Guerra fiscal: conflito federativo ou fragilidade do Estado Nacional?

            A recente decisão paulista de adotar antídotos contra os mecanismos de guerra fiscal, mais que uma resposta política ao processo de fagocitose econômica - absorvedor de empresas e com isso de emprego e renda paulistas por outras unidades da federação -, representa a adoção da justiça fiscal, na medida em que o fisco paulista passa a não reconhecer créditos do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para produtos que não recolheram os respectivos valores desse tributo na origem. Por isso, de forma legítima evita maior evasão de receitas estaduais.
            Desde logo, não há racionalidade possível na defesa da atual sistemática tributária brasileira, em cadeias de produção marcadas pela relação intrínseca com a territorialidade, como as dos agronegócios, gravadas por esse perfil de tributo centrado no princípio da origem e incidente sobre o valor adicionado em cada elo produtivo até o produto final.
            Na discussão da reforma tributária, muito se tem falado que as unidades da federação brasileira que se configuram como exportadoras internas de produtos tem se posicionado de forma contrária à prevalência do princípio do destino. Essa questão se mostra concreta na transição para o novo sistema e pode ser resolvida na repartição das receitas.
            Esse fato não deve ser empecilho para a adoção do imposto sobre valor adicionado no destino, onde os governos estaduais passariam a ter de aplicar tarifas de sua principal fonte de arrecadação sobre seus respectivos consumidores (e... eleitores). Isso fortaleceria a democracia, pois do outro lado estariam as demandas sociais, exigindo despesas públicas, e a legislação de responsabilidade fiscal pressionando no sentido contrário, evitando devaneios populistas que as propostas de renúncia fiscal encerram.
            Isto apesar de se ter claro que, em sociedades marcadas pela enorme disparidade social como a brasileira, qualquer medida de renúncia fiscal genérica de tributos sobre o valor adicionado, inclusive para a dita cesta básica, se mostra regressiva. Explico: como medida fiscal pelo lado da receita, ao se reduzir ou isentar de ICMS qualquer produto de consumo de massa, quando esse fato implica em redução da arrecadação, a parcela individual do valor renunciado dos ricos é muito maior do que a dos pobres.
            O rico, ainda que gaste menos que o pobre em alimentos como percentual das respectivas rendas, em valor absoluto, exatamente porque se alimenta melhor, teria benefício monetário muito superior. Para diferenciar produtos, não é preciso nada mais que diferenciar alíquotas de forma crescente com base no critério da essencialidade, lido de forma ampla e não com base no gradiente de renda.
            Voltemos aos elementos centrais da discussão em torno dos antídotos fiscais adotados pelo governo do Estado de São Paulo. Há que ampliar a discussão, evitando que se ponha toda a culpa da não-alteração do princípio da origem na legislação do ICMS nas unidades da Federação que são exportadoras internas. Para tanto, basta lembrar que os mecanismos de guerra fiscal com base nesse tributo estadual, realizados ao arrepio da legislação nacional é bem verdade, representam o mais relevante instrumento de atração de investimentos e, talvez, o único instrumento disponível para a maioria das unidades da federação.
            Sem esse instrumento, praticamente todos os principais elementos formadores de políticas públicas pró-ativas estão nas mãos do governo federal, a começar pelos recursos de financiamento que, com a derrocada dos bancos estaduais de investimentos, se concentram no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Essa centralização dos instrumentos de política no governo federal, realizada de forma deliberada no período posterior a 1964 para colocar as demais instâncias da Federação brasileira numa posição subalterna em relação ao governo central, também está no âmago do conflito federativo brasileiro.
            Sem os mecanismos da guerra fiscal, poucas unidades da Federação teriam fôlego para concretizar estratégias bem-sucedidas de desenvolvimento de suas economias. Isso se consagra como situação exatamente inversa da origem da República brasileira no final do século XIX e primeiro quartel do século XX, quando os governos provinciais dispunham de importantes instrumentos para realizar políticas consistentes, inclusive em parceria com outras províncias para a efetivação de ações de interesse comum. Essa é a conformação da principal política de concepção keynesiana, realizada antes do próprio Keynes, de valorização do café, representada pelo Convênio de Taubaté em 1903.
            Em função disso, há que se ter claro que não apenas os denominados 'estados exportadores' teriam interesse em obstar a adoção plena do imposto do valor adicionado centrado no princípio do destino. Os denominados 'estados importadores' também têm sólidos interesses a preservar, os quais somente são consistentes na estrutura tributária atual. Por exemplo, como ficariam as benesses tributárias conferidas a empresas que se instalaram na Zona Franca de Manaus, a maioria das quais cairiam por terra?
            Daí as extensas propostas de compensações sempre embutidas nas discussões sobre a reforma tributária, a qual, mais uma vez, ficou postergada nos seus elementos essenciais. Será mesmo que todo o empresariado tem interesse na sua efetivação ou essa adesão se dá em segmentos específicos? Nesse emaranhado tributário, qual a real carga tributária afeta a cada segmento produtivo? Essas respostas são mais difíceis e estão quase sempre escondidas sob a superficialidade da denúncia do tamanho da carga tributária brasileira. Para certos segmentos sociais e produtivos, isso está nítido mas pode não ser uma verdade generalizada.
            Essa discussão sobre a guerra fiscal, inserida no contexto do velho receituário liberal de defesa da compressão dos gastos públicos, sequer é compatível com a notória dívida social cujas promissórias estão sendo cobradas pela expansão da violência em todos os níveis, o que clama por mais gastos em segurança pública. No centro de todos os elementos que a entravam, está o conflito federativo e a fragilidade do Estado Nacional que, desde os anos 30s com acirramento nos anos 60s, centralizou poderes e competências, mas não teve força para impor uma ordem nacional a ser cumprida de forma consistente por todas as unidades da Federação brasileira.
            Pode verificar-se tal fragilidade tanto na representatividade popular que foi aviltada nos anos 70s, fazendo com que unidades da Federação como São Paulo estejam sub-representadas na Câmara Federal, quanto na não-estruturação de uma legislação tributária nacional que coibisse a guerra fiscal. Esta última questão é parte fundante do conflito federativo brasileiro.
            A elite brasileira carrega, desde o princípio do Brasil Nação, essa postura de postergar decisões nacionais para preservar a denominada unidade nacional. Não sem razão, o sonho da República Bolivariana de Simon Bolívar sucumbiu aos interesses localizados das várias elites regionais sul-americanas, gerando um elevado número de países, enquanto no Brasil foi mantida a unidade nacional com a manutenção da escravatura.
            Essa modalidade de trabalho compulsório era condenada em todo o mundo já nos anos 30s do século XIX e somente abolida no Brasil após lento e espinhoso processo no último suspiro dos anos 80s do mesmo século. Isto a despeito de haver sido formalmente condenada na própria época da Independência nacional por José Bonifácio de Andrada e Silva, mais que um líder, ele próprio o Patriarca da Independência.
            A discussão da guerra fiscal está sendo tratada na agenda nacional no mesmo diapasão. Tanto assim que, tomada a medida corajosa pelo governo do Estado de São Paulo, surgem reações de retaliação contra produtos paulistas pelas unidades da Federação que se consideram afetadas. Ora, essa questão está submetida há vários anos à decisão do Judiciário, com diversas argüições de ilegalidade e de inconstitucionalidade, e não ocorreu uma postulação consistente de apressamento dos julgamentos que propicie o dirimir de dúvidas legais.
            Sem equacionar essas pendências, com a adoção de um regramento jurídico consistente que elimine notórias distorções alocativas derivadas da guerra fiscal, as discussões da reforma tributária ficarão por longo tempo emperradas no elencar de compensações por eventuais perdas de receitas, algumas concretas e justas, e na busca de ampliação do período de transição para que as unidades da Federação que adotam a guerra fiscal se ajustem ao novo formato do sistema tributário. Nesse sentido, é preciso ficar claro que, na discussão para uma reforma tributária consistente, a hora exige um pronunciamento do Poder Judiciário, o qual eliminaria diversas pendências que entravam o avanço da questão no Congresso.
            A cada mobilização para a concretização da reforma tributária brasileira nos conformes da realidade atual, ampliam-se os elementos que vão impulsionar o seu postergamento, quais sejam os novos instrumentos e os novos formatos de guerra fiscal. Além das inúmeras medidas que afrontam o pacto federativo, na medida em que envolvem uma luta aberta para atração de investimento entre as unidades da Federação, há instrumentos adotados que colocam em questão o próprio Estado Nacional.
            As medidas de efeito interno afetam estados como São Paulo, que perdem mais receitas, produção e emprego, mesmo que irracionalmente se proponham a produzir para abastecer o mercado paulista. Já as medidas tributárias de favorecimento da importação de matéria-prima consistem na mais perversa face da guerra fiscal, pois negam de forma definitiva a própria concepção de Estado Nacional, sendo, portanto, inaceitáveis sob quaisquer pretextos com bases nos quais tenham sido adotadas.
            Exatamente no mesmo momento em que o governo federal, de forma correta e decidida, anuncia a ampliação e o maior rigor na importação de produtos agropecuários para eliminar a concorrência desleal¹, há unidades da Federação que não apenas ameaçam, mas praticam isenção fiscal para produtos importados como o leite em pó integral, numa clara afronta ao Estado brasileiro.
            O moderno Estado Nacional emerge da anarquia feudal exatamente para unificar, numa determinada fração de território, as cobranças de taxas que obstavam o livre trânsito de mercadorias, em especial nas rotas comerciais. Assim, a unidade territorial sob a égide do Estado Nacional submetido ao soberano absolutista, ao ordenar o livre trânsito de mercadorias, levou à criação do mercado nacional e à expansão do comércio. A centralização administrativa na figura do rei, subtraindo os poderes dos senhores sobre seus feudos, produziu o ordenamento institucional em todo território do reino, que, como gênese do Estado Nacional, forjou os alicerces do mercado nacional.
            No Brasil, esse processo de centralização tarda em conferir esse ordenamento capaz de garantir o livre trânsito de mercadorias sob a égide do mesmo arcabouço legal em todo o território nacional. Assim, mais que um conflito federativo, a guerra fiscal coloca em questão a própria noção de Estado Nacional.
            Ao adotar medidas que confrontam a perenidade dessa situação inaceitável, mais uma vez São Paulo se coloca à frente da luta pelo fortalecimento da Nação brasileira. O esperado pronunciamento do Judiciário sobre a constitucionalidade dos mecanismos de guerra fiscal colocaria parâmetros adequados à questão e agilizaria a solução da reforma tributária.

1BOUÇAS, Cibelle Maior rigor na importação de produtos agropecuários: comércio, exigências sanitárias e fitossanitárias do Brasil devem aumentar. Jornal O Valor Econômico de 28-09-2004.

Data de Publicação: 06/10/2004

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor