Biodiesel: uma nova opção?

            A civilização do petróleo vai muito além de simples combustível que move os carros e as máquinas industriais. Há todo um complexo de indústrias petroquímicas que geram ampla gama de produtos consumidos no padrão de vida ocidental. A exploração petrolífera, enquanto fonte de energia de origem fóssil não renovável, enfrenta limites, ainda que não conhecidos na sua plenitude. Busca-se, assim, consolidar alternativas energéticas que possam mover a evolução humana, ainda que, no tempo presente, muitas delas assumam até mesmo a condição de miragem.
            A construção de opções energéticas promissoras – que superem a sociedade do petróleo enquanto elemento de transformação econômica - não exclui caminhos, entre os quais, certamente, estão os biocombustíveis. A concentração estratégica em dadas regiões do planeta das fontes viáveis de exploração de combustíveis fósseis, em especial as reservas petrolíferas, levou à formação, no mercado internacional de combustíveis, de poderosos oligopólios que controlam o fluxo de matérias-primas essenciais porque determinam a dinâmica econômica das nações.
            As opções estão na exploração de alternativas de energia renovável, que também podem ser conjugadas com menor concentração de poder econômico como os biocombustíveis. Assim, tanto pelo limite finito das reservas de petróleo, bem como das demais matérias-primas alternativas, quanto pelo poder de mercado dos oligopólios nacionais e multinacionais, as nações buscam diversificar suas matrizes energéticas para, com isso, criar alicerces menos dependentes para os respectivos processos de desenvolvimento nacional.
            A experiência brasileira mostra importantes avanços nesse campo, em especial no domínio das inovações tecnológicas. A partir da metade dos anos 70, desenvolveu-se em São Paulo o Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL), criando uma base produtiva para a produção de álcool combustível a partir de cana para indústria. Na safra 2003/04, chegou-se à cifra dos 14 bilhões de litros, sendo que a exportação de 2,2 bilhões em 2004 pressiona pelo incremento da produção com impactos na disponibilidade interna.
            O avanço foi significativo do ponto de vista tecnológico, inclusive com os recentes lançamentos de carros que podem usar mais de um tipo de combustível líquido. Porém, verifica-se um crescimento da frota que usa outra fonte de energia fóssil (os carros movidos a gás natural), enquanto a frota de carros a álcool se mantém insignificante.
            Dessa maneira, é fundamental esclarecer o porque de uma alternativa de energia renovável, que nos anos 80 chegou a rivalizar-se com a gasolina em termos de tamanho da frota, sofrendo decadência progressiva para beirar a insignificância em termos de volumes de consumo global e frota movimentada. Na verdade, quando se olha o complexo produtivo do agronegócio da cana para indústria em toda sua amplitude, verifica-se que nunca existiu uma opção pelo álcool na essência da decisão econômica. Existiu, sim, uma opção de desenvolver um segmento subsidiário que representasse alternativa para as crises cíclicas do mercado internacional do açúcar. Assim, tão logo os preços internacionais do agronegócio sacarídeo se elevavam, restringiu-se o volume de cana moída para a oferta de álcool combustível.
            A opção pelo álcool combustível enquanto biocombustível exige ainda políticas públicas consistentes, para que ele seja consolidado como opção real de desenvolvimento nacional com base em energia renovável. A produção industrial em escala exige mecanismos de estabilidade de preços e de oferta compatíveis com estratégias de médio e longo prazos, não sujeitas a manipulações conjunturais. Esse fato só é conseguido de forma consistente com a alavancagem da economia de contratos, estruturando uma economia do álcool combustível com níveis de coordenação vertical superiores aos vigentes, que não apenas como um produto alternativo ao açúcar para o agroindustrial mas um produto alternativo à gasolina para o consumidor.
            Esse dilema central pode ter encontrado uma saída tecnológica com o carro bi-combustível, que, invariavelmente, reduz a capacidade conjuntural de exercício de poder de mercado dos oligopólios do álcool formadores de preços, frente a consumidores dispersos e sem garantias como tomadores de preços.
            Nos anos 90 em diante, surgiram alternativas para a outra ponta da matriz energética, baseadas em combustíveis líquidos, ou seja, a possibilidade de produção de biodiesel na forma de ésteres metílicos (óleo vegetal bruto submetido ao processo de transesterificação). Desse processo, resultam o biodiesel, a glicerina e a torta de oleaginosa. A matéria-prima para a produção do biodiesel pode ser qualquer produto vegetal (girassol, soja, dendê, amendoim, mamona, macaúba, pequi, etc.) ou animal (sebo de boi, por exemplo). O esterificador pode ser o etanol, produto importante em São Paulo, que entra na proporção de até 20% como insumo.
            A logística do processo implica no casamento entre os dois segmentos de biocombustíveis (álcool de cana e biodiesel). Essa é uma premissa de qualquer processo que leve realmente o biodiesel a se constituir numa alternativa de consumo em escala. Ou seja, o complexo produtivo ensejado deve preencher os requisitos da produção industrial em escala com participação no mercado compatível como opção relevante para a mudança estrutural do perfil e do tamanho da demanda.
            Há que se fugir do 'simplorismo' da submissão de lógicas estratégicas globais a preceitos estreitos como o casamento antecipado entre estrutura produtiva e dada opção de matéria-prima, mesmo porque pode haver mais de uma com viabilidade. Isto sem esquecer que em escala industrial de ésteres metílicos como biodiesel, além de óleo, é necessário o álcool no mesmo espaço geográfico, sem o que os custos de transporte seriam proibitivos.
            Os impactos econômicos e ambientais, decorrentes do sucesso na implantação do uso generalizado do biodiesel de vegetais, podem ser verificados. No contexto econômico, o Brasil consome cerva de 37 bilhões de litros de petrodiesel a cada ano, dos quais 7,5% em média importados, com o que a adição de 5% de biodiesel representaria economia de divisas. De outro lado, há impactos ambientais decisivos como a redução da emissão de gás carbônico (-7% para 5% de adição, -9% para 20% de adição e -46% para 100%); redução de hidrocarbonetos não-queimados (-7%, -9% e -36% para 5%, 20% e 100% de adição); redução da emissão de enxofre (-17%, -25% e -100% para 5%, 20% e 100% de adição); e redução de emissões de material particulado - fumaça preta (-13%, -23% e -68% para 5%, 20% e 100% de adição).
            Não há dúvidas de que os efeitos do uso do biodiesel serão significativos, se este for viável do ponto de vista da produção e do consumo em escala industrial. Entretanto, há de se debruçar na estruturação da cadeia de produção em toda a sua amplitude, desde a consolidação técnico-produtiva até os mecanismos e as concepções de coordenação vertical, passando pelos mecanismos de financiamento do investimento.
            Muito se tem escrito sobre o uso de biodiesel de colza silvestre na Alemanha, sem dizer que esse processo se viabiliza com base nos subsídios da Política Agrícola Comum da União Européia e na tradição do uso da colza como combustível. No Brasil, há pouco espaço para políticas similares, baseadas em subsídios com recursos públicos escassos.
            De qualquer forma, o biodiesel tem sido defendido como alternativa, a partir do sucesso brasileiro no complexo soja, cuja produção é crescente devido às produtividades de cerrado maiores do que as norte-americanas. Muitos pensam esse processo com base na verificação da experiência da produção de etanol de milho, desenvolvido no mercado estadunidense para reduzir as pressões da oferta de milho sobre os preços do produto.
            O sucesso da soja, entretanto, pode ser um complicador na consolidação dessa alternativa energética, exigindo-se que esse novo agronegócio tenha nítida viabilidade econômica. Para isso, há um caminho a percorrer, qual seja, montar uma agroindústria de biodiesel em escala industrial e desenhar toda a estrutura de produção de matéria-prima e de logística de estocagem para que se tenha o 'módulo agroindustrial comercial do biodiesel'. Sem isso podem ser repetidos os transtornos vividos na cadeia de produção do álcool combustível e o biodiesel não passar de mera alternativa.
            Há, assim, dificuldades estruturais pois o biodiesel de soja seria mero escape de supersafras conjunturais, ainda que o principal produto dessa oleaginosa seja o farelo de soja. O mesmo parece ser o caso da mamona, que isolada tem alcance limitado e dificuldades técnicas, à parte da viabilidade econômica, e não há complementaridade sazonal com a cana para álcool, em especial no Nordeste.
            De outro lado, enquanto alternativas, há amplas opções de matérias-primas a desenvolver como biodiesel, ampliando e consolidando a gama de matérias-primas para fugir do monopólio produtivo de uma cultura. Com isso, se evitaria um dos equívocos do álcool cujas alternativas, como a mandioca e madeira, foram abandonadas, sem sequer persistir no desenvolvimento de processos que pudessem superar constrangimentos de economicidade.
            Daí a importância de se pensar no desenvolvimento da produção de biodiesel a partir de outras alternativas vegetais. Estudos apontam como matérias-primas alternativas, em ordem decrescente de produção por hectare/ano, as lavouras de milho (160 litros), algodão (250 l), soja (400 l), girassol (800 l), mamona (1.200 l), babaçu (1.600 l), pequi (3.100 l), macaúba (4.000 l) e dendê (5,950 l). Nesse conjunto, as culturas anuais apresentam menor oferta por unidade de área, ao se considerar apenas um ciclo, variando de 160 l/ha a 800 l/ha. Como opções de maior volume de produção física por hectare, têm-se a manona, numa posição intermediária, e as palmáceas nacionais e o pequizeiro, como potenciais elevados de produção de óleo vegetal.
            Não há como tomar a decisão focando apenas uma alternativa, visto que, para a produção industrial em escala de biodiesel, estariam plenamente desenvolvidas e organizadas as estruturas das cadeias de produção de grãos e fibras. Já para as demais cadeias há que serem introduzidas inovações agronômicas que consolidem a viabilidade produtiva com base na escala e, passo seguinte, a estruturação de mecanismos de coordenação que consolidem novos negócios com implicações favoráveis no emprego e na renda.
            Do ponto de vista sazonal, em especial quanto à demanda por mão-de-obra, há espaço para compatibilizar a complementaridade das safras da cana e de oleaginosas (soja e macaúba, para citar duas opções). Ao mesmo tempo, a opção por lavouras perenes (todas as palmáceas e o pequi) permitiria renda estável, o que poderia sustentar a organização de agronegócios familiares na oferta da matéria-prima. Toda essa engenharia produtiva deve ser desenvolvida para que a alternativa se consolide como opção de agronegócio rentável.
            Nesse sentido, há de se consolidar esforços em três níveis que, no caso paulista, envolvem a definição de:

  • parâmetros e medidas para o estabelecimento de segmentos produtivos de biodiesel competitivos nos agronegócios, com ênfase nas culturas cuja potencialidade deva ser testada com pesquisa agronômica em plantios em escala (como dendê, babaçu e macaúba), já que há amplo conhecimento para soja, girassol e mamona. Isto poderia ser fruto de pesquisa com essências de florestas implantadas nos pólos regionais da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), para averiguação técnica e econômica da rentabilidade e da produtividade, a começar por Alta Paulista e Alta Sorocabana, regiões carentes de opções;
  • implantação de protótipo de planta agroindustrial de biodiesel a partir de diversas matérias-primas, com tecnologia dominada pelo Laboratório de Desenvolvimento de Tecnologias Limpas (LADETEL), da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, de maneira a permitir os ajustes e as inovações de processos industriais em escala que possam viabilizar a economicidade do uso generalizado do biodiesel;
  • rede de inovação em biodiesel, em todas as etapas da cadeia de produção, do campo ao tanque, coordenada pela Secretaria de Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo, visando amplificar o esforço de pesquisa tecnológica e a troca de informações para a rápida disseminação do conhecimento gerado. Essa mesma rede, no campo da economia da tecnologia, deve ter como objetivo estruturar a engenharia de financiamento do investimento necessário para a implantação da cadeia de produção.
            A lógica indica que se tem no Brasil duas alternativas de biocombustível (álcool e biodiesel) complementares na matriz nacional de combustíveis líquidos. Porém, há de se buscar mecanismos de consolidação como negócios competitivos, engendrando o desenvolvimento de cadeias de produção autônomas, que deixariam de ser apêndices de cadeias de produção de commodities, no caso o açúcar e o farelo de soja.
            Há pouca sustentação na projeção de consumo de 2 bilhões de litros de biodiesel para mistura de 5% nos 36 bilhões de litros anuais de petrodiesel. As exportações de álcool mais que dobraram nos últimos 2 anos, pressionando a expansão canavieira e impondo limites ao uso de biodiesel na forma de éster metílico que leva 20% de álcool no processo de transesterificação.
            A engenharia de produção é muito mais complexa que fabricar biodiesel, envolvendo questões cruciais para a economicidade do processo, como os custos e a sazonalidade de produção que obrigam o carregamento de estoques de matérias-primas por vários meses a juros elevados, dada a menor amplitude dos períodos de safras das oleaginosas em relação à cana. Tem-se, assim, apenas a alternativa, e não a opção. A continuar como está, o biodiesel não será mais que uma boa idéia, dentre tantas outras vencidas na história, ignoradas pela economia enquanto combustíveis desse motor das transformações da sociedade.

Data de Publicação: 29/11/2004

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor