Nessas a relação de credibilidade estabelecida pela proximidade física é transferida passo a passo para relações que acabam por guardar distância entre quem produziu e quem irá consumir. Estes dois tipos de comercialização direta precisam ser reconhecidos na regulamentação e cada um sugere uma gama diferenciada de conceitos e estruturas de regulação a serem definidas.
            O diagrama abaixo representa o universo a ser considerado:

            Considerando o primeiro tipo de comercialização direta, parece fundamental antes de tudo diferenciar a emergência destas situações em termos da dimensão da população urbana3 ou de outro indicador, mais apropriado e menos controverso, que possa melhor caracterizar a relação personalizada entre produtor e consumidor.
            Dada a diversidade de realidades nos estados brasileiros sugere-se que os critérios para cadastramento de municípios em que possa haver comercialização de produto orgânico sem certificação sejam desenvolvidos pelos Colegiados Estaduais, seguindo as diretrizes gerais estabelecidas na regulamentação. Desta forma, os Colegiados Estaduais teriam também a função de cadastrar e autorizar os municípios a operarem sob esta condição, mantendo esta informação sempre disponível para o público em geral. Sugere-se que sejam definidos um conjunto múltiplo de indicadores para classificação dos municípios, dos quais um número mínimo precise ser atendido e outros precisem obrigatoriamente ser satisfeitos. Os valores destes indicadores deveriam ser definidos pelos Colegiados, de acordo com a realidade do Estado, e enviados ao Colegiado Nacional.
            Com relação ao município, além da população urbana em si, a densidade demográfica também poderia ser utilizada, pois não só está associada ao tamanho da cidade mas também à estrutura fundiária; outro elemento fundamental é a importância relativa do setor primário na economia local. O cadastro dos agricultores familiares orgânicos e de seus consumidores freqüentes, com endereço postal e telefone, devem estar registrados nos municípios, sendo uma exigência obrigatória e um instrumento importante para decisão sobre seu cadastramento. Um sistema de acompanhamento desses produtores tem que ser estabelecido, acionando todas as possíveis formas de fomento e extensão rural (orgãos oficiais, ongs, etc), que informarão seus procedimentos, na solicitação de cadastramento. Este sistema deve prever ações que possibilitem o fortalecimento da organização dos próprios agricultores, a transferência de conhecimento e poder, com participação efetiva no controle interno da qualidade orgânica da sua produção.
            Com relação aos agricultores familiares beneficiados, toda sua produção orgânica tem que ser comercializada exclusivamente em município cadastrado, fazendo parte do grupo de produtores registrados. O local de comercialização precisa estar a distância que permita sua locomoção diária, desde a sua área de produção.
            Por outro lado, quando a produção orgânica é comercializada fora dessas condições, seja através de relações diretas ou de redes solidárias, é importante resgatar e fortalecer o papel regulador do movimento orgânico, dada a sua estrutura pulverizada e articulável. O poder público carece de estrutura para garantir a qualidade e a rastreabilidade do produto para o consumidor.
            O fortalecimento da articulação desses grupos através de uma rede, com regras claras de entrada definidas em termos de princípios éticos, das diretrizes tecnológicas e das relações comerciais que caracterizam os diversos grupos do movimento orgânico atualmente existentes, reconhecidos pela sua trajetória histórica, permitiriam criar não somente diretrizes para os grupos iniciantes como também a articulação em rede dos grupos esparsos, fortalecendo o movimento e ampliando a sua capacidade de regulação. O cadastramento junto ao Colegiado, nesses casos, seria somente de entidades que cumprissem certos requisitos, um deles pode ser a articulação de diversos núcleos com equipamentos de venda direta, sob seu acompanhamento.
            Cada uma das formas de comercialização direta precisa ser regulada. Para ser responsável por feiras do produtor deve-se exigir que a entidade do movimento tenha mecanismos escritos de acompanhamento, baseados em princípios de transparência, imparcialidade e rigor técnico. O grupo de produtores e associações de uma feira deve ter seu próprio sistema de controle e gestão, construído com o envolvimento de todas as partes. Para atuar em feiras desvinculadas do movimento, exceto nos municípios considerados pequenos de acordo com a regulamentação, a certificação é obrigatória.
            A venda de cestas ou através de lojas só pode ocorrer dentro do critério de comercialização direta com certificação facultativa se toda a produção transacionada for integralmente de um grupo de agricultores familiares que se organiza para vender localmente, através da distribuição de cestas ou em um equipamento varejista. Nesses casos, as mesmas exigências para operação das feiras de produtores têm que ser atendidas. Os produtores das entidades consideradas têm que estar localizados nos próprios Estados onde sua produção é escoada. Associações de âmbito interestadual são caracterizadas como organizações de comercialização direta através de rede.
            As redes de comércio solidário referem-se a grupos/entidade de agricultores familiares que se organizam para comercializar através de contatos personalizados, muitas vezes virtual, operando no âmbito nacional ou internacional. As partes se reconhecem pela prática de relações sociais e econômicas articuladas pelo princípio da solidariedade. São exemplos as que congregam produtores e consumidores do tipo da Associação para Desenvolvimento Agropecuária Orgânica-ADAO e das Community Supported Agriculture-CSA4 além das redes de comércio solidário para troca de produtos e serviços de forma geral, propriamente dita. Nesses casos, considera-se que um sistema equivalente de exigências deve ocorrer. A rede precisa ter sua forma própria de autocontrole que garanta a qualidade do produto orgânico ao consumidor também baseado no tripé: transparência, imparcialidade e rigor técnico.

2. Definições

Agricultura familiar: Independentemente da utilização de mão de obra permanente, assalariada ou sob outras formas de contrato, formal ou informal (parceiros, meeiros, arrendatários, etc...), caracteriza-se uma exploração agrícola como de agricultura familiar sempre que pelo menos um membro da família nuclear desempenha toda e qualquer atividade agrícola na exploração entre as que não fazem uso de equipamentos moto mecanizados.

Comercialização direta: A comercialização é considerada direta sempre que um produtor individual, membro da sua família ou membro da organização formal a qual pertence levar sua produção diretamente ao seu utilizador final ou através de relações de confiança mútua e solidariedade. Tais relações precisam garantir a distribuição de benefícios eqüitativos entre todos os envolvidos e que a atividade econômica não se afaste do seu fim primeiro, que é responder às necessidades produtivas e reprodutivas da sociedade e dos próprios agentes econômicos5.

Certificação da produção orgânica. O processo de acompanhamento da produção através do qual é garantida ao consumidor a qualidade da produção orgânica, definida pela lei 10.831 de 23/12/2003. Os princípios básicos que precisam ser atendidos por este processo são: transparência, eficiência técnica, imparcialidade e confidencialidade.

Rastreabilidade do produto. Rastreabilidade é a capacidade de traçar o histórico, a aplicação ou a localização de um item através de informações previamente registradas.

Certificação facultativa só pode ocorrer quando estiver garantida ao consumidor a qualidade orgânica do produto através do acompanhamento realizado pelo município ou por entidade do movimento orgânico cadastrada junto ao Colegiado estadual.

Órgão fiscalizador: Entidade pública a quem será dada a missão de acompanhar a implementação da lei, auditando as entidades responsáveis por garantir a qualidade do produto ao consumidor: municípios e entidades do movimento orgânico, ambos cadastrados junto ao Colegiado Estadual, previsto na Instrução Normativa Nº.7 (IN 007), de 17/05/1999 do Ministério de Agricultura-MAPA, a ser reproduzida nesta regulamentação. Cabe ao órgão fiscalizador agir também a partir de denuncias, garantindo o cumprimento da lei. O arranjo institucional também é objeto de regulamentação .

3. Considerações finais

            Procurou-se aqui estabelecer uma proposta de regulamentação para a Lei 10.831 de 23/12/2003, no que diz respeito a questão mais controversa que é a certificação facultativa na comercialização direta. O objetivo é estimular o debate participativo. Nesse sentido, estimula-se que sugestões de conteúdo sejam enviadas para secretariaapta@ig.com.br. Se houver interesse em participar de uma reunião, por favor não esqueça de mencionar, acompanhado de um parágrafo de apresentação pessoal explicativo sobre seu interesse pelo tema.

1IFOAM – www.ifoam.org
2Via Campesina – www.virtualsask.com/via
3VEIGA, J.E tem questionado o critério de definição de urbano e rural nos levantamentos do IBGE
4CSA – www.nal.usda.gov/afsic/csa
5Textos básicos: Princípios da Economia Solidária. Para organização da III Plenária Nacional de Economia Solidária.

Data de Publicação: 02/03/2004

Autor(es): Yara Maria Chagas de Carvalho Consulte outros textos deste autor
Araci Kamiyama (agronomo@aao.org.br) Consulte outros textos deste autor
Isabel Garcia Drigo (isadrigo@terra.com.br) Consulte outros textos deste autor