Projeto Lupa: Uma Odisséia

Tendo decorrido alguns anos dos acontecimentos e confiando na possibilidade de isenção que o distanciamento no tempo proporciona, acredito ser oportuno relembrar alguns fatos que cercaram a realização do Levantamento Censitário de Unidades de Produção Agrícola, também conhecido por Projeto LUPA, realizado pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (SAA) entre 1995 e 1997.

Embora as idéias de censo e de cadastramento agropecuário tenham estado latentes nos serviços de levantamento estatístico da SAA desde seus primórdios, foi somente na década de 80 que elas começaram a tomar corpo. De forma independente, diversos Assistentes Agropecuários da Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI) chegaram à conclusão dessa necessidade, sendo que algumas regiões chegaram a fazer um cadastramento e a publicar seus resultados. Quanto a mim, a primeira vez que tomei contato com a necessidade de cadastramento da agricultura paulista foi em 1980, durante um curso em Michigan. Depois de apresentar ao responsável geral pelos cursos os problemas existentes nos levantamentos de estatísticas agrícolas no Estado de São Paulo, ele passou a insistir, várias vezes por dia durante vários meses: invista no cadastro! Ao voltar para o trabalho no Instituto de Economia Agrícola (IEA) a idéia de realizar um cadastramento, ou até mesmo um censo, parecia despropositada em nosso ambiente institucional, mas foi tomando corpo e algum tempo depois já parecia ser uma necessidade inadiável. Por volta de 1985 passou-se a discutir o assunto cada vez mais amiúde e ao final dos anos oitentas já eram feitas propostas formais, mas que não conseguiam sensibilizar os dirigentes da SAA.

 

Em dezembro de 1993 uma lei estadual estabeleceu que parte do ICMS seria repartido entre os municípios proporcionalmente à sua área agrícola, calculada pela SAA. Porém, a SAA não dispunha de dados com o nível de confiabilidade necessário para tal tarefa, os dados do último Censo Agropecuário pareciam desatualizados e ainda não se vislumbrava a realização de um novo pelo IBGE. Todos os técnicos consultados indicaram a necessidade da realização de um censo para obter tais dados. Uma comissão, da qual participamos, foi constituída para propor soluções. A comissão concluiu que o mais viável econômica e operacionalmente, naquele momento, era: um censo no primeiro ano; para os seguintes, um levantamento por amostragem baseado no censo; e, no futuro, um levantamento anual por sensoriamento remoto. Essa comissão elaborou, ainda, um anteprojeto de levantamento censitário. Mesmo assim, os dirigentes não se convenceram, apesar da crescente pressão de prefeituras municipais que consideravam os dados do levantamento subjetivo para previsão e estimativa de safras da SAA, utilizados no período 1994-97, lesivos aos seus interesses.

 

Ao final de 1994, quando se preparava o orçamento para o ano seguinte, como Coordenador Substituto da Coordenadoria Sócio-Econômica (CSE, à qual se subordinava, então, o IEA), fui chamado pelo Chefe da Assessoria Técnica da SAA para elaborar o orçamento do Fundo de Expansão da Agropecuária e da Pesca (FEAP). Aproveitando a oportunidade, sugeri, sem grandes esperanças, que fosse também incluído no orçamento a realização do censo, cujo custo já havia sido estimado no anteprojeto proposto pela comissão. Para nossa surpresa o projeto foi incluído e aprovado, embora com apenas 20% dos recursos solicitados e, ainda por cima, alocados em outra coordenadoria que não a CATI ou a CSE. De forma inesperada, o primeiro passo havia sido dado.

 

O novo governo estadual ainda não havia assumido, mas o Médico Veterinário Antônio Cabrera Mano Filho já havia sido indicado para ocupar o cargo de Secretário de Agricultura e Abastecimento. Querendo conhecer o orçamento da SAA deparou-se com a proposta do levantamento censitário. Como a idéia de levantamentos estatísticos já se lhe mostrara oportuna quando fora Ministro da Agricultura do País, fui chamado a esclarecer sobre a proposta, que foi aceita e rapidamente colocada em prática, tendo sido o Dr. Cabrera o grande incentivador do projeto.

 

Uma comissão organizadora foi constituída em final de abril de 1995, formada pelos Engenheiros Agrônomos Bernardo Lorena Neto, que havia duas décadas batalhava pela realização do censo, Antônio José Torres, então Diretor da Divisão Regional Agrícola (DIRA) de Araçatuba e que participara do cadastramento realizado naquela região cerca de dez anos antes, e Mário Antonio de Moraes Biral, então assessor do Coordenador da CATI, os três Assistentes Agropecuários da CATI, mais as Estatísticas Vera Lúcia Ferraz dos Santos Francisco, do Centro de Métodos Quantitativos, e Denise Viani Caser, Chefe do Centro de Estatísticas da Produção, ambas Pesquisadores Científicos do IEA, e por mim, como coordenador.

 

Como os participantes discutiam o assunto há muito tempo e como o projeto bem como os questionários e manuais de instrução já estavam prontos, programou-se o lançamento dos trabalhos de campo para o mês de maio de 1995. Uma reunião da Comissão com os Diretores de DIRA da CATI iniciou a operacionalização dos trabalhos. Foram indicados os supervisores de cada DIRA que imediatamente foram treinados. Mas, por decisão do Coordenador da CATI, os questionários foram entregues a um grupo de outros técnicos para avaliação, o que acabou por atrasar o início dos trabalhos em cinco meses, além de inchar o questionário com questões de relevância discutível.

 

Finalmente, o censo foi lançado em outubro de 1995, em Bauru, com o próprio Sr. Secretário preenchendo um questionário numa das fazendas da região. O destaque na mídia foi importante para motivar os produtores a cooperarem com o levantamento. Como os recursos financeiros eram poucos, cooperativas, associações e sindicatos de produtores foram contactados e muitos auxiliaram, seja na divulgação positiva do projeto junto a seus associados, seja fornecendo combustível para os veículos efetuarem as visitas às propriedades rurais. Alguns Diretores de DIRA mais progressistas empenharam-se para o sucesso dos trabalhos, seja alocando pessoal de bom nível no projeto, seja conseguindo o apoio de jornais e de emissoras de rádio e televisão locais para a divulgação junto aos produtores. Em que pesem os baixos salários da época, muitos Assistentes Técnicos, auxiliares técnicos e até funcionários administrativos motivaram-se de tal maneira que imaginaram os mais diversos meios para conseguir efetuar o levantamento mesmo quando não dispunham de recursos suficientes. Por exemplo, postar-se na agência bancária à espera de produtores que procuravam crédito rural, em momentos em que não havia veículo ou combustível. Ou tentar renunciar a diárias, quando era necessário levantar em municípios vizinhos. Algumas Prefeituras Municipais, percebendo o valor dos dados para seus interesses e para uma distribuição mais justa do ICMS, forneceram apoio logístico e pessoal para auxiliar no levantamento de campo. Finalmente, cabe destacar a compreensão e cooperação dos produtores rurais, que colaboraram mais facilmente que de hábito, na maioria dos casos por haverem percebido a utilidade dos resultados e a seriedade da proposta. Seria injusto e omisso tentar-se nomear as pessoas e instituições que mais colaboraram com o Projeto LUPA, mas uma relação completa do milhar e meio de pessoas que trabalharam diretamente e das centenas de pessoas, empresas e instituições colaboradoras encontra-se no final do livro que divulgou os resultados do projeto (há também uma versão em CD). Destacarei, portanto, somente uns poucos nomes da própria Comissão, sem cuja colaboração os trabalhos não teriam sido realizados. O primeiro é o de meu colega de turma na ESALQ, Bernardo Lorena, cujo entusiasmo e tendência à inovação nos fazia levantar os pés do chão e ousar. Foi ele o teórico do projeto e o criador da bem sucedida sigla LUPA. O segundo é Antônio Torres, cuja participação foi decisiva para que o trabalho no campo, incluindo a digitação dos dados, pudesse ser efetuado. Era ele quem percorria as regiões resolvendo os problemas que apareciam. O terceiro é Vera Lúcia F. S. Francisco, que concebeu boa parte do projeto em termos de informática, e cuja empatia e seriedade também contribuíram para a motivação dos demais participantes.

 

Para que todos os integrantes, bem como os dirigentes da SAA, pudessem acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos foi criado o Informativo LUPA, que relatava os progressos e as dificuldades dos trabalhos. Uma tabela relacionava, por DIRA, o número de unidades que se esperava levantar (baseado no Censo Agropecuário de 1985), o número de unidades já levantadas e a previsão de quando o trabalho seria encerrado. Esse procedimento foi fundamental para que os trabalhos chegassem a bom termo: as DIRAs com boa administração reagiram de forma positiva, dosando suas energias para terminar os trabalhos num prazo razoável, e até competindo entre si para ver quem concluiria antes (o que lhes deu, posteriormente, tempo para revisar os dados, resultando em melhor qualidade final); as demais viram-se constrangidas a melhorar seu desempenho para evitar cobranças dos dirigentes da SAA, ainda que às custas de alguns ressentimentos pessoais.

 

Motivos políticos, alheios ao caráter técnico do Projeto LUPA, levaram à troca do Sr. Secretário, com prejuízos para o projeto, que perdeu seu grande incentivador. Durante meses houve um Secretário interino, que não tomou conhecimento de sua existência, até a nomeação de novo Secretário. Aproveitando a oportunidade, os dirigentes contrários à realização do projeto ou ao modo como vinha sendo conduzido, pressionaram o novo Secretário para suspender o Informativo LUPA, em outubro de 1996. Como conseqüência, a Comissão deixou de se subordinar diretamente ao Sr. Secretário, passando a responder ao Secretário Adjunto. O resultado foi um atraso de cerca de seis meses na conclusão dos trabalhos: o último Informativo previa a conclusão, inclusive divulgação de resultados, em março de 1997, com base no desempenho do levantamento de campo, mas a conclusão veio a acontecer somente em setembro daquele ano.

 

A divulgação dos resultados previa a edição de um livro com as estatísticas em nível municipal, o que acabou acontecendo, mas com tiragem tão minguada que foi impossível deixar um exemplar em cada Casa de Agricultura da CATI e em cada Prefeitura Municipal, alegadamente porque não interessava às pessoas de um dado município saber o que existia nos demais. O lançamento dos resultados teve bom destaque na mídia, com chamada de primeira página num dos principais jornais do País. Mesmo assim, não mereceu ser lançado pelo Sr. Governador do Estado, o que aconteceria meses mais tarde com o Censo Agropecuário do IBGE. Este iniciara-se seis meses depois do Projeto LUPA e seria inevitável comparar seus resultados: embora ambos tenham tido falhas de cobertura, aparentemente a do Projeto LUPA foi menor, já que levantou cerca de 2,5 milhões de hectares a mais (a acusação de que se tratavam de áreas para lazer, não rurais e similares não procede). Finalmente, três anos depois, por iniciativa do Eng. Agr. Antônio Carlos de Souza, hoje Coordenador da CATI, os resultados do projeto foram lançados em forma de CD e disponibilizados na Internet.

 

Se a realização do Projeto LUPA mostrou a riqueza pessoal e profissional do capital humano e intelectual da SAA, por outro lado, sua conclusão expôs, de forma não proposital, fraquezas humanas insuspeitadas: no início, poucos queriam realizar o projeto ou acreditavam que ele pudesse ser realizado; contudo, quando estava pronto, brotaram de todos os lados candidatos à sua paternidade (ou maternidade). Curiosamente, pessoas que haviam combatido a idéia passaram a divulgadores de seus resultados, dando entrevistas sobre o assunto. Afinal, de quem era o Projeto LUPA? A resposta mais sensata parece ser a de que ele pertence, por mérito e direito, aos produtores rurais que forneceram seu conteúdo e aos funcionários da SAA e colaboradores que lhe deram forma (e, por extensão, à sociedade paulista, que direta ou indiretamente pagou a conta). Essas pessoas serão lembradas por terem ajudado a escrever um capítulo da história institucional. O restante é hipocrisia e oportunismo.

 

A falta de recursos e a ingerência política impediram o treinamento adequado do pessoal de campo, fazendo com que a realização do projeto consumisse quatro vezes mais tempo do que havia sido previsto, utilizando duas vezes mais pessoas do que se previra, aumentando consideravelmente seu custo. Além disso, a qualidade dos dados deixou a desejar em algumas regiões, ainda que de forma previsível e que esforços tenham sido feitos para evitá-lo. Embora seja normal que as regiões mais atrasadas do mundo tenham as piores estatísticas, tais problemas acabaram por dificultar a análise posterior dos resultados. Entretanto, em que pesem tais problemas, o projeto obteve os melhores e mais abrangentes dados da SAA das últimas décadas, quase 60 anos depois de seu último censo.

 

O projeto LUPA acabou tendo conseqüências positivas sobre a SAA, que transcendem seu escopo: primeiro, deu mais projeção à instituição; segundo, motivou boa parte de seus funcionários, inclusive para trabalhos futuros; terceiro, induziu a informatização dos trabalhos, principalmente da CATI; quarto, lançou as bases para um sonhado sistema estadual de estatísticas agrícolas.

 

Veio o pós-LUPA: o que fazer, agora que dispomos de dados cadastrais e censitários? Primeiro havia que analisar e divulgar os dados e

 

os resultados. Quanto mais disponíveis se tornassem os dados para que técnicos e cientistas de outras instituições pudessem analisá-los, menor seria o custo social do projeto. Mais uma vez, contudo, criaram-se dificuldades para o acesso aos dados. Mesmo assim, diversos trabalhos têm sido publicados com base neles.

 

Em conclusão, o projeto LUPA teve conseqüências positivas duradouras sobre a SAA e sobre o agronegócio paulista que irão aparecendo com o tempo. E, acima de tudo, os estudiosos poderão conhecer futuramente como era a agricultura paulista ao final do segundo milênio da era cristã.







Data de Publicação: 01/11/2000

Autor(es): Francisco Alberto Pino (drfapino@gmail.com ) Consulte outros textos deste autor