Transgênicos: A Velha Fome E As Novas Tecnologias

                Em 1954, em nome da fome os EUA iniciaram o programa de vendas subsidiadas de produtos alimentares denominado Alimentação para a Paz (Food for Peace). Difundido para combater a fome no mundo inteiro, o objetivo central estava vinculado aos interesses econômicos dos EUA: aliviar os excedentes agrícolas e desenvolver mercados de exportação para as mercadorias norte-americanas. Entre 1954 e 1964, a 'ajuda alimentar' constituiu 34% do total das exportações de cereais deste país e 57% das importações totais de cereais pelos países do 3o mundo. Boaventura de Souza Santos (1), que tece estes comentários, lembra que antes de 1945 os países pobres exportavam cereais e, nos anos 50, eram auto-suficientes em produtos alimentares, apesar de a seca e outros fatores produzirem períodos de fome principalmente na Índia e na África.
            Os resultados principais de tal programa foram o aumento do desemprego nos países pobres e a desestruturação da produção agrícola - o que refletiu na maior dependência da importação de cereais.
            Também em nome do combate à fome veio, na década de 70, a designada 'revolução verde', em cujos resultados baseou-se Jean-Pierre Leroy (2) para se referir à recente utilização de sementes transgênicas como a nova revolução verde em curso. Na 'revolução verde', ocorreu o surgimento de sementes com elevada resposta à utilização de agroquímicos, o que deslocou parte da centralidade do processo agrícola para as empresas fornecedoras de sementes e insumos externos e limitou a importância do pequeno produtor ao transformá-lo em simples fornecedor de matérias-primas. Agora, a pretendida 'nova revolução' colocaria, através da transgenia, mais ainda os agricultores e a produção nacional sob controle das grandes empresas transnacionais, reforçando as exclusões econômicas, culturais, ambientais, sociais e políticas.
            Recente matéria publicada no jornal 'Folha de S. Paulo' (dia 24/11/02) contém a afirmação de que transnacionais pretendem utilizar o programa do novo governo para tentar liberar no país a produção e o consumo de transgênicos. O programa 'Fome Zero' serviu de mote para que companhias de biotecnologia - notadamente Monsanto, Novartis e Aventis - recolocassem na pauta das discussões a polêmica sobre a autorização para o uso de transgênicos, pois até o presente não haviam tido sucesso nas suas introdução e aceitação no Brasil. A matéria informa ainda que a Monsanto já teria mantido contatos com a coordenação do referido programa, quando ouvira desta a confirmação de que persistiriam as restrições ao uso de transgênicos até que estudos conclusivos venham a apontar para uma direção segura quanto à saúde e ao meio ambiente.
            Em defesa dos transgênicos e da biotecnologia, diretor da Monsanto afirmou que a erradicação da fome no Brasil seria imensamente favorecida, pois considera incontestável o fato de que promovem o aumento da produtividade das culturas. Entretanto, há argumentos contrários, como o do economista Jeffrey Sachs. Ele diz em entrevista que, mesmo tendo trabalhado intensamente pela Monsanto - inclusive 'para ver como a agrotecnologia pode ser usada em benefício dos pobres ao redor do mundo' -, essas tecnologias, ao mesmo tempo que podem oferecer avanços reais contra a fome e a desnutrição, podem afetar a soberania brasileira e que, além disso, podem não ser técnica e socialmente apropriadas para o país. Desta maneira, ao destacar a delicada questão da soberania nacional, Sachs toca em um ponto que a própria polêmica restrita a possíveis danos à saúde e ao meio ambiente havia relegado a segundo plano.
            O breve histórico a respeito da relação combate à fome/introdução de novas tecnologias deve ser considerado face à retomada da ação a favor de organismos geneticamente modificados, a qual pode representar no mínimo uma nova tentativa de implantação técnico-científica, que parece visar, acima de tudo, o fortalecimento das transnacionais da ciência e tecnologia. Em suma, mais um contexto em que o combate à velha fome é justificativa para a adoção de novas tecnologias.
 
 

(1) SANTOS, B.S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2001.
(2) LEROY, J.P. Por Uma Reforma Agrária Sustentável. In 'O Desafio da Sustentabilidade', São Paulo, Ed.Perseu Abramo, 2001. 

 

Data de Publicação: 01/12/2002

Autor(es): José Eduardo Rodrigues Veiga (zeveiga@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor