Novo Acordo sobre Agricultura: fim do impasse na liberalização do comércio agrícola?

            O setor agrícola foi sistematicamente excluído, através de derrogações ou exceções às obrigações, das regras do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) firmado em 1947 e transformado em órgão internacional para coordenação e supervisão das regras do comércio. Assim, princípios reguladores do mercado internacional de produtos agrícolas apenas foram efetivamente definidos com o encerramento das negociações da Rodada Uruguai, em abril de 1994, em que foi estabelecido o primeiro Acordo sobre a Agricultura ao mesmo tempo em que foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC)1 .
            Contudo, a maioria dos auxílios e subsídios aos produtores, praticados notadamente pelos países desenvolvidos, permaneceu excluída do Acordo e o nível de proteção no comércio internacional foi apenas fracamente reduzido. Esse resultado gerou forte reação dos países que defendiam a ampla liberalização do comércio agrícola, representados nesse período principalmente pelo Grupo de Cairns2.
            Para assegurar o consenso e a assinatura do Acordo, foi disposto em seu artigo 20 que novas rodadas de negociações seriam realizadas um ano antes do fim do período de implementação da Rodada Uruguai, em prosseguimento ao processo (contínuo) de reforma do comércio agrícola3. Assim, no início de 2000 foram abertas as discussões para a obtenção de novo Acordo sobre a agricultura, com o prazo final para a determinação dos princípios fundamentais que o orientariam estabelecido em 31 de março de 2003.
            Em novembro de 2001, como resultado da 4ª Conferência Ministerial da OMC realizada no Quatar, teve início a Rodada de Doha que estabeleceu como data limite para encerramento de todas as negociações, exceto as relativas ao Acordo sobre Regulamento das Disputas entre os países membros, o dia primeiro de janeiro de 2005 e agendou para setembro de 2003 a 5ª Conferência Ministerial em Cancún no México para avaliação dos avanços das negociações.
            No entanto, persistiram as dificuldades para o avanço da liberalização do comércio internacional de produtos agrícolas, impostas principalmente por EUA, União Européia e Japão. A resposta dos países em desenvolvimento em defesa de avanços concretos na liberalização foi a formação do G-20, sob a liderança brasileira e com forte apoio da Índia e da China. Essa polarização, aliada ao grupo de 70 países em desenvolvimento, que não aceitou a inclusão no texto-base dos 'temas de Cingapura' (investimentos, transparência nas compras governamentais e facilitação do comércio), conduziu ao fracasso da 5ª Conferência.
            Nos meses que se seguiram à 5ª Conferência, tudo indicava que o impasse agrícola continuaria a impedir o avanço na Rodada de Doha, com sérios comprometimentos sobre o futuro dos Acordos Multilaterais e sobre a credibilidade da OMC.
            Esse quadro justifica a surpresa causada pelo acordo firmado entre os representantes dos 147 países-membros da OMC, em 31 de julho p.p. em Genebra, para relançar as negociações sobre a liberalização das trocas internacionais e que definiu as linhas gerais que orientarão o novo Acordo Multilateral de Comércio4. O próprio diretor geral da OMC, Sr. Supachai Panitchpakdi, qualificou o compromisso assumido como um fato histórico.
            Em linhas gerais, os principais pontos acordados para a agricultura se referem aos três pilares formados pelas políticas de apoio interno, acesso aos mercados e concorrência na exportação, cujas reformas devem ser interdependentes e abordadas de maneira equilibrada e igualitária. Destaca-se, ainda, a criação de um sub-comitê formado por países africanos e pelos EUA que deverá tratar dos subsídios americanos de forma 'ambiciosa, rápida e específica' dentro do quadro de negociações sobre a agricultura, conforme termos explicitados no acordo.
            Com relação às políticas de apoio interno, e respeitando a Declaração Ministerial de Doha, o acordo prevê que o nível global de todo apoio interno que gera efeito de distorção nas trocas, medido pela Medida Geral de Proteção (MGS), será reduzido mediante o emprego de uma fórmula a ser definida. Em virtude dessa fórmula, os membros cujos níveis de apoio interno tenham efeitos de distorção mais elevados (caso dos países desenvolvidos) deverão proceder a reduções globais mais importantes para que seja obtido um resultado harmônico.
            Para avaliar o componente de apoio relativo à categoria azul5, serão utilizadas as transferências realizadas num período representativo recente a ser definido e o teto não deverá ultrapassar 5% do valor total médio da produção agrícola durante um período anterior, a qual será estabelecida nas negociações a serem realizadas. Os critérios para os apoios permitidos na categoria verde serão reexaminados e tornados transparentes para que seus efeitos sobre as trocas ou sobre a produção sejam nulos ou os menores possíveis.
            Quanto ao acesso aos mercados, o acordo propõe também a elaboração de uma fórmula para reduzir os direitos aduaneiros, com as reduções tarifárias calculadas a partir das taxas consolidadas, sendo maiores para as tarifas mais elevadas. Contudo, os países desenvolvidos conseguiram assegurar o direito de manter direitos aduaneiros elevados para proteger certos produtos sensíveis (como o arroz no Japão; o leite, o açúcar e a carne bovina da Europa; e o suco de laranja para os EUA). Como contrapartida, para que uma melhoria substancial no acesso aos seus mercados seja efetivamente assegurada, deverão abrir seus mercados através de reduções tarifárias ou de aumento nas quotas de importação aplicadas a cada produto, cujas amplitudes serão determinadas durante as negociações.
            Sobre o terceiro pilar, concorrência à exportação, o texto prevê a eliminação dos subsídios à exportação, empregados sobretudo pela União Européia, e dos créditos à exportação, das garantias de crédito ou programas de seguro com períodos de reembolso superiores a 180 dias. Quanto aos monopólios de exportação exercidos por empresas comerciais estatais (como as comissões para o trigo no Canadá e na Austrália), estes serão negociados posteriormente. Além disso, a ajuda alimentar deverá ser disciplinada de forma a evitar distorção comercial. Novamente, os compromissos assumidos entrarão em funcionamento em conformidade com um calendário e determinações a serem negociados.
            Em resumo, trata-se de um acordo-base cujas modalidades de operacionalização ainda precisam ser definidas. Cabe ainda destacar que os avanços nos entendimentos sobre a agricultura entre os negociadores, além da posição defendida pelo Grupo de Cairns e pelo G-20, decorreram da contrapartida obtida pelos países desenvolvidos da abertura de negociações para redução dos direitos tarifários aplicados sobre produtos industriais.
            Esse trade-off permitido pelos diferentes interesses entre países desenvolvidos e em desenvolvimento na liberalização do comércio internacional, certamente, também influirá na evolução das negociações e no fechamento de um novo Acordo sobre Agricultura, mas mais uma vez não será suficiente para assegurar o fim do protecionismo agrícola.
            Temas relevantes, como aplicação de normas sanitárias, respeito a direitos trabalhistas, obrigação de etiquetagem, rastreabilidade da produção vegetal e animal, regulamentação sobre Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) e fiscalização aplicada às grandes empresas exportadoras, não foram explicitados no pré-acordo e, provavelmente, deverão constituir-se em novos instrumentos de proteção, tão eficazes quanto à imposição de tarifas, de quotas ou da justificativa para a ajuda alimentar.

1 OMC: http://www.wto.org
2 Grupo de Cairns: http://www.cairnsgroup.org
3 http://docsonline.wto.org/GEN_viewerwindow.asp?D:/DDFDOCUMENTS/U/UR/FA/14-A...
4 O documento completo pode ser obtido no site da OMC citado na nota n° 1.
5 Para maiores informações sobre as categorias azul e verde ver SILVA, Valquiria da. Evolução das Negociações sobre a Agricultura na Organização Mundial do Comércio (OMC) pós Acordo Agrícola. Informações Econômicas, vol. 32, n° 6, junho de 2002: 7-14.

Data de Publicação: 13/08/2004

Autor(es): Valquiria da Silva Consulte outros textos deste autor