Miséria: diferentes identidades individuais e quantificações conflitantes

            As discussões dos programas sociais no Brasil, em todos os níveis da federação (federal, estadual e municipal), apresentam significativos desvios. As respostas quase sempre estão associadas à adoção de mecanismos de controle e de informatização de processos de acompanhamento, envolvendo a sociedade civil. A tentativa de organizar um cadastro único de pobres não surtiu resultados, dada a quantidade de erros encontrados, com o que o Brasil não conseguiria mapear seus pobres¹.
            A alternativa seria alterar o método para definir a linha de pobreza, enfrentando os desafios de corrigir o Cadastro Geral dos Pobres, considerado um instrumento de política pública, com a utilização de informações qualitativas como acesso à água, grau de educação, coleta de lixo e tipo de domicílio que seriam mais confiáveis do que as variáveis quantitativas de renda e de consumo. Assim, 'um uso mais inteligente do cadastro seria construir uma renda a partir das respostas quantitativas, em vez de insistir em utilizar a renda reportada'².
            Os desvios do Programa Bolsa Família trouxeram novamente à tona a questão da definição de miséria, na medida em que nos espaços pobres do Brasil apareceram como beneficiários desse suplemento de renda pessoas que não estariam entre os mais necessitados.
            Nesse debate, o elencar de questões culturais e morais pouco se deteve na discussão aprofundada do conceito de miséria, pois é a partir desse axioma que se constróem variáveis que permitam estabelecer os parâmetros que estruturariam o decantado Cadastro. Desde logo, esse processo permitiria colocar uma luz nas estatísticas de pobreza, gerando números de amplitudes menos discrepantes, uma vez que há estimativas que vão desde os 11 milhões de miseráveis até outras que quantificam esse contingente em mais de 47 milhões³.
            Esses resultados alarmantes, que diagnosticam fome num país que se enquadra entre os New Agricultural Countries (NACs) – nações de agriculturas mais desenvolvidas- e que é liderança mundial em agricultura tropical pela competitividade de seus agronegócios, colocam o combate à miséria como tópico prioritário na agenda de políticas públicas. Mas é preciso maior aprofundamento conceitual e empírico para que sejam encontrados os elementos definidores das políticas sociais.
            A construção desses indicadores exige aprofundada discussão sobre os parâmetros a serem mensurados, dadas as diferenças astronômicas entre as estimativas de número de miseráveis, em função do parâmetro empírico utilizado. A renda mostra-se um estimador viesado para os propósitos de medida de miséria, mesmo com a sofisticação de quantificá-la como o mínimo necessário para o consumo desejável de calorias.
            A renda, ainda que possa ser aferida com grande exatidão, o que não corresponde à realidade nos espaços em que os níveis de exclusão são mais dramáticos, de forma alguma configura uma variável que, sozinha, se preste a esse tipo de definição. Traz a renda o viés de mensurar o poder de compra em realidades em que a compra é quase ilusão dada a marginalidade em que as pessoas foram relegadas no processo de desenvolvimento.
            Aliás, nada mais relativo do que o conceito de liberdade da Doutrina Liberal, na medida em que, em sociedades iníquas, o livre arbítrio do indivíduo como melhor juiz de si mesmo, na mais pura concepção de Locke4, se mostra limitado pela renda para os que a tem, uma vez que, para muitos que não a tem, subsiste nenhuma liberdade.
            Essa precariedade do uso da renda como mensurador de desenvolvimento está demonstrada nas análises de Amartya Sen, nas quais populações de menor renda em muitos países têm expectativas de vida superiores às de populações mais ricas, como na comparação entre os homens de Bangladesh e os homens afro-americanos do Harlem na próspera Nova York. Dessa maneira, esse pensador hindu pensa o desenvolvimento como liberdade, ou seja, como um processo de expansão das liberdades humanas substantivas. Nessa concepção, o crescimento da renda representa apenas uma das facetas do processo de mudanças5.

Índices não-sintéticos de distribuição espacial

            A construção de indicadores das iniqüidades vem sendo objeto da preocupação de inúmeras pesquisas de economia política nos anos recentes. A Organização das Nações Unidas (ONU)6, no Programa de Desenvolvimento (PNUD), passou a construir e divulgar indicadores que incorporassem outras variáveis na análise de nações e regiões, que não apenas a renda per capta, medida pela divisão do Produto Interno Bruto (PIB) pela população. Essa sofisticação metodológica deu origem ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o mais conhecido no contexto mundial, além do Índice de Desenvolvimento Associado ao Gênero (IDG) e do Índice de Pobreza Humana (IPH).
            Dessa experiência de formatação de índices sintéticos, com o que se pode classificar espaços geográficos quanto ao desenvolvimento humano com base num indicador, emergiram buscas de aprimoramento para dar maior profundidade na representação da realidade. É o caso da formatação de índices não-sintéticos, que possibilita organizar sistemas de indicadores, como o Índice DNA Brasil7, elaborado pela UNICAMP em parceria com o Instituto DNA Brasil, ou ainda experiências como o Índice Paulista de Responsabilidade Social (IPRS), elaborado pela Fundação SEADE por encomenda da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo8, para classificar e avaliar o desenvolvimento social e econômico dos municípios paulistas, bem como o anunciado Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) que sofistica essa classificação ao identificar a miséria interna aos centros urbanos. Estes, na média, apresentam IPRS típico de níveis elevados de desenvolvimento humano, mas sabidamente apresentam a maior concentração espacial do número de miseráveis9, realidade desvelada quando se visualiza espaços geográficos internos menores.
            Em síntese, há disponíveis excelentes indicadores que permitem, sob vários ângulos, visualizar a distribuição espacial da miséria e a sua quantificação com base em parâmetros médios. No Estado de São Paulo, estão postos os instrumentos para a formulação de políticas públicas adequadas da ótica federal, estadual e municipal. Esses indicadores são compatíveis com decisões orçamentárias para reduzir diferenças com a plena identificação dos espaços geográficos com maiores carências. Basta para tal cumprir o artigo 156 da Constituição Paulista que determina que 'os planos plurianuais do Estado estabelecerão de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da Administração Estadual'. E, num passo seguinte, caminhar para um processo de regionalização do orçamento estadual, dado que há uma visível concentração de esforço de políticas públicas nas áreas mais desenvolvidas e mais ricas pela simples análise da localização dos equipamentos e da ação das instituições públicas.

Dificuldade de universalizar o conceito

            Entretanto, persistirá a absoluta fragilidade de conceitos e de instrumentos empíricos que permitam maior consistência operacional na identificação do indivíduo carente, ainda que se corrija esse viés de concentração espacial da renda derivado da estrutura e das políticas governamentais. Daí a dificuldade de estruturar um Cadastro Geral dos Pobres no plano federal, quando sequer isso tem sido possível nos municípios e nos estados. Se essa identificação é fundamental para as políticas sociais, não estão postos os elementos conceituais e coletivos para a sua realização.
            Numa realidade marcada pela iniqüidade como a brasileira, mais que a proliferação e o aprofundamento das desigualdades de todas as matizes, formou-se um tal nível de fragmentação social que a realidade se mostra um enorme mosaico de iniqüidades. Assim, mesmo com base numa multivariada gama de indicadores, permite-se a identificação espacial da miséria e até mesmo o estabelecimento de hierarquias entre os vários espaços geográficos quanto a esse aspecto. Porém, de forma alguma consegue-se identificar o miserável enquanto indivíduo, porque ele não se constitui num universal.
            Noutras palavras, podem-se identificar indivíduos que residem num espaço de miséria, mas há pouca segurança em estabelecer a identidade de indivíduo miserável. Em qualquer espaço de economia capitalista, uma característica inerente diz respeito à diferenciação social entre indivíduos e é preciso ter claro que ela também está presente nas realidades da miséria. A diferença entre estas e as de riqueza é que, nas primeiras, os menos favorecidos são a imensa maioria e, nas segundas, a esmagadora minoria. Contudo, os miseráveis invariavelmente estão presentes em ambas, escondidos sob a dispersão da renda média.
            Noutro exemplo de mesma renda média em situações distintas, basta cotejar a qualidade de vida de uma família de aposentados, na periferia do Jardim Ângela na Cidade de São Paulo, com a de uma família de aposentados da Chapada Diamantina na Bahia, ambas com renda mensal de dois salários mínimos. No Jardim Ângela, esses aposentados estariam frente a custos urbanos que corroem sua qualidade e vida, numa situação de pobreza. Na Chapada Diamantina, os aposentados rurais estariam entre os indivíduos mais aquinhoados com qualidade de vida superior.
            Esse fato mostra os diferentes impactos da adoção de indicadores universais como o salário mínimo face aos distintos requisitos econômicos e sociais dessas realidades. Destaque-se que a previdência social representa a mais consistente política social desenhada e operada pelo governo brasileiro.
            A questão colocada dessa forma mostra a irrelevância e a inconsistência da idéia de Cadastro Geral dos Pobres. Este consistiria num centralismo inadequado das políticas públicas para reduzir as distorções de qualidade de vida dos indivíduos no mosaico de iniqüidades da realidade brasileira que inclusive requerem instrumentos distintos de políticas. Isso porque o miserável não se constitui num universal, assumindo faces distintas em função das variáveis identificadoras da precariedade da qualidade de vida nas diferentes realidades de miséria.
            Ademais, há dificuldade de diferenciação com base na renda declarada (renda informal), dada a prevalência da informalidade nas relações sociais e econômicas nessas realidades de concentração da miséria, o que acaba privilegiando a seleção daqueles que realizaram a diferenciação para cima, obtendo maior renda informal. Ainda que com ressalvas, os movimentos sociais desses espaços incorporam a precariedade social e cultural; são operados pelas mesmas estruturas dominantes da economia informal local, gerando outra gama de distorções uma vez que essas organizações não são neutras do ponto de vista político-partidário e religioso.
            É obvio que ocorrem experiências sérias de movimentos sociais organizados, mas isso está longe de ser regra. Nessas realidades, cada caso é um caso, inviabilizando o Cadastro Geral dos Pobres, ainda que aceitável conceber um Cadastro de Beneficiários para servir de base para a análise de duplicidades e a realização da necessária fiscalização. Como método de identificação do beneficiário final, é inexeqüível enquanto universal a operação com o conceito empírico de indivíduo miserável.
            Há de se lançar mão de indicadores locais específicos para a ação das políticas sociais em espaços definidos previamente com os indicadores disponíveis. Na ótica global, há de se desenvolver o espírito de ação pública compartilhada das instâncias federativas, com foco unificado, realizado pela parceria de União, Estados e Municípios, evitando-se duplicidades pela unidade nas diferenças.

 

1 DANTAS, Fernando Brasil não consegue mapear seus pobres. O Estado de São Paulo, 26 de setembro de 2004, pág A 16.

2 DANTAS, Fernando Governo quer mudar método para definir linha de pobreza. O Estado de São Paulo, 26 de setembro de 2004, pág A 16.

3 LEAL, Luciana Nunes País tem mais de 47 milhões de miseráveis. O Estado de São Paulo, 15 de outubro de 2004, pág. B5.

4 LOCKE, John Segundo Tratado Sobre o Governo. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

5 SEN, Amartya Desenvolvimento como liberdade. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.

6 ONU: www.un.org

7 LEVY, Clayton, Para Medir o Desenvolvimento Humano, Jornal da Unicamp, pág 6, capturado em 31/09/2004, do site: www.unicamp.org.br

8 SÃO PAULO, Assembléia Legislativa do Estado de O Estado dos Municípios 1997-2000: Índice Paulista de Responsabilidade Social, São Paulo, 2003.

9 SÃO PAULO, Assembléia Legislativa do Estado de, Assembléia lança Índice Paulista de Vulnerabilidade Social, Notícia de 29/10/2004 19:27:30, do site: www.al.sp.gov.br

 

Data de Publicação: 12/11/2004

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor