Mercosul dez anos depois: acelerar ou retroceder, eis a questão?

            Decorridos dez anos da assinatura do Protocolo de Ouro Preto, a Cúpula do Mercosul, encerrada em 18 de dezembro novamente em Ouro Preto, tinha tudo para ser um encontro para afirmação de união entre os sócios signatários, através da declaração de avanços institucionais imediatos para a consolidação da União Aduaneira e prosseguimento em direção à criação efetiva do Mercado Comum do Cone Sul (1).
            Essa expectativa não se confirmou pelas dificuldades que persistem nas relações entre os seus países membros, que na realidade resultam das grandes diferenças existentes entre suas economias. Assim, tão importante quanto o endurecimento nas posições de Brasil e Argentina na solução de suas divergências comerciais - intensificadas desde o mês de julho quando da imposição pelo governo argentino de cotas e licenças prévias de importação para os eletrodomésticos brasileiros -, foi a resistência do governo do Paraguai em aceitar o compromisso de eliminação imediata da dupla cobrança da Tarifa Externa Comum (TEC), por ser essa uma fonte importante de arrecadação (orçamento) para aquele país, enquanto esta era justamente a posição defendida pelo Uruguai, porque sobre boa parte dos bens finais que comercializa incide a bi-tributação, tornando-os menos competitivos.
            Além disso, a despeito de serem todas economias em desenvolvimento, a posição brasileira é de vantagem comparativa para a maioria dos segmentos industriais e em grande parte da pauta agrícola, e de maior dinamismo econômico em relação aos outros membros, o que certamente contribui para a maior disposição de seu governo em acelerar o processo de integração. Esse desequilíbrio econômico entre as partes, assim como o reconhecimento de que os benefícios da integração não são apropriados por todos os setores econômicos, mas sim que se trata de um jogo em que haverá perdedores entre os envolvidos, faz com que haja defasagem entre a velocidade de integração desejada pelos parceiros, influencia na defesa dos interesses e, conseqüentemente, na decisão das medidas adotadas, conforme mostrou o encerramento da última Cúpula.
            Seriam essas diferenças irreconciliáveis o suficiente para justificar a discussão de todo o processo de integração, permitindo, inclusive, como alternativa o retrocesso do estágio atual de União Aduaneira para Zona de Livre Comércio? Ou, em sentido oposto, o caminho seria atropelar o processo necessário de ajustes e adotar medidas de impacto para 'impressionar' nossos interlocutores externos, convencendo-os da irreversibilidade do processo iniciado há dez anos?
            Num primeiro momento e considerada a experiência do North American Free Trade Agreement (NAFTA), até por ter sido Acordo firmado em janeiro de 1994, ou seja, praticamente no mesmo período que o Mercosul, a segunda alternativa seria a mais recomendada. Contudo, há uma diferença fundamental entre os dois blocos que inviabiliza a adoção dessa alternativa, isto é, no jogo de forças do NAFTA havia, e assim permanece, uma economia mais forte, não apenas no estrito espaço do bloco mas de caráter mundial, a norte-americana. Essa condição permitiu aos EUA, ao mesmo tempo, imporem condições e fazerem concessões ao México e Canadá de tal forma que as divergências, que ainda hoje não são pequenas e tão pouco em pequeno número, sejam tratadas sem que assumam o perfil de crise como ocorre no Mercosul. Embora a economia brasileira assuma esse caráter relativo no bloco, seu desempenho ainda está muito aquém do necessário para que possa permitir concessões, por exemplo, como as impostas e/ou desejadas pela Argentina, sem que a discussão assuma o tom que adquiriu no período mais recente.
            Para a primeira alternativa, tomar a história do bloco europeu como parâmetro se apresenta como o mais indicado por, assim como o Mercosul, também não apresentar a assimetria de poder econômico e político de uma das partes quando de sua criação. Iniciada com a formação da Comunidade Européia de Aço e Carvão, em 1951; depois transformada em Comunidade Econômica Européia (CEE) pelo Tratado de Roma em 1957; e ratificada pelo Tratado de Maastricht em 1993, a União Européia se consolidou ao longo de quatro décadas e não pára de se 'reinventar' para continuar sendo o maior espaço comercial do mundo. E sua experiência mostra que para que um bloco torne-se uma força hegemônica faz-se necessário assumir que se trata de um processo contínuo de aprimoramento de suas normas e instituições para, respeitando as diferenças, buscar soluções que as corrijam ou as minimizem, e de renovação de compromissos.
            Portanto, a questão correta que deveria ser colocada é como avançar com responsabilidade? A Cúpula de Ouro Preto apontou nessa direção, por exemplo, ao fixar um prazo para a retirada da cobrança da dupla TEC acompanhada de, entre outras medidas, criação de um fundo para transferir ao Paraguai parte da receita que hoje é recolhida com a cobrança da TEC; e ao aprovar a criação de um fundo estrutural para diminuir as desigualdades regionais, o que permitirá aos governos locais pensarem enquanto unidades independentes e agirem enquanto um grupo com interesses comuns.
            Ainda que a defesa de interesses seja legítima quando baseada no argumento de não agravar as diferenças existentes, essas desigualdades se constituem nos principais entraves aos avanços necessários para que o bloco possa cumprir um de seus objetivos mais importantes que é o fortalecimento conjunto dos países membros nas negociações extra-bloco, como as em curso com a ALCA e União Européia.

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1(Zona) Área de Livre Comércio – eliminação de barreiras tarifárias no comércio de bens (mercadorias).
  União Aduaneira – eliminação de barreiras tarifárias entre os membros e adoção de Tarifa Externa Comum (TEC) para os demais parceiros comerciais.
  Mercado Comum — circulação livre de bens, serviços, capital e mão-de-obra entre os Estados-membros. Como não há obstáculos relacionados com a nacionalidade dos cidadãos, espera-se uma harmonização legislativa em questões trabalhistas e previdenciárias.

Data de Publicação: 23/12/2004

Autor(es): Valquiria da Silva Consulte outros textos deste autor