Real apreciado, câmbio flutuante e agronegócios

            O acompanhamento dos preços dos produtos da agricultura numa economia aberta, onde se pratica o câmbio flutuante, pressupõe que os agentes econômicos – principalmente para preços formados no mercado internacional - realizem, ainda que mentalmente, a conversão para moeda nacional, a fim de dar consistência aos seus cálculos capitalistas de maneira que possam ser efetivadas inferências sobre os movimentos dos preços internos. As argumentações mais gerais lastreadas em moeda norte-americana são relevantes para visualizar os movimentos desses mercados, porque destacam as tendências dessas variáveis no seu lócus formador, o mercado internacional.
            Entretanto, não existe hedge natural para as cotações do dólar, dado que o câmbio flutuante representa a política vigente no Brasil desde janeiro de 1999. Com isso, torna-se relevante a tradução dos preços para a mesma base, para uma consistente aderência das comparações das tendências entre os preços internacionais e os preços nacionais de dada commodity. É que o movimento do câmbio, pela elevada amplitude de variação no curto prazo (menos de um ano) tal como se mostra no período recente, pode produzir tendências, magnitudes e sinais de variação distintos para a mesma cotação quando expressa em moeda norte-americana (US$) e moeda nacional (R$).
            É preciso ter claro que entre os dois mercados – internacional e nacional - ainda existe um Estado Nacional com moeda e Banco Central próprios. Assim, ao se adotar o câmbio flutuante, configura-se um mercado de moeda estrangeira, cuja cotação não apresenta o atributo da neutralidade.
            A configuração de realidades distintas revela-se quando se compara, para as diferentes mercadorias, as cotações anotadas nas bolsas de mercadorias com as cotações convertidas. Ao definir a variação no primeiro quadrimestre de 2005 como de curto prazo, nota-se que, em moeda norte-americana, duas commodities apresentam preços com evoluções negativas (-5,24% e –5,31%), enquanto outras oito mostram desempenho positivo (+3,08% a +34,17%). Em moeda brasileira, o quadro se mostra diferente, com evolução acumulada negativa para cinco produtos (-2,45% a -12,49%) e resultados positivos para outros cinco (+5,53% a +23,99%) (tabela 1).
            Num prazo mais largo, com base nos últimos doze meses, em moeda norte-americana, há cinco produtos com performance negativa (-5,79% a -36,07%) e os demais 5 com evolução positiva (+8,12% a +70,69%). Já em moeda brasileira, são sete commodities com percentagem negativa (-3,87% a -50,54%) e três positivas (+8,82% a +32,06%) (tabela 1).
            Em linhas gerais, há nítida alteração de tendência quando tomadas as cotações em moeda norte-americana e moeda brasileira, dependendo da magnitude da variação cambial no período . O cálculo capitalista para a tomada de decisão por parte dos agentes econômicos internos à agricultura brasileira está determinado pela cotação convertida em moeda nacional que é a única comparável com os demais indicadores de produção que dessa maneira estão expressos.
            A informação em moeda norte-americana tem fundamental utilidade na visualização dos movimentos mais gerais do mercado mundial, pois permite verificar as tendências neles observadas e formar expectativas. No contexto microeconômico, porém, onde se dão as decisões de produção, os desempenhos e as tendências mais consistentes serão aqueles verificados em moeda brasileira, comparável com os preços dos agromercados nacionais, levando em conta o mercado cambial que de forma alguma se configura como neutro nos distintos espaços nacionais com moeda conversível. Daí que os efeitos internos na tendência da renda derivam diretamente dessa conversão, que representa a condição objetiva vivida pelo agropecuarista no plano microeconômico.

Tabela 1. Variação das cotações das commodities nos diferentes mercados, segunda posição, expressas em moeda norte-americana e em moeda brasileira, no primeiro quadrimestre de 2005 e nos últimos doze meses

Commodities Mercado Cotações em Dólar(1) Cotações em Real (2)
Em 2005
Doze meses
Em 2005
Doze Meses
Açúcar NY
-5,31
+24,26
-12,49
-3,87
Algodão NY
+25,97
-12,03
+16,41
-31,94
Café Arábica NY
+22,12
+70,69
+12,86
+32,06
Café Robusta Lo
+34,17
+40,66
+23,99
+8,82
Suco de Laranja CC NY
+14,19
+57,50
+5,53
+21,85
Soja em Grão CHT
+16,59
-36,07
+7,74
-50,54
Milho CHT
+3,47
-32,84
-4,38
-48,04
Trigo CHT
+5,56
-19,78
-2,45
-37,94
Borracha SM 20 Malásia
+3,08
-5,79
-4,74
-27,11
Boi BM&F
-5,24
+8,12
-12,43
-16,35
(1). Variação nominal, no primeiro quadrimestre de 2005 e nos últimos doze meses (maio de 2004 a abril de 2005) da cotação das Bolsas expressa em moeda norte-americana, publicada em MARTIN (2005)1.
(2). Variação no primeiro quadrimestre de 2005 e nos últimos doze meses da mesma cotação das Bolsas expressa em moeda brasileira, referindo-se a valores de abril de 2005 deflacionados pelo Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA) da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

            Na agricultura brasileira, os preços na safra 2004/05 de grãos e fibras refletem a realidade macroeconômica em que ela vem sendo colhida. De um lado, em relação ao passado recente, a apreciação da moeda nacional acumula, em valores constantes, 7,59% no primeiro quadrimestre de 2005 e 22,64% nos últimos doze meses2. De outro, os juros sobem por decisão governamental que elevou a taxa básica de 16% ao ano em maio de 2004 para 19,75% ao ano em maio de 2005.
            A compreensão dos impactos desses fatos representa elemento fundamental para o entendimento da conjuntura da economia nacional e dos agromercados. As taxas de câmbio e de juros mostram tendências inversas, decorrentes da necessidade de cumprir o regime de metas de inflação, fruto da decisão do Governo que age pressionado pela elevação dos dispêndios correntes no passado a taxas superiores ás do produto nacional, em especial no segundo semestre de 2004.
            Isto porque 'quando os gastos privados abrem espaço para os gastos dos governo, não há pressão inflacionária advinda de dispêndios acima do produto potencial. A redução dos gastos privados se obtêm através do aumento da taxa de juros, e um aumento de gastos públicos aumenta a taxa de juros e aprecia o câmbio'3. Isto em função de que não apenas os juros muito altos atraem capital externo que eleva artificialmente a taxa de câmbio, como também a autoridade monetária - presa pelos dispêndios públicos exacerbados e acima da meta - não tem instrumento para enxugar o excesso de liquidez interna da moeda norte-americana, ficando impotente frente aos movimentos do câmbio.
            A autoridade monetária mira a meta de inflação e atira juros ao alto e reafirma a redundância de que 'o câmbio flutuante flutua', sem assumir que a indicação da ladeira adveio não de resultante do mercado, mas de resultante viesada pela política de juros, que por sua vez adveio de decisões de gastos públicos adicionais sem lastro na proporcionalidade de incremento do produto nacional. Logo, o câmbio flutuante não flutua, mas foi impelido a flutuar.
            Os juros altos, porém, são tão danosos quanto o câmbio nos seus efeitos sobre os preços das commodities da agricultura em plena safra, cujos empreendedores são tomadores de preços e não praticam de forma generalizada operações de proteção da renda (hedge de preços das mercadorias e de câmbio). Exemplos são a soja e o algodão (gráficos 1 e 2)4, cujas curvas de câmbio e dos preços em moeda norte-americana se colam até fins de 1997 e se descolam de fins de 1997 até janeiro de 1999, com preços cadentes (em moeda norte-americana e moeda brasileira).
            Isto reflete uma realidade típica de hedge natural pela administração do câmbio que não interferia na tendência dos preços, visto a estabilidade do câmbio com as desvalorizações da moeda brasileira acompanhado a inflação. Nessa realidade de câmbio neutro, os preços internacionais para commodities globais acabam tendo comportamentos similares aos preços internos. A mudança para o regime de câmbio flutuante teve o efeito de propiciar níveis mais estimuladores das cotações convertidas em moeda nacional.

            Da ótica do comportamento das commodities brasileiras, é interessante a comparação entre os preços da soja em grão e do algodão em pluma em função dos efeitos das mudanças no câmbio. Tanto para a soja quanto para o algodão, num primeiro momento (até fevereiro de 2001), a desvalorização cambial de janeiro de 1999 significou, em moeda nacional, a recomposição do patamar de preços do período anterior, fato demonstrado pelo comportamento dos preços em moeda nacional em torno da base. A variação cambial para cima, ocorrida em 2001, estimula a soja (cujas cotações em dólar variam pouco), mas não tem o mesmo efeito para o algodão (cujas cotações em dólar caem mais que proporcionalmente à alta do câmbio).
            A taxa de câmbio em maio de 2002 voltou ao patamar da fase imediatamente posterior a janeiro de 1999. Do segundo semestre de 2002 até fevereiro de 2003, ocorre uma conjuntura de elevação concomitante tanto do câmbio quanto das cotações internacionais, refletindo-se em estímulos mais que proporcionais nos preços expressos em moeda nacional.
            De março de 2003 a junho de 2004, o câmbio se manteve, mas em patamar superior ao vigente entre janeiro de 1999 e fevereiro de 2001, o que enseja estímulo adicional a preços internacionais postados em níveis elevados. Desde então, a queda dos preços internacionais deu-se na mesma tendência da apreciação do real, que, contudo, até abril de 2005, em valores constantes, apenas voltou a uma posição pouco abaixo do patamar de janeiro de 1999 a fevereiro de 2001 (gráficos 1 e 2).

            Se o câmbio em abril de 2005 voltou ao patamar vigente no período imediatamente posterior à mudança cambial, qual a explicação para os impactos negativos da apreciação da moeda nacional desde junho de 2004?. A resposta está no fato de que, de maio de 2002 a junho de 2004, por mais de dois anos, as exportações brasileiras cresceram significativamente5 graças ao estímulo do câmbio – taxas elevadas mas voláteis de maio de 2002 a fevereiro de 2003 e manutenção em patamar elevado de março de 2003 a junho de 2004 - e à conjuntura internacional favorável. Nesses dois anos, as vendas externas brasileiras crescem menos que as importações mundiais6.
            Nesse período, estabeleceu-se o novo piso da taxa de câmbio - e mais alto - capaz de sustentar a expansão das exportações brasileiras, estimulando as empresas nacionais a investir para aproveitar as condições favoráveis do comércio externo. A apreciação recente, desse modo, quebra as expectativas de expansão para produtos em geral, levando no início de 2005 a recuos nos investimentos em modernização e ampliação da capacidade de produção com vistas às exportações.
            Entretanto, a apreciação do câmbio não explica sozinha a magnitude da crise vivida na safra 2004/05 pelas commodities da agricultura submetidas a preços internacionais inferiores aos da safra passada. A taxa de juros elevada aprofunda a pressão baixista numa realidade de agricultores tomadores de preços, dados os custos de carregar estoques num setor de oferta com sazonalidade marcante. Isto inibe os compradores na aquisição de matérias-primas (operam próximos do just in time com estoques dimensionados para reduzir ao mínimo a necessidade de capital de giro).
            O vencimento de compromissos, que gera a necessidade de venda por parte dos agricultores (reduzida parcela da safra 2004/05 tem venda antecipada), leva à queda mais que proporcional dos preços e até mesmo dificuldade em encontrar compradores. Além disso, a apreciação cambial produziu um descompasso entre preços e custos, dado que os custos dos insumos foram influenciados pelo patamar mais alto do câmbio na metade do ano passado, enquanto os preços refletem o câmbio apreciado do início deste ano.
            Numa realidade de câmbio flutuante, também os juros têm papel crucial em produções de sazonalidade exacerbada, dada a influência mútua sobre os preços. A preocupação consiste em que a conjuntura não contamine a estrutura, uma vez que a maioria dos agricultores brasileiros não faz hedge de câmbio nem realiza proporção adequada de vendas antecipadas mediante operações para gerenciamento de risco na Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F).
            Mais uma vez, fica a lição de que a superioridade produtiva não necessariamente significa superioridade econômica, tão propalada pela agricultura brasileira em relação à norte-americana na euforia das últimas safras em conjuntura de câmbio e juros mais favoráveis. No capitalismo moderno, onde prepondera a lógica financeira, a produção tem de ter alicerce na instituição, sem o que, nas crises, os agricultores tenham de compreender de forma dramática que, no mundo contemporâneo, o respeito aos contratos numa safra garante os contratos na safra seguinte. E que também é pelo tamanho das Bolsas que se mede o tamanho dos bolsos.

__________________________
1Para análise consistente da ótica da evolução das cotações das commodities dos agronegócios nas principais bolsas mundiais, ver MARTIN, Nelson Batista Commodities: mercados com alta volatilidade (http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto.php?codTexto=2056), disponibilizado em 07/04/2005.
2 Para uma comparação do impacto da mudança da política cambial brasileira nas exportações nacionais, basta lembrar que, a preços constantes de dezembro de 2004, o câmbio em dezembro de 1998 era de R$ 1,98/US$. Seu pico foi atingido em janeiro de 2003, com R$ 4,06/US$, e em abril de 2005, mesmo após significativa apreciação da moeda nacional, ficou na média de R$ 2,51/US$, nível similar à realidade de janeiro de 1999, primeiro mês da mudança para câmbio flutuante.
3 Argumentação desenvolvida em CARDOSO, Eliana. O rei Midas. Jornal O Valor Econômico de 19 de maio de 2005.
4 Os preços utilizados representam cotações da soja em grão na Bolsa de Chicago e de algodão em pluma na Bolsa de Nova York, sendo médias mensais do 2° vencimento de contrato futuro. A conversão em moeda nacional foi realizada com base na cotação mensal do dólar obtida a partir de média das cotações diárias de compra e venda publicadas pelo Banco Central. Para comparação no tempo, deflacionou-se essa média do dólar pelo Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA) da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
5 No ano de 1998 (janeiro a dezembro), as exportações brasileiras somaram US$ 51,15 bilhões, com saldo comercial negativo de US$ 6,61 bilhões. Os agronegócios tiveram saldo positivo de US$ 11,10 bilhões, impedindo um déficit muito maior. Desde a mudança do regime cambial em janeiro de 1999, levando à significativa desvalorização da moeda brasileira, as exportações mais que duplicaram e os saldos foram crescentemente positivos em função também da queda significativa das importações de US$ 57,76 bilhões no ano de 1998 (janeiro a dezembro) e de US$ 46,40 bilhões nos doze meses de setembro de 2002 a agosto de 2003. A partir daí, reverte-se a tendência para o crescimento, até o montante de US$ 66,31 bilhões nos últimos doze meses (maio de 2004 a abril de 2005). A balança comercial brasileira nos últimos doze meses (maio de 2004 a abril de 2005), além de alcançar a cifra recorde de US$ 104,09 bilhões em exportações, obteve saldo positivo de US$ 37,78 bilhões, para o qual os agronegócios contribuíram com US$ 32,99 bilhões e os demais setores com US$ 4,79 bilhões.
6 Uma visão da evolução recente das exportações brasileiras pode ser encontrada em JÓIA, Sonia. O Brasil na rota do mundo. Rumos 29(220):28-35, Rio de Janeiro, ABDE. Março-abril de 2005.

Data de Publicação: 13/06/2005

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor