Transparência para o Controle Social nas Compras Públicas Voltadas à Alimentação Escolar

Em tempos de crise econômica e política, um tema central para o debate na sociedade diz respeito aos gastos e investimentos de dinheiro público. Em cenário de grandes disparidades socioespaciais, os recursos destinados à produção agrícola familiar e para fins de alimentação escolar colocam-se entre as prioridades sociais.

Uma das faces da herança desigual e excludente de ocupação do território brasileiro é a permanência do estado de insegurança alimentar e nutricional para inúmeras famílias. Daí que a alimentação escolar representa, muitas vezes, a principal refeição realizada cotidianamente para alunos de maior vulnerabilidade social.

Neste sentido, o artigo traz a essência e a estrutura geral do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com a intenção de subsidiar os debates que surgem sobre a importância atual da merenda nas escolas. Diante de possíveis distorções na execução dessa basilar política pública, urge desvendar os atores e setores envolvidos no processo de aquisição de alimentos da agricultura familiar (Figura 1).

O PNAE foi construído ao longo de décadas e, em anos recentes, tem valorizado os usos agrícolas do território realizado por comunidades tradicionais e agricultores familiares. De abrangência nacional, o PNAE em 2015 atendeu 42,6 milhões de alunos, sendo repassados aproximadamente R$3,8 bilhões aos entes da federação1.

O atual PNAE é uma das mais antigas políticas sociais e de maior abrangência territorial. Tem origem no âmbito da federação do Brasil no século passado, na década de 1950. Desde então, tem se constituído em um instrumento essencial a contribuir para a melhoria das condições de aprendizagem, ao possibilitar o acesso à alimentação regular por inúmeras crianças e jovens matriculados no ensino público.

A partir do século XXI, importantes mudanças organizacionais se delinearam na estrutura da política nacional da merenda escolar. Nas duas últimas décadas, fruto de lutas e conquistas sociais pelo direito humano à alimentação adequada, a gestão do PNAE tem apresentado inovações direcionadas a estimular à agricultura social a partir da promoção de hábitos alimentares saudáveis nas escolas.

 

O intuito da atual política nacional para alimentação escolar é garantir a segurança alimentar e nutricional dos alunos da rede pública (alvo do programa). E, ao mesmo tempo, gerar renda e segurança alimentar, beneficiando os próprios produtores de alimentos excluídos do mercado, cada vez mais concentrado em poucas empresas.

O presente arranjo da política territorial para alimentação escolar no Brasil se apoia na interdependência e conexão entre agentes sociais atuantes nas diversas escalas de ação (municipal, estadual e federal), e prevê o monitoramento pela própria sociedade local (Figura 2).

Desde a Lei n. 11.947 de junho de 20092, há a obrigatoriedade para que ao menos 30% do valor repassado pelo governo federal aos estados e municípios, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), e direcionados à alimentação escolar, sejam destinados à compra de gêneros alimentícios da agricultura familiar ou de suas organizações. O artigo 14 da referida lei expressa, ainda, a atenção especial aos assentados, comunidades quilombolas e indígenas:

Art. 14. Do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento) deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas.

 

 

O FNDE, vinculado ao Ministério da Educação (MEC), é o órgão responsável pela coordenação, repasses financeiros e fiscalização da execução do programa no território brasileiro. As entidades executoras correspondem às Secretarias de Educação dos estados e Distrito Federal, prefeituras e escolas federais, e são as responsáveis pelo recebimento dos repasses financeiros do FNDE, execução e prestação de contas.

O monitoramento do PNAE é realizado em diversas esferas. A fiscalização é feita pelo Tribunal de Contas, Controladoria Geral e Ministério Público da União. A inspeção sanitária dos alimentos é tarefa das Secretarias de Saúde e Agricultura dos estados e municípios, e a fiscalização do profissional nutricionista por Conselhos de Nutricionistas. Há, ainda, um colegiado deliberativo e autônomo composto por representantes do executivo, entidades civis, trabalhadores da educação, pais e alunos, que compõem os Conselhos de Alimentação Escolar (CAE).

O CAE é a instância que permite à sociedade acompanhar a efetivação da aplicação de recursos financeiros destinados à compra de alimentos da agricultura familiar no nível local. A atuação ativa dos CAEs municipais e estaduais permite monitorar desde o planejamento da escolha dos gêneros a serem adquiridos, dialogando com agricultores e profissional de nutrição, até a adequação dos cardápios às necessidades locais, respeitando a diversidade e a sazonalidade da produção.

Assim, o modelo vigente do PNAE responde aos anseios da sociedade porque prioriza a democratização e a descentralização das compras públicas de gêneros alimentícios voltados à alimentação escolar em todo território nacional. A publicação oficial dos editais com as “chamadas públicas” é o instrumento disponível ao poder público para a aquisição direta de alimentos produzidos por grupos de agricultores, dispensando-se, nesses casos, a necessidade de licitação:

§1º A aquisição de que trata este artigo poderá ser realizada dispensando-se o procedimento licitatório, desde que os preços sejam compatíveis com os vigentes no mercado local, observando-se os princípios inscritos no art. 37 da Constituição Federal, e os alimentos atendam às exigências do controle de qualidade estabelecidas pelas normas que regulamentam a matéria (Lei n. 11.947 de junho de 2009)3.

A Resolução n. 4, de 2 de abril de 20154, atualiza algumas das diretrizes anteriores (Resolução n. 26, de 17 de junho de 2013) para a realização das compras da agricultura familiar destinadas às cozinhas da rede pública de ensino. Ela também observa que as entidades executoras divulguem amplamente as chamadas em jornais locais, em murais próximos de grande circulação e em páginas na internet. A resolução inclui, ainda, modelos de “chamadas públicas” para orientar as prefeituras.

Ampliar os meios de comunicação local é essencial para obter a transparência e a possibilidade de fiscalização do processo de compras institucionais. Revela-se, também, uma oportunidade aos agricultores e comunidades tradicionais em ter maior acesso aos circuitos curtos de comercialização. Para participar, os interessados devem conhecer as etapas que compõem o PNAE (Figura 3).

A relevância social do PNAE é atestada por tratar-se de um dos programas sociais brasileiros de maior repercussão mundial, sendo referência para a elaboração de políticas públicas em países da África e América Latina e Caribe. Desde 2009, o país participa em cooperação com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) do programa Fortalecimento dos Programas de Alimentação Escolar na América Latina e Caribe, com apoio técnico em diversos países5.

 

 

O destaque internacional do PNAE ocorre porque há uma sinergia entre as ações executadas ao longo de todo o circuito produtivo, das fases de produção e circulação até o consumo que se dá no ambiente escolar. Esta forte conexão tem aproximado o setor produtivo (os produtores de alimentos) do mercado (compras institucionais) e consumidores (escolas públicas). Entre os resultados estão o combate à pobreza no campo e o aumento do consumo de alimentos saudáveis.

A oferta, o acesso e a qualidade do alimento destinado aos alunos da rede de ensino são pensados de forma interdependente e dinâmica. O PNAE é uma política pública primordial porque privilegia o desenvolvimento territorial com base nas especificidades culturais regionais, demandas sociais e o nível de organização da sociedade local. O associativismo e cooperativismo, se orientados pelos princípios da economia solidária, colaboram para a real autonomia e inserção produtiva no campo.

A essência do atual programa de alimentação escolar no Brasil traz, também, a valorização e a aproximação da agricultura familiar de base orgânica e agroecológica com a perspectiva da educação alimentar e nutricional no currículo escolar. Trata-se de um instrumento inédito para o acesso ao mercado por parte de agricultores familiares e comunidades tradicionais, e um uso do território pensado a partir do incentivo às tecnologias sociais e apoio ao desenvolvimento da economia local.

Em seus princípios e diretrizes nacionais, o PNAE tem se pautado por alguns eixos balizadores que leva à intersetorialidade das ações governamentais, ao estimular:

·      a equidade e a universalidade do atendimento – o direito à alimentação adequada e diversificada aos alunos da rede pública de ensino;

·      a educação alimentar e nutricional no ensino e aprendizagem;

·      a promoção de uma alimentação saudável e de qualidade – alimentos orgânicos e agroecológicos;

·      o uso do território por comunidades tradicionais – sistemas de produção praticados por indígenas, quilombolas e agricultores familiares;

·      a inclusão produtiva e o empoderamento dos agricultores familiares – autonomia das mulheres e inserção de jovens no campo;

·      a organização e a participação da sociedade local no controle social – associativismo e cooperativismo, grupos de consumo, conselhos locais; e

·      o respeito à diversidade geográfica da cultura alimentar – aquisição de alimentos locais ou regionais.

O êxito na aquisição dos gêneros alimentícios da agricultura familiar para promoção da segurança alimentar e nutricional na esfera local dependerá, em grande parte, da transparência pública. Entre os esforços dos gestores municipais e estaduais estão o de facilitar e disponibilizar ao público dados e informações sobre o PNAE.

 Destaca-se ainda que, para atingir as metas estabelecidas quanto à melhoria do quadro nutricional dos estudantes, os estados e municípios deveriam ampliar os recursos destinados ao PNAE. Segundo a legislação, a suplementação orçamentária repassada pelo governo federal, via FNDE, deve ser complementada com recursos dos governos estaduais e municipais.

Por sua vez, o poder público estadual deve amparar tecnicamente os governos municipais para que sejam oferecidas as condições reais de participação efetiva dos agricultores e comunidades tradicionais na venda de alimentos ao programa. As “chamadas públicas” do PNAE, por exemplo, necessitam de maior cuidado em sua elaboração e divulgação para beneficiar, de fato, o público alvo. Para tanto, viabilizar o trabalho de controle social realizado por representantes do CAE e entidades da sociedade civil organizada é o caminho eficaz para se atingir as metas do programa.

A sociedade local deveria estar presente na construção dos cardápios e reuniões sobre educação nutricional visando o consumo de alimentos saudáveis. A parceria com os representantes do CAE contribuiria na fiscalização das boas práticas sanitárias e de higiene na entrega dos alimentos nas escolas. Para tanto, é fundamental o apoio logístico das prefeituras que deveriam oferecer, por exemplo, um local para reuniões e o acesso a equipamentos (computador) aos membros do CAE. Isto ajudaria a viabilizar a elaboração de relatórios anuais do PNAE, e a construção de material pedagógico.

Assim, cabe ao poder público assegurar o direito dos cidadãos em monitorar as diversas etapas que levarão os alimentos da agricultura familiar até às cozinhas, buscando aprimorar as políticas sociais. Os gestores públicos devem estimular a formação e os trabalhos dos CAEs municipais e sua interação com outros conselhos locais, como o Conselho Municipal de Saúde e o de Segurança Alimentar e Nutricional.

No Estado de São Paulo, o Instituto de Terras (ITESP), a Coordenadoria de Assistência Técnica e Extensão Rural (CATI), os institutos de pesquisa, universidades e o Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (CONSEA) junto com os sindicatos, entidades de trabalhadores rurais e as organizações não governamentais certamente poderão cooperar para a lisura dos contratos. São órgãos e entidades com potencial de facilitar a interação e o diálogo entre as organizações de agricultores, as comunidades tradicionais e indígenas com os gestores locais do PNAE. 

Em suma, entre os fatores a contribuir com o sucesso do PNAE em todo o país está o fortalecimento das atividades do CAE e sua articulação com agentes sociais e entidades próximas das organizações de agricultores. Espera-se, deste modo, edificar relações sociais locais mais igualitárias e transparentes.

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1FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO - FNDE. Banco de dados. Brasília: FNDE. Disponível em: <http://www.fnde.gov.br>. Acesso em: fev. 2016. 

2BRASIL. Lei n. 11.947, de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis nos 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória no 2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei n. 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 17 jun. 2009. 

3Op. cit. nota 2. 

4BRASIL. Resolução n. 04, de 2 de abril de 2015. Altera a redação dos artigos 25 a 32 da Resolução/CD/FNDE n. 26, de 17 de junho de 2013, no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Diário Oficial da União, Brasília, jun. 2015. 

5O Programa Brasil - FAO Fortalecimento dos Programas de Alimentação Escolar na América Latina e Caribe está presente em 15 países: Antígua e Barbuda, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, República Domenicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Jamaica, Nicarágua, Paraguai, Peru, Santa Lúcia e Venezuela. FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS - FAO. Banco de dados. Rome: FAO. Disponível em: <http://www.fao.org/in-action/programa-brasil-fao/projectos/alimentacion-escolar/pt>. Acesso em: fev. 2016. 

Palavras-chave: Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), políticas públicas, agricultura familiar.

Data de Publicação: 25/02/2016

Autor(es): Soraia de Fátima Ramos (sframos@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor