Sobre distribuição de terras e reposição do patrimônio agrário

            A modernização acelerada da agricultura, associada à internacionalização das economias, dificulta cada vez mais a integração de populações rurais que vivem à margem do desenvolvimento econômico já há longo tempo.
            Alterações nessa tendência dependem da obtenção de alternativas para os problemas da exclusão, partindo-se do conhecimento da realidade específica dessas populações, com vistas a uma sustentabilidade que integre as esferas ecológicas, sociais, culturais, econômicas e políticas.
            Com a modernização agrícola, ocorrida de forma heterogênea no País, aprofundam-se as relações intersetoriais, com o uso crescente dos insumos modernos produzidos industrialmente (tratores, adubos químicos, inseticidas, fungicidas e herbicidas); alteram-se as relações de trabalho; intensifica-se a mecanização, que passa a atuar no processo produtivo desde o plantio até a colheita; substitui-se não só a força de trabalho, mas também as habilidades manuais do trabalhador, embora se promova um salto qualitativo da produção e da produtividade agrícolas.
            Nesse processo em que o governo teve importante participação, foram lançados diversos instrumentos de política agrícola com o objetivo de elevar a produção e a produtividade da agricultura. No entanto, manteve-se a estrutura agrária já existente, o que beneficiou em especial, médios e grandes produtores rurais.
            Os efeitos dessas transformações de longo espectro, no entanto, alcançaram de forma diferenciada as populações mais periféricas ao sistema. Como exemplo, tem-se o caso do núcleo de Itinguçu (SP), situado dentro dos limites de uma Unidade de Conservação, a Estação Ecológica Juréia-Itatins.
            Em estudo1 realizado com esse agrupamento social, encontrou-se um paralelo entre a trajetória dos moradores de Itinguçu e as transformações2 ocorridas com o processo de expulsão dos agregados e parceiros do latifúndio no final do século XIX, quando agregados e posseiros saíam em busca da sobrevivência. Apreendeu-se como se transformaram as formas essenciais de sociabilidade anteriormente existentes (relações familiares, vicinais, entre bairros e com o centro urbano) baseadas na complementaridade e interdependência, calcadas na organização da produção que pouco a pouco vai se enfraquecendo, se desorganizando, dando lugar a um empobrecimento que chega a um estado de anomia3 .
            A noção de anomia guarda estreita relação com a noção de alienação, referindo-se à idéia de um desregramento fundamental das relações entre o indivíduo e a sociedade. Há anomia quando as ações dos indivíduos não são mais reguladas por normas claras e coercitivas e quando a complexificação dos sistemas sociais ocasiona uma individualização crescente dos membros da sociedade e, por isso, efeitos crescentes de 'desregramento'. A noção aqui é usada no sentido de situações em que há dúvida e incerteza quanto aos fins socialmente valorizados.
            Partindo de dados colhidos em campo, levantou-se a organização social dos residentes de Itinguçu. Estabeleceram-se o perfil e a dinâmica das atividades de produção e comércio, no processo de transformação da condição dos posseiros residentes no bairro desde a década de 70 em moradores da Unidade de Conservação a partir de 1986.
            Constatou-se que as mudanças havidas nas famílias residentes ocorrem não apenas pela criação da Estação Ecológica mas também pela intensificação das relações do núcleo com o mundo moderno, pela proximidade da cidade balneária de Peruíbe e pela visitação do local onde se encontra a Cachoeira Paraíso – ponto turístico que em feriados prolongados chega a receber 6.000 visitantes num período aproximado de quatro dias.
            Da análise da alteração do modo de vida e das relações sociais dos moradores de Itinguçu, constata-se a desorganização sócio-econômica do grupo. Com as dificuldades na produção agrícola, decorrentes das restrições impostas pela legislação da Estação - proibição da entrada de novas espécies vegetais e animais, adubação, aumento da área de plantio, proibição da utilização de inseticidas e herbicidas na produção agrícola, associadas às dificuldades de obtenção de uma produção compatível com as exigências do mercado agrícola e mais as dificuldades relacionadas à comercialização ( mercados distantes, ausência de meios de transportes para a colocação de seus produtos em outras áreas, a maior facilidade de obtenção de renda com as atividades do turismo) -, observou-se o desinteresse e o abandono da produção agrícola. Com isso, a vida familiar, calcada na produção familiar agrícola, entra em decadência tanto quanto a solidariedade de vizinhança, que tinha por esteio a associação das famílias.
            A desagregação familiar e a desestruturação social observada induzem a população para uma situação anômica, em que existe uma instabilidade das regras sociais do grupo e a autoridade do chefe da família é questionada e/ou ignorada.
            A falta de perspectiva dos mais jovens no que se refere à obtenção da terra, seja para plantar, seja para morar, leva à busca de colocações em atividades informais nos centros urbanos, ou seja, novamente a migração. Nesse cenário, observou-se, além do redirecionamento das atividades econômicas para o comércio local, o desenvolvimento de outras atividades informais (guarda de carros e guias turísticos) desempenhadas principalmente por crianças.
            Com a criação da Estação Ecológica, a transferência do direito à transmissão do patrimônio, um dos pilares da autoridade do chefe de família, passa para a Administração da Estação Ecológica e com isso rompe-se o elo forte da autoridade na relação pai-filho. Rompe-se igualmente a coesão familiar anteriormente existente. Ficam comprometidas as regras camponesas da distribuição de terra e de reposição do patrimônio que assegurava a realização da condição camponesa às gerações que atingiam a maturidade e buscavam a constituição de novo núcleo familiar.
            Nesse aspecto, um fator externo - as regras impostas pelo Estado - restringe as possibilidades, contribuindo para que se desloque a procura de alternativas para fora da família. Proliferam, então, as alternativas individuais de sobrevivência, situadas preferencialmente no âmbito não-agrícola. As expectativas que aí se colocam apontam para a migração e desagüam nas cidades.
            As constatações mencionadas reforçam a convicção de que é cada vez mais premente a necessidade de se levar em consideração as especificidades agrárias locais na elaboração de planos e propostas governamentais.
            O impacto decorrente da criação da Estação se observa no deslocamento das atividades agrícolas para o comércio, verificado recentemente em Itinguçu. Diante dos obstáculos à produção agrícola, os moradores procuram outras formas de obtenção de renda.
            Os moradores de Itinguçu, no entanto, são uma face tangencial do amplo consenso existente entre as classes sociais no campo brasileiro, onde o latifúndio ainda é a base da permanência da forma de dominação reatualizada pelo 'agrobusiness'.
            A distribuição de terras, juntamente com a aplicação de políticas públicas direcionadas para as populações rurais específicas, pode ser um complexo, longo, mas profícuo caminho no sentido da 'velha' idéia da fixação do homem ao campo.

1 PANZUTTI, Nilce P. M., A Caminho da Terra: a mata 2002 247p. Tese (doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo.
2QUEIROZ, M.I.P., Désorganization de petites communes brésiliennes Cahiers Intenationaux de Sociologie, Paris, v.28, p. 159-173 Janvier/Juin 1960
3 DURKHEIM, E. A divisão do trabalho social. Lisboa/São Paulo: Presença/Martins Fontes, 1977.

Data de Publicação: 26/05/2004

Autor(es): Nilce da Penha Migueles Panzutti (panzutti@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor