Construindo a Rede Paulista de Agroecologia

            O movimento de agricultura orgânica em São Paulo desenvolveu-se simultaneamente ao do resto do país, como resposta ao avanço da agricultura quimificada. Antecede a este movimento, de base nacional, experiências trazidas por grupos de migrantes que aportaram no país com seus princípios filosóficos e espirituais.
            Destacam-se, particularmente em São Paulo, a agricultura biodinâmica, que se desenvolveu dentro do contexto da antroposofia de Rudolph Steiner, e a agricultura natural, baseada nos ensinamentos de Mokiti Okada. Além destas correntes dominantes, surgem também simpatizantes de outros movimentos menos conhecidos, mas que foram responsáveis pelo fomento de formas alternativas de agricultura com impacto localizado. Neste último grupo, podem-se mencionar a Yamaguishi, em Jaguariuna, e a Terra e Saúde do Suzuki, em Caucaia do Alto, entre outros.
            Em 1989, todas estas frentes consideraram relevante, para o avanço do movimento no Estado, se integrarem, de maneira a dar origem à formação de uma nova entidade, a Associação de Agricultura Orgânica (AAO)1. Através dela, criou-se a feira de orgânicos no Parque da Água Branca, na cidade de São Paulo, ponto de referência e de encontro do movimento no Estado. Foi também através dela que se trouxe a International Federation of Organic Agriculture (IFOAM)2, para realizar seu encontro anual em São Paulo em 1992. A AAO desempenhou este papel de articulação até recentemente quando ainda mantinha entre seus conselheiros representantes das diversas entidades.
            Dada as características agrárias, demográficas, econômicas e culturais do Estado, o movimento orgânico paulista voltou-se principalmente para o desenvolvimento do mercado. Criou-se o sistema de certificação dentro das várias entidades tradicionais do movimento paulista, identificadas por terem participado da criação da AAO3. Várias delas criaram entidades independentes para fazer frente às exigências internacionais para organismos certificadores.
            O desenvolvimento do movimento orgânico estadual foi marcado pela constituição de canais de comercialização no formato desenvolvido pelas entidades ligadas à Igreja Messiânica, particularmente a Korin, e ao movimento antroposófico como o Sítio Boa Terra, e por empresas privadas, com formas jurídicas diversas, como o Sítio São Francisco, a Horta e Arte e, mais recentemente, a Associação de Produtores Orgânicos de Ibiúna (APOI), a Cultivar, etc.... que se voltaram fundamentalmente à comercialização através dos supermercados.
            Os preços elevados praticados pelos supermercados tornaram a produção orgânica paulista privilégio de consumo da classe de renda mais elevada. As feiras apresentam em alguns casos preços até 100% abaixo do praticado nos supermercados, mas o diferencial de preço em relação ao produto convencional, embora variável de acordo com o produto, tem servido de grande estímulo para atrair novos produtores para o setor.
            O encadeamento da produção orgânica tem recebido investimento de novos atores que se caracterizam por maior capacidade financeira, eficiência produtiva e logística, acirrando a competição no setor e criando sinais de expulsão de agricultores orgânicos tradicionais com maior capacidade de resposta à redução das suas margens de lucro. A tradicional agricultura familiar orgânica parece estar se ajustando a estas mudanças de mercado através da redução da sua lucratividade.
            Esta tendência à expansão da área cultivada com orgânicos, na medida em que o mercado se expande, já foi identificada nos mercados europeu e norte-americano. A falta de estatísticas adequadas impede a avaliação do que está ocorrendo em São Paulo, mas há indícios de que entre os tradicionais agricultores familiares orgânicos do Estado ela venha também ocorrendo.
            Por outro lado, o movimento orgânico brasileiro considera a agricultura orgânica como uma importante estratégia de capitalização da agricultura familiar. O movimento internacional, a Via Campesina4, também o faz. Isto já era reconhecido pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA)5 ao formular sua política. Recursos para capacitação em agroecologia fazem parte dos seus editais e já mostram os primeiros frutos, inclusive em São Paulo.
            No governo paulista, o Instituto de Terras de São Paulo (ITESP)6 acaba de terminar projeto financiado com estes recursos. A Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI)7 vem promovendo a integração das atividades de seus técnicos que trabalham com agricultura familiar e agricultura orgânica, os quais têm desenvolvido projetos nesta direção.
            O Movimento Sem Terra (MST), da região de Ribeirão Preto, vem desenvolvendo capacitação em agroecologia através de um centro de formação. A Federação de Agricultura Familiar (FAF) - através do Sindicato dos Trabalhadores do Vale do Ribeira (SINTRAVALE) e do Programa da Terra (PROTER) - vem capacitando agricultores do Vale do Ribeira em agroecologia e em sistemas agroflorestais. O Giramundo-mutuando vem fomentando a agroecologia na região de Botucatu.
            A Federação dos Trabalhadores Agrícolas do Estado de São Paulo (FETAESP)8 abriu espaço de comercialização, junto a sua sede, para a produção orgânica. O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR)9 e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE)10 estão organizando cursos e trabalhando a organização de produtores na área de agricultura orgânica. Desta forma, não é somente o mercado de orgânicos que se vem expandindo no Estado mas também o número de novos produtores orgânicos familiares.
            Diante da crescente expansão do setor orgânico e do crescente interesse da agricultura familiar paulista pelo que entre nós se associa à denominação de agroecologia, surge a indagação sobre a existência de representação deste segmento no movimento orgânico paulista.
            Em São Paulo, a identidade da agricultura familiar11 é frágil. Seu atendimento por parte da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, das cooperativas e da organização sindical não se tem pautado pela preocupação em avaliar se este público, com maior dificuldade de atendimento, tem sido contemplado nas suas estratégias de ação. Não se tem desenvolvido estratégias para garantir o atendimento deste público como se observa em outras realidades.
            O movimento orgânico paulista se insere nesta mesma realidade. A AAO, em seu novo estatuto, expressa com clareza seu foco na agricultura familiar . A prática da entidade sempre foi a de trabalhar com este segmento de agricultores, através de seus projetos. No entanto, reduziram-se os projetos que desenvolve. Neste sentido, vem se desenvolvendo algo novo, ou seja, uma articulação dos mais diversos movimentos existentes em São Paulo: da permacultura à economia solidária, através do que se vem intitulando de Pró-rede paulista de agroecologia. A Pró-rede surge a partir das articulações nacionais voltadas à estruturação do mercado orgânico.
            Em agosto de 2003, aconteceu no Rio de Janeiro o I Encontro Nacional de Agroecologia. Durante este evento, foi criado um grupo de trabalho sobre certificação para discutir a questão do arcabouço legal, particularmente a Instrução Normativa (IN) 006 que estabelecia como se daria o processo de credenciamento das certificadoras no país. Deste evento saiu uma moção solicitando a paralisação do processo em andamento no Ministério da Agricultura e o comprometimento para agendar um Encontro Nacional do Movimento Orgânico a fim de debater novos encaminhamentos.
           Neste novo encontro, formou-se o Grupo de Agricultura Orgânica (GAO) que veio posteriormente a se desmembrar em vários subgrupos, entre eles, o de Certificação Participativa em Rede (CPR). Este subgrupo formulou um projeto para ser financiado pelo MDA, que além de viabilizar a assessoria para a regulamentação da CPR também gerou recursos para a organização de oficinas nas várias regiões do país. O objetivo dessas oficinas é o de avaliar o interesse e a possibilidade de desenvolver a organização de base e o processo de certificação participativa, nacionalmente.
            Neste sentido, o projeto em São Paulo vem sendo desenvolvido com a finalidade de construir a Rede Paulista de Agroecologia e buscar subsídios para a regulamentação da lei orgânica brasileira, no que se refere à certificação facultativa na comercialização direta de agricultores familiares. Também propõe discutir a construção de uma proposta de certificação adequada à agricultura familiar paulista: uma forma de CPR a ser desenvolvida e/ou aprimoramentos no processo de controle social previsto nas diretrizes de certificação de grupo, da IFOAM.
            Algumas oficinas já foram realizadas e tem se buscado subsídios para duas questões fundamentais no que se refere à questão da rede: (1) quais são os princípios fundamentais da rede paulista de agroecologia e (2) como ela deve se estruturar? São apresentadas formas distintas de CPR (da Rede Ecovida e da ACS, esta última no Acre) e, quando adequado, as diretrizes conceituais da certificação em grupo, por auditoria. Em qualquer caso, a questão fundamental é a base organizacional. É a ela que a oficina tem se voltado primordialmente.
            Os primeiros resultados das oficinas, no que se refere ao perfil da rede paulista, enfatizam que:

    • o foco central é a viabilização da agricultura familiar e a construção de relações econômicas alternativas, baseadas nos princípios da economia solidária;
    • os princípios fundamentais são: confiança, comprometimento dos participantes da rede; protagonismo do produtor e consumidor; responsabilidade individual e social; princípios éticos; comunicação/educação; processo pedagógico; democracia; participação; cooperação; solidariedade; base social organizada reunindo produtores, consumidores e outros atores relevantes; organização interna; descentralização; transparência; ecologia e agroecologia; sustentabilidade;
    • economia solidária: política de preços sem variação sazonal; transparência dos custos para o consumidor; redução da disparidade entre os preços dos produtos orgânicos comercializados na rede e o convencional.

            A legislação orgânica vigente (Lei 10.831 de 23/12/2003) prevê, em seu parágrafo único do artigo 3º, que a certificação é facultativa para agricultores familiares, inseridos em processos próprios de organização, quando da comercialização direta. Está previsto na regulamentação da lei em discussão que o cadastramento destas organizações seja feito através dos órgãos de fiscalização. A articulação dos movimentos organizados no Estado, através da Rede Paulista de Agroecologia, pode contribuir para o acompanhamento destas solicitações de cadastramento e para a construção da credibilidade do sistema.
            Quem quiser conhecer mais detalhes da proposta de certificação participativa deve fazer o
download da apresentação em anexo. Quem conhecer organizações de agricultores familiares orgânicos no Estado de São Paulo, que possam interessar-se pela certificação participativa e pela participação na Rede Paulista de Agroecologia, pode encaminhar solicitação. E qualquer organização local, interessada em participar da Rede, deve enviar e-mail com as informações solicitadas para que se possa entrar em contato.
            O Instituto de Economia Agrícola (IEA) fornece apoio técnico-administrativo à construção da Rede.12
 

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1 AAO: www.aao.org.br

2 IFOAM: www.ifoam.org

3Exceto a Terra e Saúde

4 Via Campesina: http://www.viacampesina.org

5MDA: www.mda.gov.br

6 ITESP: www.itesp.sp.gov.br

7 CATI: www.cati.sp.gov.br

8FETAESP: www.fetaesp.org.br

9SENAR: www.senar.org.br

10SEBRAE: www.sebrae.com.�r

11 Define-se agricultura familiar quando a força de trabalho da família é dedicada não somente ao trabalho especializado e, particularmente, ao da gestão da exploração, mas também a todo e qualquer trabalho braçal necessário à produção, mesmo que complementado por contratação de força de trabalho. Neste caso, a produção hortícola com meeiros, de alto valor agregado, não se descaracteriza enquanto agricultura familiar se o agricultor mantiver uma parcela para desenvolver o trabalho da próprio família.

12Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-343/2004.

Data de Publicação: 17/05/2005

Autor(es): Yara Maria Chagas de Carvalho Consulte outros textos deste autor