Por que o algodão deu certo no cerrado?

   O Cerrado é a segunda maior região biogeográfica do Brasil, estendendo-se por 25% do território nacional, com cerca de 200 milhões de hectares distribuídos em 12 estados. Sua área nuclear ocupa todo o Brasil Central , incluindo os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul, a região sul de Mato Grosso, o oeste da Bahia, o oeste e norte de Minas Gerais e o Distrito Federal.

   Com solo de savana tropical bastante ácido, é deficiente em nutrientes e rico em ferro e alumínio, mas a presença de três das maiores bacias hidrográficas da América do Sul favorece a sua biodiversidade1. Os solos são pobres, mas passíveis de correção (calagem) e adubação, podendo tornar-se férteis e produtivos, principalmente para a cultura de grãos e de frutíferas. A vegetação, caracterizada pela falta de água, lembra a fisionomia de certas savanas da África.

   Esse tipo de vegetação aqui encontrada despertou há muito tempo a atenção de diversos botânicos visitantes, com a primeira obra referencial publicada por Eugênio Warming em 1892. O tratado referia-se à flora da região de Lagoa Santa (MG) e foi publicado em dinamarquês. Graças ao interesse despertado, foi traduzido em 1908 para a língua portuguesa por Albert Löfgren, botânico sueco radicado no Brasil e posteriormente reeditado2.

   Até os anos 50, os estudos sobre o Cerrado se limitavam a avaliações botânicas e a alguns experimentos em Sete Lagoas (MG) que mostravam a extrema deficiência de cálcio e a resposta a fósforo, o que aumentava a produção, mas em níveis muito aquém das colheitas em terra virgem de mata alta. Os resultados das pesquisas com algodão, milho e soja publicados entre 1957 e 1961, fruto de atuação conjunta entre o International Research Institute (IRI), pertencente à Organização Rockefeller, sediado em Matão /SP, e o Instituto Agronômico de Campinas (IAC), vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento, representam a primeira comprovação de que as terras do Cerrado poderiam ser convertidas em solos agricultáveis de alta produtividade3 .

   Em 1962, foi realizado o 'I Simpósio sobre o Cerrado' em São Paulo, que despertou muito interesse, entre outros motivos por seu caráter interdisciplinar, e contou inclusive com a concorrência de pesquisadores estrangeiros. Um retrospecto mostra que, ao contrário do que ocorreu em várias regiões do mundo onde as atividades agrícolas se instalaram apenas em solos férteis com plena capitalização dos produtores em razão dos retornos obtidos, no Brasil contemporâneo o avanço da agricultura se deu em áreas de Cerrado, sobretudo na região Central do país – onde os solos são de baixa fertilidade primária e elevada acidez. Alguns resultados experimentais, conduzidos em áreas de Cerrado, consideravam a adubação e a correção do solo como elementos fundamentais ao desenvolvimento das lavouras. Até 1970, as áreas com esta formação eram pouco exploradas, embora as experimentações pioneiras já datassem da década de 19504 .

   Um dos principais fatores indutores, além das políticas públicas de interiorização do desenvolvimento - Brasília foi criada com este propósito –, foi a geração de tecnologias que permitiram a incorporação deste tipo de solo ao processo produtivo em condições desejáveis e rentáveis.

   O algodão, embora se trate de uma planta oleaginosa, e por isso exigente no tocante ao solo, é uma cultura de larga adaptação, no que se refere às condições edáficas. Pode ser cultivado em diversos tipos de solo de características físicas adversas e menos férteis, desde que sejam feitas as devidas correções, de forma que passe a apresentar características suficientes para atender as necessidades básicas ao seu pleno desenvolvimento5.

   Assim, não foi por acaso que o algodão deu certo e vem apresentando nos últimos anos espetacular crescimento na região Centro-Oeste do Brasil e na Bahia, áreas típicas de cobertura com Cerrado. Uma conjunção de fatores favoreceu a atividade graças às iniciativas pioneiras por parte tanto de pesquisadores, inclusive estrangeiros que se entusiasmaram pela 'savana' brasileira, quanto de desbravadores de terras que se aventuraram pelo longínquo e despovoado sertão.

   Primeiramente, surgiram as pesquisas sobre o solo e a biota, neste caso com ênfase na flora. Em seqüência, despontam os melhoristas de plantas, tendo à frente os pesquisadores oficiais, que inicialmente adaptaram a soja à ecologia da região, e a partir de então houve o ingresso de cooperativas e a constituição de fundações de pesquisa. Alavancou-se, assim, o desenvolvimento de novos cultivares desta oleaginosa e a diversificação de explorações investigadas, com ênfase no algodão.

   Cabe ressaltar que desde a década de 30 já se consideravam os estados de Goiás e Mato Grosso, que na época abrangia também a área correspondente ao atual Mato Grosso do Sul, ecologicamente favoráveis à cotonicultura, mas a distância dos grandes centros e a esparsa população distribuída pelos territórios constituíam-se fatores restritivos à sua expansão. À época, São Paulo era o principal estado produtor, beneficiado por conta de um programa governamental de pesquisa e de distribuição de sementes muito bem conduzido, enquanto os estados do Paraná e de Minas Gerais apresentavam grande potencial, mas eram ainda inexpressivos em volume produzido. O programa teve grande influência nacional, abrangendo inclusive a região Centro-Oeste, e até internacional em decorrência do melhoramento genético desenvolvido pelos pesquisadores do IAC e da distribuição de sementes6.

   A partir de 1989, começou a ser delineado o atual cenário para a fibra, quando os grandes produtores do Cerrado da Região Centro-Oeste iniciaram a busca por alternativas à cultura da soja que então apresentava baixa rentabilidade pelo uso contínuo do solo. Assim, foram iniciados os trabalhos pioneiros de melhoramento de algodão, mediante convênio entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) 7 e a iniciativa privada.

   A partir de meados da década de 90, o algodão - à época uma lavoura em processo de falência no Brasil, com retrocesso contínuo na área tradicional de cultivo (Região Meridional), em especial nos estados do Paraná e de São Paulo -, despertou grande interesse por parte dos empresários que migraram para a região central do país. Os continuados esforços de pesquisa e desenvolvimento permitiram essa excepcional performance que hoje se verifica. Entre as tecnologias, citam-se o manejo do solo, via correção e adubação eficientes, e a utilização de variedades e cultivares adaptados à região, complementados pela possibilidade de mecanização em todas as etapas do processo produtivo.

   O crescimento da produção de algodão, desencadeado a partir da década de 90, foi de tal ordem que a região, beneficiada por um conjunto de medidas de incentivo e ações de sustentação da atividade existente hoje nos principais estados algodoeiros, responde por cerca de 80% do total do Brasil. O estado do Mato Grosso foi o primeiro a implantar a redução no Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), cujos recursos são destinados ao desenvolvimento tecnológico da atividade8. Somem-se a isto as campanhas de marketing; os programas de visitas de compradores externos e o aprimoramento da qualidade promovidos por diversos estados.

   Os níveis de produtividade obtidos atualmente estão entre os maiores do mundo e as fibras são de excelente qualidade, possibilitando assim a volta do país ao cenário internacional como importante produtor e exportador, a ponto de superar a constrangedora condição de grande importador que ocupara há alguns anos.

   Para que a cotonicultura mantenha seu status competitivo, é imprescindível, contudo, a incorporação de todo o conhecimento tecnológico acumulado para a condução sustentável das lavouras, em razão das características dos solos de Cerrado, de fácil degradação e lixiviação e da ampla incidência de pragas que ocorre universalmente nesta atividade.

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1 www.portalbrasil.net

2 WARMING, E. Lagoa Santa: contribuição para a geographia phytobiologica, Bello Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas Gerais, 1908. In: WARMING, E. Lagoa Santa e FERRI, MG . A vegetação de cerrados brasileiros. Belo Horizonte: Itatiaia e São Paulo: Ed. USP,1973, 386 p. il.

3 CARDOSO, F.P. A conquista do cerrado. Produtor rural, Cuiabá, ed. 131, p.16, jan.2004.

4 VERDADE, F.C. Agricultura e silvicultura no cerrado. In: Simpósio sobre o cerrado,3, p.65 – 76. São Paulo: Ed. Edgard Blücher e Ed. USP, 1971.

5 BELTRÃO, N.E de M. (Org.). O agronegócio do algodão no Brasil.

EMBRAPA ALGODÃO. Brasília: Embrapa Comunicação para Transferência de Tecnologia, 1999. 2v. 1023 p.

6Ayer, H. W. The costs, returns and effects of agricultural research in a developing country: the case of cotton seed in São Paulo, Brazil. Lafayette, 1970. (Ph D – Thesis), Purdue University.

7 Embrapa: www.embrapa.br

8 BARBOSA, M.Z. Algodão rumo ao cerrado. Disponível em:http:// www.iea.sp.gov.br .

 

Data de Publicação: 30/08/2004

Autor(es): Sebastião Nogueira Junior (senior@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor