Crise da agricultura: modernidade produtiva e institucionalidade jurássica

            As análises dos agromercados incorporam complexidades crescentes, não apenas porque o número de variáveis aumenta, numa economia globalizada submetida a um regime de câmbio flutuante, como, principalmente, porque em economias continentais de agricultura diversificada não ocorre uma transmissão linear dos movimentos de cada variável no plano regional e das cadeias de produção, impactando de forma diferenciada os diversos agronegócios.
            No monitoramento da conjuntura dos agronegócios, não mais são consistentes os acompanhamentos de variáveis tradicionais como os preços e os custos (determinando a rentabilidade econômica). Além disso, a formação de expectativas não mais responde à proporção dos benefícios que possam ser colhidos da implementação de políticas públicas.
            As retrospectivas e os prognósticos desenhados nos anos 70 e 80, com base numa simplificação da realidade que podia ser explicada a partir de poucos indicadores, não mais fazem sentido no complexo produtivo da agricultura brasileira modernizada e submetida aos desígnios de uma economia aberta. Mais que isso, a territorialidade assume papel vital ao promover comportamentos diferenciados, para uma mesma cadeia de produção, em função dos distintos grupos de agropecuaristas, das diferenças de dinâmicas regionais e da posição de cada produto dentro do complexo produtivo da agricultura como um todo.
            Numa proliferação de fontes e mecanismos de financiamento, não há como realizar uma estimativa de custos financeiros pela diversidade de safras, de regionalidade e de perfis de agropecuaristas. Com isso, as médias dos cálculos de rentabilidade econômica como medida de posição explicam muito pouco pela elevada dispersão.
            Nesse mosaico de diferenças, o cálculo capitalista na agricultura revela-se uma tarefa muito mais complexa que no passado. As transformações da agricultura brasileira, ao se constituírem num sucesso na ótica técnico-produtiva, formaram um complexo produtivo que, mais que uma teia de relações intersetoriais diversas, forjou uma complexidade de movimentos que exige imenso esforço na construção de universalidades, subjugando a microeconomia de forma definitiva à macroeconomia.
            Aumentam as indefinições na formação de expectativas na agricultura brasileira, revelada numa realidade que não se reconhece mais no espelho das estatísticas, pela falta de bom senso nas decisões governamentais que levou à não-realização de um bom censo agropecuário desde 1985 (o de 1995 tem problemas graves e conhecidos para informações estruturais). As previsões e estimativas de safras despencam de mais de 130 milhões de toneladas de grãos para menos de 115 milhões de toneladas, ficando os analistas a garimpar explicações dado que as quebras de safras por fenômenos climáticos (que existiram de fato) não explicam toda a redução do volume colhido.
            Mais grave, no cálculo capitalista formou-se expectativas com prognóstico de supersafra, com notórios efeitos de queda de preços, mas colheu-se a menor safra do último triênio, visto que a verdadeira supersafra foi plantada no segundo semestre de 2002. Assim, numa economia globalizada em segmento tomador de preços, como o mercado de commodities, colhe-se menos mas vende-se a preços de supersafra, com dupla pressão sobre a renda do elo estratégico (mas com menor poder de mercado dos agronegócios), o agropecuarista.

Economia de contratos incipiente

            Uma questão estrutural da agricultura brasileira exacerba esse problema: a economia de contratos mostra-se incipiente frente ao conjunto da produção nacional, em especial no elo formado pelos agropecuaristas cujas produções são realizadas com baixo percentual da safra com venda antecipada quando comparada com grandes agriculturas de commodities como a norte-americana. E essa condição estrutural tem efeito direto na renda e na capacidade de gerenciar e ultrapassar crises.
            Essa verificação da realidade torna ainda mais complicada a compreensão da profundidade da crise quando se destaca o elevado grau de informalidade dos contratos. Basta ver que se estima a existência de R$ 22,35 bilhões em Cédulas do Produto Rural (CPRs) de gaveta, para os R$ 4,47 bilhões de CPRs oficiais contratadas em 2004. Logo, mesmo na economia de contratos, a grande parcela dos agropecuaristas está desprotegida.
            Noutras palavras, firma-se mais um paradoxo. A agricultura brasileira de commodities conseguiu avanços expressivos de modernidade produtiva, construindo os fundamentos mais avançados da competitividade das cadeias de produção – com produtividades físicas crescentes e comparáveis (até superiores) às verificadas na agricultura norte-americana. Mas ainda tem, em termos institucionais, padrão concernente a quem terminou de completar a revolução neolítica, dado que não evoluiu para a ampla e genérica prevalência da economia de contratos.
            Tem-se realizado avanços desde 1995, mas os resultados ainda se mostram acanhados. Tanto assim que os defensores da economia de mercado não encontram outra alternativa senão abrir mão de seus princípios e clamar pela ação do Estado, no sentido de aportar recursos públicos para alavancar a solução da crise atual.
            Como não há outra saída, cabe às autoridades governamentais evitar que a crise conjuntural se transforme numa crise estrutural que comprometa o desenvolvimento da agricultura, principal setor da economia continental brasileira. Mas há também que se chamar à realidade aqueles cujas análises e posicionamentos desconsideram o papel do Estado nos períodos de bonança – chegam mesmo a abominar a sua existência, que só geraria custos pela carga tributária, sem levar em conta que sem recursos não existem políticas públicas.
            Na agricultura norte-americana, ocorre a vigência da plenitude da gestão de riscos, com um sistema consistente de seguro agropecuário, e prevalece amplamente a economia de contratos na gestão de riscos de preços, com base em operações em Bolsas de Mercadorias, e a obrigatoriedade de hedge em todas as transações de exportação, evitando que movimentos abruptos do mercado internacional tenham o efeito de um tornado ao sugar a renda agropecuária interna. Já a agricultura brasileira, em termos da adoção dos princípios mitigadores da instabilidade, se mostra contemporânea do período jurássico.

Bolsas de Valores x Bolsas de Mercadorias

            Razões de ordem cultural, como o apego ao patrimonialismo e uma visão equivocada do papel das Bolsas, fazem com que a cada crise pese sobre a agricultura nacional a inexorabilidade histórica da extinção dos dinossauros. Afinal, essa agricultura já exorcizou o fantasma da tendência secular à insignificância, imputada a ela pelos defensores da teoria tradicional do desenvolvimento econômico – segundo a qual a agricultura deveria desenvolver-se fazendo desaparecer sua relevância para a renda e o emprego nacionais. Mas ainda arrasta-se no terreiro tomada pelo espírito de senhor do engenho, presa a valores culturais que impedem a modernidade institucional.
            Há de se realizar ampla campanha de formação cultural dos empresários dos agronegócios, notadamente os agropecuaristas, para dotá-los de conhecimento sobre a nova institucionalidade relativa à conformação contemporânea do capitalismo na qual se dá a hegemonia do capital financeiro. Essa superestrutura determina a estrutura que se constitui dada para os distintos agentes econômicos.
            Essa questão se mostra tão vital para o Brasil que deveria ser objeto de cursos de formação conceitual, envolvendo todo o sistema educacional, como matéria curricular obrigatória. Isto permitiria que a formação dos cidadãos, em todos os rincões do território brasileiro, incorporasse essa necessidade nacional.
            Para os que, porventura, vierem a colocar essa proposta na categoria das estultices, há de se lembrar que a educação tem por objetivo formar cidadãos aptos a compreender e intervir nas suas realidades. E, para a maioria dos brasileiros de lugares longínquos ou não, a realidade objetiva movimenta-se pela agricultura enquanto transformação econômica que move a história.
            Trata-se, assim, de socializar para esses empreendedores estratégicos da economia brasileira – do presente e do futuro por meio do investimento nos seus filhos - informações e capacidade reflexiva sobre o papel das Bolsas. De início, deve-se mostrar a nítida distinção entre Bolsas de Valores e Bolsas de Mercadorias, identificando diferenças de missões e contornos institucionais e destacando as distinções dos públicos e dos perfis de operadores (ainda que parcela possa estar presente nas duas instituições).
            Ao tratar do denominado mercado financeiro, a própria mídia - por certo, partindo do pressuposto de que está focando um público de iniciados - acaba por contribuir para a existência da cultura de aversão da massa de agropecuaristas em relação ao mercado financeiro. Isso porque a imagem do mercado de ações acaba por contaminar o mercado de títulos lastreados em mercadorias, gerando insegurança ainda maior. Como há entre os agropecuaristas poucos iniciados, é natural que abominem o desconhecido.
            Esse esforço deve envolver instituições públicas de pesquisa aplicada à agricultura, faculdades de ciências agrárias e colégios agrícolas, de maneira que, no médio prazo, seja ampliado de forma vertiginosa o número de agentes produtivos da agropecuária com conhecimento sobre o funcionamento do mercado financeiro e, em especial, da Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F). Trata-se de garantir cidadania para todos na medida em que produzir no capitalismo contemporâneo significa atuar no mercado financeiro.

Financiamento de custeio e títulos financeiros

            Em 1995, inicia-se a estruturação do novo padrão de financiamento, no qual o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)1 cuida do crédito de investimento para os agronegócios (MODERFROTA e MODERINFRA) e o financiamento do custeio da safra dá-se pela venda antecipada com base em operações de títulos financeiros.
            Políticas para a agricultura baseadas na profusão da aplicação de recursos públicos, como a dos anos 70, representam um passado remoto que não será mais que um ponto realçado da história, não voltando mais. Afinal, a história não se repete enquanto história, apenas como farsa, e nada nos estimula a viver a repetição inconseqüente da farsa que impede a manifestação da modernidade.
            Assim, esses cidadãos plenos contribuirão para aplaudir e formar opinião pública a favor do lançamento de novos títulos financeiros dos agronegócios como instrumentalização da modernidade (CPR – Lei Federal n° 8.929 de 22 de agosto de 1994 e novos instrumentos - Lei Federal n° 11.076 de 30 de dezembro de 2004) e da redução da carga fiscal sobre operações em bolsas que permitirá menores custos dessas operações (Decreto Federal n° 5.442 de 9 de maio de 2005 que reduz a zero as alíquotas da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS incidentes sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas à incidência não-cumulativa das referidas contribuições).
            Poderão, ao mesmo tempo, condenar com veemência os arroubos do retrocesso oriundos de devaneios ruralistas, como o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional (sob n° 5124/2005), que propõe vedar o uso da CPR física como garantia de contratos de compra e venda de produtos ou insumos, partindo do pressuposto de que ela se tornou um instrumento de espoliação dos agropecuaristas. Isto simplesmente corresponde na prática à extinção da CPR, revogando toda a modernidade do novo padrão de financiamento para os agronegócios oriundo da edição da Lei Federal n° 8.929, de 22 de agosto de 1994, e significa mesmo um obstáculo à proliferação dos novos instrumentos instituídos pela Lei Federal n° 11.076 de 30 de dezembro de 2004.
            Trata-se, assim, de mais uma manifestação da cultura patrimonialista persistente e resistente que acaba por fazer prevalecer mentalidades e institucionalidades jurássicas na agricultura brasileira. Equívoco este que acaba por recair sobre a própria agricultura pela inexistência generalizada de mecanismos de gestão de riscos e de gerenciamento de crises conjunturais, peando o longo prazo ao curto prazo ancorado no passado.2

1 BNDES: www.bndes.gov.br
2 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-37/2005

Data de Publicação: 24/05/2005

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor