Política econômica no Brasil nos últimos vinte anos do século XX

            É importante conhecer o cenário em que se atua e as modificações que afetam a economia para determinar as ações e possivelmente prever seus efeitos. É senso comum que, para estabelecer uma política de ação, os instrumentos mais apropriados devem ser combinados e direcionados para as variáveis que tenham efeito mais forte sobre as metas e resultados desejados.1
            Assim, neste artigo, procura-se identificar alguns instrumentos de política econômica usados no Brasil nos últimos vinte anos do século XX. Especificamente, busca-se analisar as relações existentes entre renda, emprego e competitividade externa brasileira, bem como identificar os instrumentos de política econômica pertinentes ao desempenho destas, usados nas décadas de 80 e 90.2 Supõe-se que o comportamento evolutivo do PIB está associado às duas variáveis básicas: uma relativa ao setor interno, que é o emprego/desemprego, e uma relativa ao setor externo, que é o indicador de competitividade externa.3
            Na análise das informações de comércio de bens do Brasil sobre a composição da pauta de comércio, segundo categorias, observou-se que 70% das exportações são de bens com baixa a média complexidade, agrupados em bens primários, sendo eles agrícolas, minérios e energéticos, bens industrializados tradicionais e bens industriais básicos. Apesar de ter havido uma diversificação na pauta de exportações de 1980 a 2000, ainda se considera que o valor agregado das exportações seja modesto.
            As importações apresentaram diversificação bastante acentuada, com grande redução de bens primários e crescimento de bens industrializados difusores de progresso técnico, que são as maquinarias, instrumentos, química fina com destino à formação bruta de capital ou bens intermediários.
            Diante deste quadro, o indicador de competitividade (IC) foi calculado pela razão entre o valor dos bens que compõem a maior parte das exportações e o valor que compõe a maior parte das importações brasileiras, valores estes representativos da estrutura de comércio brasileira e cujo aspecto se pretendeu enfatizar nesta pesquisa.
            As tabelas 1, 2 e 3 mostram os cálculos das matrizes de correlação, para o período completo, de 1980 a 2000, e por subperíodos, de 1980 a 1990 e de 1990 a 2000.

Tabela 1 - Correlação entre IC, US$PIB per capita e TDA, Brasil, período 1980 a 2000.

 . IC PIB TDA
IC 1  . . 
PIB -0,7109 1  
TODA -0,2178 -0,1432 1
Fonte: Resultados da pesquisa.

Tabela 2 - Correlação entre IC, US$PIB per capita e TDA, Brasil, período 1980 a 1990.

 . IC PIB TDA
IC 1  . . 
PIB -0,4309 1  
TODA 0,1030 -0,8250 1
Fonte: Resultados da pesquisa.

Tabela 3 - Correlação entre IC, US$PIB per capita e TDA, Brasil, período 1990 a 2000.

 . IC PIB TDA
IC 1  . . 
PIB -0,9854 1  
TODA -0,5543 0,4695 1
Fonte: Resultados da pesquisa.

            Os resultados mostraram que foi forte a correlação entre taxa de desemprego aberto e PIB per capita, de –0,825, na década de 80, enquanto a competitividade externa brasileira apresentou fraca correlação com o PIB e com a taxa de desemprego aberto.
            Na década de 90, houve muito forte correlação entre competitividade das exportações brasileiras e PIB per capita (-0,98), ou seja, as importações brasileiras foram fortemente correlacionadas com o crescimento, não sendo tão elevada com relação ao desemprego. No período de 1980 a 2000, a correlação entre o PIB e a competitividade pareceu razoavelmente elevada, enquanto a taxa de desemprego apresentou fraca correlação com o PIB e com a competitividade externa.4
            Com base nisso, pesquisou-se os instrumentos mais relevantes pertinentes ao emprego na década de 80 e ao setor externo na década de 90. Ou seja, o que de relevante ocorreu na década de 80 com respeito ao emprego diante da renda do Brasil e o que de relevante ocorreu na década de 90 com relação ao setor externo, diante da renda brasileira.

Década de oitenta

            O panorama da década de 80 era de forte crise cambial e da dívida externa. Diante disso, a política econômica foi direcionada no sentido de realinhamento de preços e salários. Os instrumentos usados foram taxa de câmbio e política salarial.
            Partindo-se da definição básica de emprego - uma relação entre pessoas que vendem sua força de trabalho por algum valor, alguma remuneração, e pessoas que compram essa força de trabalho pagando em troca o salário -, procurou-se identificar a política salarial adotada na década de 80.
            A política salarial, a vigorar em princípios da década de 80, formulada em novembro de 1979, apresentava modificações importantes, entre as quais se destacam a adoção de reajuste semestral dos salários em substituição ao sistema anterior de reajustes anuais; e a adoção de um índice de preços ao consumidor, o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), como critério único de reajuste, em substituição aos quatro componentes da fórmula empregada pela política salarial anterior.
            Esses quatro componentes eram um índice de reconstituição do salário real médio nos doze meses anteriores ao do reajuste; um índice representativo da metade da inflação prevista para os doze meses seguintes; um componente de correção de erro de previsão dessa taxa nos reajustes anteriores; e um índice de correção dos salários face a variações nas relações de hora extras e um índice de correção dos salários face à variação nas relações de troca externas e internas (setor urbano versus setor rural).
            Além dessas modificações, houve também o estabelecimento de reajustes diferenciados por classes de salários; a autorização para que fosse 'livremente negociado', por ocasião da data-base anual, um coeficiente adicional de reajuste, ligado à variação da produtividade de categoria profissional; e a divulgação, com antecedência mínima de um mês da data do reajuste, da variação semestral do INPC, substituindo a sistemática anterior em que o índice oficial de reajuste era publicado no próprio mês a partir do qual o reajuste era devido. Para a transição da antiga para a nova política, foi estabelecido um reajuste geral de 22%, a partir da data em que a nova política passou a vigorar (1º de novembro de 1979) para todas as categorias com datas-base situadas nos meses de novembro de 1978 a abril de 1979, categorias essas que já haviam obtido o seu último reajuste coletivo há mais de 6 meses.
            Assim, essa nova política salarial teve também o objetivo de reverter a tendência à concentração de renda observada na economia brasileira após 1964, atuando diretamente sobre a distribuição dos salários.
            Em julho de 1983, através do Decreto-Lei n.º 2045, o governo estipularia a correção automática dos salários em 80% da variação do INPC nos seis meses anteriores ao reajuste. Esse decreto foi substituído pelo Decreto 2065, que estabeleceu reajustes escalonados, de 100% do INPC para salários mais baixos, tendendo aos 50% do INPC à medida que se avança na escala para salários superiores aos 20 mínimos por mês. Para o conjunto dos trabalhadores do país, estima-se que o reajuste médio foi de 87% do INPC.
            Adicionando-se a isso, o imposto de renda sobre os salários foi elevado, compensando o maior reajuste da massa global dos salários, e instituiu-se a médio prazo a livre negociação salarial sem nenhuma garantia de correção dos salários para compensar as perdas inflacionárias.
            Em 1986, os salários foram congelados pelo valor médio dos últimos seis meses, mais um abono de 8%. Criou-se um indicador, chamado gatilho salarial, pelo qual, ultrapassando a inflação em 20%, os salários teriam correção automática com o mesmo índice, mais as diferenças negociadas nos dissídios coletivos das diferentes categorias. Em 1987, este indicador foi extinto mantendo-se a sistemática de negociação salarial.
            Essas medidas atenuaram o efeito da redução do ritmo de crescimento sobre o emprego, permitindo ajustar a economia a uma situação externa adversa, com a redução do nível de gasto doméstico para torná-lo compatível com um menor volume de importações.

Década de noventa

            Os anos 90s foram caracterizados por grandes transformações na economia brasileira, ocasionadas principalmente pela liberalização comercial e financeira e também pela implementação de políticas de estabilização. Barreiras tarifárias e não-tarifárias foram reduzidas, bem como poupança externa foi atraída. Planos de estabilização foram tentados, tendo sido o Plano Real, implementado em 1994, o único a conseguir conter o ritmo da inflação após várias décadas de perturbações.5
            No Brasil, a proteção ao setor manufatureiro, através de barreiras tarifárias e não-tarifárias, foi paulatinamente, retirada, observando um cronograma estabelecido. A privatização foi implementada através do Programa Nacional de Desestatização. Os objetivos da política de privatização do Brasil, no início da década de noventa, foram basicamente o ajuste patrimonial, a recuperação do nível de investimentos e a eficiência microeconômica decorrente da passagem da titularidade de ativos públicos para agentes privados.
            A argumentação era a de que havia a necessidade de reduzir o déficit público, de aumentar a captação de poupança privada para a promoção de investimentos nos setores privatizados e de que a estrutura burocrática, diante de assimetria de informações, não garantiria o incentivo adequado para induzir essas empresas a reduções de custos, aumento de qualidade e/ou investimentos em capacitação tecnológica, na ausência de pressão competitiva efetiva. A mudança mais significativa trazida pela privatização foi a gestão das antigas estatais pelo princípio da empresa privada.6
            Como na década de noventa se intensificou o processo de desestatização, tornou-se necessário readequar os instrumentos da política industrial em uma nova concepção de concorrência, para atenuar os efeitos de falhas de mercado do tipo bens públicos, externalidades, economias de rede ou falhas intertemporais, propiciar a competitividade sistêmica e criar um ambiente favorável à busca permanente da competitividade.7 Entretanto, a concorrência mostrou ser um instrumento insuficiente para o atendimento dos objetivos de política industrial.
            A liberalização dos mercados trouxe a reversão das tendências da industrialização e a agricultura passou a ter crescimento expressivo. A explicação para isso talvez esteja na brusca exposição da indústria à concorrência internacional, bem como aos estímulos concedidos para a modernização do setor agrícola. O setor industrial perdeu dinamismo e os recursos externos foram preponderantemente utilizados pela agricultura de exportação.
            A política adotada para modernização do agronegócio brasileiro permitiu um aumento significativo na produtividade agrícola, o que elevou a participação da agricultura propriamente dita. Isso permitiu mostrar que a agricultura brasileira é bastante competitiva e que a agricultura de exportação ainda possui vantagens comparativas.
            A concessão de crédito, pelos órgãos oficiais (BNDES), para a consolidação da estrutura produtiva do setor agropecuário, através do segmento moderno, centrou sua atuação nas categorias empresariais, estimulando as formas de organização que incentivassem a introdução e difusão do progresso técnico.8

Estabilidade de preços

            Quanto à estabilização, desde meados da década de oitenta, várias tentativas de reduzir o nível de inflação, que crescia persistentemente, foram feitas com os Planos Cruzado I e II, em 1986; o Plano Bresser, em 1997; e o Plano Verão, em 1989. Estes planos procuraram conter o ritmo inflacionário através de congelamento de preços e salários, mas nenhum teve êxito no combate à inflação e na retomada do ritmo de crescimento econômico. Neste último, extinguiu-se a correção monetária, eliminando-se a inércia inflacionária.
            A década de 90 se inicia com o Plano Collor, que se utilizou da sistemática de bloqueio de ativos financeiros poupados para controle inflacionário, agravando mais ainda a já problemática incerteza sobre os rumos da economia brasileira. O Plano Collor II, em 1991, adotou novamente o instrumental do congelamento de preços e salários e extinguiu o referencial de indexação de preços, o Bônus do Tesouro Nacional fiscal, utilizando a Taxa Referencial Diária. O instrumental usado conduziu à substituição do Presidente.
            Em 1994 é implementado o Plano Real, programa de estabilização bem-sucedido, que reduziu as taxas de inflação por um período prolongado. No Plano Real, criou-se uma moeda virtual atrelada ao dólar, a Unidade Real de Valor (URV). Através disso, o governo adotou a lógica da dolarização, usando as âncoras cambiais ou metas cambiais. No regime de âncora cambial para a estabilização monetária, a taxa de juros passa a ser o instrumento de política monetária mais importante.
            Foi estabelecido um período de quatro meses para que os agentes econômicos se adaptassem à URV. Durante esse período, a taxa de câmbio, os preços básicos, os salários dos funcionários públicos, salário mínimo, pensões e tarifas públicas foram compulsoriamente convertidos em URVs. O setor privado foi adaptando seus preços a essa sistemática.
            Ao final desse período, a URV, que valia 2.750 cruzeiros novos, foi convertida na nova moeda, o Real. Toda base monetária da velha moeda foi substituída por novas cédulas e moedas.
            Houve firme determinação em manter baixa a taxa de inflação, até que em fins da década de noventa foi implementada a sistemática de metas de inflação, ou 'inflation targeting'. As metas de inflação se tornaram um instrumento de controle de preços, que substituíram as metas cambiais, ou âncoras cambiais, diante do esgotamento daquele instrumento.
            Para fixar as metas de inflação, utiliza-se do núcleo de inflação, ou 'core inflation', é uma medida que procura captar a tendência dos preços, desconsiderando os distúrbios temporários de choques de oferta, como os resultantes de fatores climáticos ou sazonais. Sua utilidade é a de orientar a política monetária a identificar e diagnosticar os choques que afetam a inflação.
            Ao longo das duas últimas décadas do século XX, o Brasil utilizou instrumentos de política econômica compatíveis com os objetivos propostos. Na década de oitenta, a atenção foi focada principalmente no aspecto interno da economia, com a preocupação de reduzir os problemas do emprego, diante de crise externa severa. Na década de 90, ênfase maior foi dada aos aspectos externos da economia e aos impactos internos sobre a estabilidade. De comum às duas décadas foi um crescimento moderado à espera de um novo modelo de desenvolvimento.

1MUNDELL, Robert A. The appropriate use of monetary and fiscal policy for internal and external stability. STAFF PAPERS, International Monetary Fund vol. IX, n. 1, march 1962.
2 Projeto IEA, NRP 1061.
3Para verificar o grau de relacionamento entre as variáveis, se é forte ou fraco, utilizou-se do calculo de matriz de correlação. Para a renda per capita, foi considerado o valor do PIB brasileiro calculado pelo IBGE convertido em dólar pelo IPEA; para o emprego e/ou desemprego, foi considerada a taxa de desemprego aberto (TDA) brasileira calculada mensalmente pelo IBGE e anualizado através de média de 12 meses; e, para a competitividade externa brasileira, foram usadas as informações de comércio de bens do Brasil, elaboradas pela Division de Comércio Internacional e Integracion (2001) da CEPAL (http://www.cepal.cl/Comercio/panesp/Sistema/Brasil/Brasil%20A.xls), de onde foi elaborado um indicador de capacidade de pagamento das exportações brasileiras.
4 Outro indicador de competitividade externa foi construído considerando a relação entre exportações totais e importação totais. A correlação entre este e as variáveis renda e desemprego resultou no seguinte: para o período de 1980 a 2000, competitividade e renda de -0,3889, competitividade e desemprego de -0,5587; para o período de 1980 a 1990, competitividade e renda de 0,2850, competitividade e desemprego, de -0,5587; para o período de 1990 a 2000, competitividade e renda de -0,9537, competitividade e desemprego, de -0,4466. Nota-se a forte correlação entre a competitividade e renda no período de 1990 a 2000.
5 Análise desse período foi efetuada no artigo Comportamento Do Produto Interno Bruto Do Brasil E De São Paulo, Na Década De 90, in http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto.php?codTexto=322 e no artigo Análise Comparativa Do Agronegócio Brasileiro No Período Recente, in http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto.php?codTexto=326 .
6 O auge do programa ocorreu entre 1997 e 1998, com as grandes privatizações atraindo vasto fluxo de investimento direto para o Brasil, o que ajudou a financiar o elevado déficit em conta corrente do país bem como evitar a explosão da dívida pública.
7 Também, na década de noventa, houve a desregulamentação dos mercados, libertando as companhias e os mercados de um grande número de controles administrativos introduzidos durante o período de substituição de importação. Outras iniciativas enfocaram o comércio internacional e o investimento externo. Política de controle a monopólios e proteção ao consumidor foram formuladas bem como anularam-se restrições legais que limitavam a entrada de competidores no mercado, estabelecendo-se controles de preços em diversos setores não-comerciais. Criou-se um ambiente mais competitivo com o fim das limitações legais à entrada de concorrentes no mercado e do controle de preços.
8RAMALHO, Y.M.M. (Coord.) Mudanças estruturais nas atividades agrárias: uma análise das relações intersetoriais no complexo agroindustrial brasileiro. Rio de Janeiro: BNDES/DEEST, 1988. 126 p. ( Estudos BNDES, 9).

Data de Publicação: 31/05/2004

Autor(es): Samira Aoun (samira@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor