Agricultura: crescimento e desemprego

            O ano de 1994 constitui-se marco inicial das diversas séries históricas de desempenho macroeconômico, uma vez que há mudança radical no comportamento dos indicadores. Entretanto, o Produto Interno Bruto (PIB) aumentou apenas 19,9% entre 1994 e 2003, de R$ 1,263 bilhão para R$ 1,514 bilhão, enquanto a população cresceu 12,7%, de 157 milhões para 177 milhões de pessoas no mesmo período.
            Esse crescimento da riqueza nacional revelou-se reduzido frente às necessidades de incorporação da imensa massa de excluídos ao mercado de consumo. Tanto que a renda per capita cresceu somente 6,3% em dez anos, de R$ 8.057/pessoa-ano, em 1994, para R$ 8.564/pessoa-ano em 2003 (tabela 1). Esse incremento insignificante da renda média, para determinadas faixas sociais como os desempregados e os de baixa renda, pode ser inexistente pelo aprofundamento dos níveis de concentração, o que implica na limitação do tamanho e do perfil da demanda.

Tabela 1 - Produto Interno Bruto (PIB), população e PIB per capita, Brasil, 1994 e 2003
 

Ano População (milhões)
PIB (R$ bilhões ) (1)
PIB per capita (R$)(1)
1994
157
1.263
8.057
2003
177
1.514
8.564
Var %
12,74
19,87
6,29
(1) A preços de 2003
Fonte: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1

            As análises desse período têm pontuado o papel relevante da agricultura nesse processo, tanto pela presença exportadora após a securitização das dívidas do crédito rural quanto pela desoneração das exportações e outras políticas comerciais de estímulo, bem como pela mudança da política cambial do início de 1999. Entretanto, da ótica da renda interna, os resultados em dez anos não revelam nada de extraordinário, olhando apenas o segmento rural do complexo produtivo da agricultura.
            O PIB setorial cresceu 24,9% no mesmo período, de R$ 111 bilhões para R$ 138 bilhões, com taxa anualizada que permite se chegar a 2,5%, nível muito inferior ao desejável. Ainda assim, a renda agropecuária aumentou em ritmo médio superior ao dos demais setores, cuja renda evoluiu 19,4% no período, de R$ 1,152 bilhão para 1,376 bilhão, com taxa anual de 2,02%, praticamente similar à verificada para o PIB total (de 2,03% ao ano).
            Assim, a agropecuária, que cresceu a taxas médias anuais maiores do que as dos demais setores no período 1994-2003 mas em níveis muito menores que os desejados. Com isso, elevou sua participação no produto nacional de 8,7% para 9,1%, (tabela 2). O dinamismo setorial não se mostra distinto da média da economia, mesmo que se aceite os efeitos multiplicadores desse crescimento agropecuário para todo o complexo produtivo da agricultura, como as agroindústrias de insumos e máquinas e as de processamento.

Tabela 2 - Produto Interno Bruto (PIB), agropecuária e demais setores, Brasil, 1994 e 2003
 

Ano
Demais Setores (1)
Agropecuária (1)
Participação Setorial(%)
1994
1.152
111
8,75
2003
1.376
138
9,11
Var %
19,44
24,87
-
(1). Em R$ bilhões de 2003.
Fonte: IBGE

            Os impactos no emprego mostram bem o caráter das transformações recentes, em especial quando se constata a elevação do número de desempregados, de 4,4 milhões em 1993 para 8,5 milhões em 2003, segundo o IBGE. No mesmo período, a População Economicamente Ativa (PEA) evoluiu de 70,9 milhões para 87,7 milhões de pessoas2.
            O aumento do desemprego deriva do crescimento insuficiente do emprego, pois o pessoal ocupado cresce de 68,1 milhões em 1994 para 79,2 milhões em 2003, correspondendo à abertura de 11,1 milhões de vagas no período. A agropecuária teve um desempenho decepcionante, uma vez que apenas 16,4 milhões de trabalhadores atuavam em 2003, dos 18,2 milhões ocupados pelo setor em 1994, com a perda de 1,8 milhão de ocupações produtivas no campo. Isso numa realidade em que a área de lavouras cresceu 4,6 milhões de hectares (representa mais de 70,1% de toda lavoura paulista que abrange 6,5 milhões de hectares), de 52,1 milhões de hectares para 56,7 milhões de hectares.
            Dessa maneira, a agropecuária perde significância no emprego total, cuja proporção reduziu-se de 26,7% em 1994 para 20,7% em 2003 (tabela 3), fruto da estrutura do atual padrão das lavouras brasileiras, que diminuiu a oferta de ocupações produtivas apesar da significativa expansão na área cultivada.

Tabela 3 - Pessoal ocupado (PO) total e agropecuária e área de lavouras, Brasil, 1994 e 2003
 

Ano
Pessoal Ocupado (nº)
Área de Lavouras (há)
 
Total
Agropecuária
%
1994(1)
68.109.183
18.203.999
26,73
52.147.461
2003
79.250.627
16.409.383
20,71
56.748.714
Var (nº)
11.141.444
-1.794.616
-
4.601.253
(1). Como não foi realizada a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) em 1994, utilizou-se a média das PNADs de 1993 e 1995
Fonte: IBGE

            O pessoal ocupado nos demais setores apresenta incremento significativo de 12,9 milhões de ocupações no período 1994-2003, passando de 49,9 milhões de pessoas para 62,8 milhões em 2003. Esse crescimento é concomitante com a queda de 5,1% do valor adicionado médio por pessoa ocupada, de R$ 23,1 mil para R$ 21,9 mil, denotando o incremento das ocupações em segmentos com menor impacto no valor adicionado global.
            A renda criada por pessoa ocupada nos demais setores ainda é muito superior à da agropecuária, ainda que tenha diminuído de 10,8 vezes para 9,0 vezes entre 1994 e 2003 (tabela 4). Tal diferencial decorre diretamente do efeito multiplicador de renda pela maior automação e mecanização de processos nos demais setores da economia em relação à agropecuária. De outro lado, mostra, ainda, o amplo espaço para o crescimento da produtividade do trabalho na agropecuária, a exemplo do que já ocorre em cadeias de produção relevantes como a cana para indústria e a soja.

Tabela 4 - Pessoal ocupado, PIB por pessoa e relação entre demais setores e agropecuária, Brasil, 1994 e 2003
 

Ano
Pessoal Ocupado
PIB por pessoa (1)
Relação PIB por pessoa (Demais Setores/agropecuária)
1994
49.905.184
23.083,77
10,84
2003
62.841.244
21.896,45
9,00
Var %
12.936.060
-5,14356
-
(1) Em R$ bilhões de 2003
Fonte: IBGE

            Essa característica típica da agropecuária brasileira, de fornecedora de oportunidades de trabalho com menor exigência de qualificação formal, gerando menos valor adicionado por pessoa ocupada, vem se alterando de maneira crescente ainda que em ritmo inferior à média da economia. Estudos mostram que 'o grau de instrução média do trabalhador agropecuário paulista cresceu no período (1985-2002), mas ainda é o mais baixo entre todos os setores da atividade econômica'3.
            Mais ainda, a distribuição geográfica do pessoal ocupado na agropecuária, segundo a PNAD 2003 do IBGE, estava assim dispersa: 402,6 mil na região Norte (2,5%), 8,1 milhões no Nordeste (49,6%), 3,5 milhões no Sudeste (21,8%), 3,2 milhões no Sul (19,9%) e 1,0 milhão no Centro Oeste (6,2%). O aprofundamento do processo de modernização agropecuária, nos marcos do modelo texano de lavouras de escala, mesmo no Sul-Sudeste teria implicações significativas na redução do nível de emprego.
            Se pensada uma lavoura nordestina com similar padrão, os resultados seriam dramáticos. É possível mesmo afirmar que a diferença significativa do valor adicionado médio por pessoa ocupada, entre a agropecuária e os demais setores, deriva desse contingente ocupado na agropecuária nordestina, que representa quase a metade do total nacional sem contrapartida proporcional na geração de renda.
            Muitos defensores da relevância setorial contra-argumentam que a perda no campo seria compensada pelo crescimento dos serviços e nas indústrias da agricultura, pela maior agregação de valor, na medida em que a expansão do atual padrão agrário tem efeitos dramáticos sobre a ocupação agropecuária. Entretanto, nada mais falsa que essa alternativa apresentada com base em paradigmas equivocados.
            Nesses segmentos, a exigência de escolaridade média é crescente. Tanto assim que, quando comparada a PNAD 1993 com a PNAD 2003, as pessoas ocupadas com menor escolaridade perderam a expressiva cifra de 5,9 milhões de postos de trabalho entre 1993 e 2003. Já o maior crescimento se deu na faixa de maior escolaridade que contempla todos os que terminaram o segundo grau, onde o número de pessoas ocupadas cresceu 13,2 milhões (tabela 5).
            Firma-se o equívoco da afirmação que os 1,8 milhão de pessoas que deixaram de obter ocupação na agropecuária foram absorvidas pelos demais elos das cadeias de produção. Se já na agropecuária a maquinaria e a complexidade do manejo exigem padrões mais elevados de escolaridade, nos demais setores isso é mais aprofundado e evidente, em especial nas agroindústrias.
            O emprego no conjunto dos agronegócios pode crescer, mas não se destina ao mesmo trabalhador que é excluído pela modernização do campo e, sim, a outros de qualificação superior. A questão crucial está na abertura de oportunidades para essa legião de brasileiros de baixa qualificação formal excluídos da agropecuária e da construção civil que se modernizam em ritmo crescente.
            Essa crescente inempregabilidade estrutural mostra-se preocupante no campo e na cidade no curto prazo. No longo prazo, deve se persistir na generalização dos padrões de escolaridade formal com investimentos em educação para que os filhos tenham maior chance que seus pais.

Tabela 5 - Escolaridade do pessoal ocupado, Brasil, 1993 e 2003
 

Ano
Pessoal Ocupado por Faixa de Escolaridade(milhões de pessoas)
Até 3 anos
De 4 a 7 anos
De 8 a 10 anos
11 anos ou mais
Total
1993
23,80
21,80
8,20
12,60
66,40
2003
17,90
22,30
13,00
25,80
79,00
Var
-5,90
0,50
4,80
13,20
12,60
Fonte: PNADs de 1993 e de 2003 do IBGE citadas por REDHER2

            No caso da agropecuária, é importante destacar as relações que indicam o crescimento da produtividade setorial. A área de lavouras por pessoa, por exemplo, cresceu 20,7%, de 2,9 hectares para 3,5 hectares no período 1994-2003, mostrando diretamente os efeitos da crescente mecanização de processos.
            Outra informação relevante é o valor adicionado por hectare que cresceu apenas 14,2% no período, de R$ 2.128,58 para R$ 2.431,77, portanto, a taxas menores que a média da economia, exigindo incrementos da escala para impulsionar crescimentos mais significativos da renda individual dos agropecuaristas. De outro lado, o valor adicionado por pessoa ocupada evoluiu de R$ 6.097,56 para R$ 8.409,82, revelando incremento de 37,9% na produtividade do trabalho enquanto geração de riqueza setorial (tabela 6).
            Em linhas gerais, esses indicadores da agropecuária estão em conformidade com o padrão de desenvolvimento impulsionado, centrado nos ganhos de escala e na produtividade dos fatores, em especial do trabalho.
            O crescimento da agricultura, nos dez anos posteriores a 1994, propiciou incremento da renda agropecuária a taxas de 2,5% ao ano, enquanto a economia como um todo alcançou 2,03% ao ano. Ambos os níveis estão abaixo do desejável e do patamar histórico.
            Mais dramático, o emprego agropecuário viu reduzidos 1,8 milhão de postos numa economia que aumentou 11,1 milhões de postos no período. Essa pressão desempregadora, que atua sobre a população de menor escolaridade no campo e na cidade, revela contornos de dramaticidade social, em especial no campo nordestino onde ainda está concentrado enorme contingente desse perfil de trabalhadores.
            Políticas compensatórias representam o caminho a seguir, para ampliar a base de sobrevivência desses brasileiros nos seus locais de origem, associadas a investimentos em educação para que os filhos tenham melhor oportunidade que os pais. Outro rumo para a redução da perda de postos de trabalho no campo é romper com a quase exclusividade das lavouras de escala, no padrão texano das commodities, de maneira a incrementar lavouras mais intensivas em trabalho, no padrão californiano das lavouras familiares de frutas, olerícolas e café.

Tabela 6 - Área e valor adicionado por pessoa ocupada e valor adicionado por unidade de área, agropecuária, Brasil, 1994 e 2003
 

Ano
Área por pessoa (ha) 
PIB por hectare (R$) 
PIB por pessoa (R$)
1994(1)
2,86
2.128,58
6.097,56
2003
3,46
2.431,77
8.409,82
Var %
20,73%
14,24%
37,92%
Fonte: IBGE

            A agregação de valor em todos os agronegócios - que eleva o multiplicador da renda setorial de cerca de 5 para cada unidade monetária gerada no campo brasileiro para algo em torno de 10 como verificado na agricultura paulista - é outra alavanca para abrir novos postos de trabalho. A reforma agrária ainda representa opção para criar um dique de contenção da exclusão social, em espaços específicos do rural brasileiro, não como mera reprodução fragmentada e ineficiente do padrão das commodities tal como está atualmente desenhada.
            De qualquer maneira, o crescimento econômico na agropecuária, com perda de postos de ocupação por quem tem poucas chances de obtenção de outra oportunidade, pode magnificar o pior dos carmas brasileiros: mais grave que o propalado carma da terra, é o carma do desenvolvimento com aprofundamento das iniqüidades. O superávit da balança comercial sucumbe ao déficit de perda de postos de trabalho na contabilidade social da agropecuária brasileira nos últimos dez anos.

1 IBGE: www.ibge.gov.br

2 REDHER, Marcelo Desemprego quase dobra em dez anos. O Estado de São Paulo, 15 de novembro de 2004, p. B1 (Caderno Economia & Negócios)

3 ANDRIETTA, Antônio J. Evolução do Perfil dos Trabalhadores na Agropecuária Paulista de 1985 a 2002. Revista Informações Econômicas 34(9):7-19, 2004
 
 

Data de Publicação: 02/12/2004

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor