Agricultura Em Área De Manancial

            Na bacia do Alto Tietê, algumas sub-bacias abrigam uma atividade agrícola relevante. A região do Tietê-Cabeceiras é a principal área produtora de hortaliças do Estado, fazendo uso intensivo da irrigação. Nas sub-bacias Guarapiranga e Billings-Tamanduateí, a mesma atividade predomina mas cresce a importância das plantas ornamentais, em particular da árvore de Natal, pelo menos em São Paulo.
            Discute-se aqui a possível contribuição que a agricultura, e mais especificamente a agricultura orgânica, pode dar para a proteção do ambiente de áreas preservadas, em geral, e de mananciais, em particular.

1. As características da agricultura em áreas peri-urbanas

            A expansão urbana é um fenômeno que ocorre em todo Estado de São Paulo, assim como em várias regiões do país. A dinâmica da ocupação assume características particulares mas pode ser caracterizada por cinco tipos principais. Os dois primeiros referem-se a loteamentos 1) regulares ou 2) clandestinos, desdobrados em a) população estranha ao lugar atraída pelo loteamentos e b) para abrigar o crescimento natural da população local. O quinto refere-se ao parcelamento da propriedade para residência de membros da família, com emprego fora da unidade de exploração agrícola.
            Esta mudança de uso do solo ocorre de forma não planejada, fundamentalmente em função de contradições na legislação pertinente e/ou por falta de definição clara de restrição de alteração da paisagem.
            A valorização da terra, em função da possibilidade de mudança de uso, causada pela proximidade da cidade, cria forças de expulsão da atividade agrícola, a qual só se mantém onde ocorre o uso intensivo da terra e se caracteriza pelo alto valor agregado. Por outro lado, a importância do urbano leva as administrações municipais a ficarem orientadas pelos problemas mais visíveis, deixando o rural e o agrícola sem atendimento. É neste quadro que os agricultores, sem assistência técnica e política, só têm duas alternativas: a organização social e a luta pela inserção social (Alto Tiête-Cabeceiras) ou o individualismo e o abandono gradativo do local e/ou da atividade (Billings e Guarapiranga).
 

2. Estratégias para o fortalecimento da agricultura peri-urbana

            A proximidade da cidade tem agido desfavoravelmente para a manutenção da agricultura e para usos menos intensivos e degradantes do solo e da água. O desafio de como buscar reverter esta tendência está em fortalecer os usos adequados, partindo do diagnóstico dos principais problemas que tornam as atividades pouco atraentes e levam ao seu abandono.
            No caso da agricultura, a questão do trabalho 'pesado', que muitas vezes afasta os jovens, é compensada pela questão da autonomia e do modo de vida que atrai outros. Existe, portanto, um perfil de pessoas que buscam a atividade agrícola por razões que vão além do econômico. Nos municípios da Bacia do Alto Tietê, identificaram-se casos de jovens que retornam ao meio rural para desenvolver atividade mais lucrativa nas propriedades dos pais, após experiência de estudo e de trabalho urbano. Existem jovens que optam pelo trabalho agrícola, como melhor alternativa de emprego e renda na região. Desta forma, apesar de existir uma tendência histórica de êxodo rural que se reflete nas estatísticas oficiais, foi identificada a tendência a um movimento inverso de pessoas atraídas por um modo de vida longe da urbanização.
            A violência, o roubo e o furto são os principais fatores alegados para o abandono da atividade. A dificuldade e a insuficiência do serviço de segurança pública deixam algumas regiões mais próximas das áreas urbanas impossíveis para o desenvolvimento de atividades rurais. São duas comunidades que possuem pouca interação. Em geral, o morador urbano, que chegou a região já nesta condição, desconhece a área e vê no rural o perigo e o desconforto, mas não a beleza. O antigo morador olha com desconfiança para os recém chegados, com quem associa a perda da tranqüilidade e a insegurança.
            O primeiro desafio para fortalecer a agricultura peri-urbana está em buscar estratégias de aproximação destes dois grupos. As principais alternativas são: a agricultura urbana como um instrumento importante para contribuir para a segurança alimentar e para a construção de espaços de solidariedade entre as populações mais carentes, com o apoio e a orientação dos agricultores da região; a ocupação das áreas de risco por pomares comunitários como estratégia de emprego, renda, integração social e construção da cidadania; e, em outros casos, a integração através de laços de comércio solidário, para a parcela da população que se pode apresentar como consumidora, no mercado destes produtos.
            O segundo desafio é o de fomentar novos usos compatíveis com a preservação da paisagem. As áreas urbanas carecem de espaços públicos de lazer e esta é uma nova função dada ao rural. No caso da Guarapiranga, alguns equipamentos estão sendo implantados na região para atrair grupos escolares, de diferentes níveis de renda, ou famílias para desfrutar das belezas da região ou de acomodações confortáveis. Na sub-bacia Tietê-Cabeceiras, situação semelhante se desenvolve, inclusive com locais para festas. O principal empecilho para o desenvolvimento destas atividades de lazer são a degradação da paisagem e o medo da violência. O importante a considerar, entretanto, é que a violência se distribui de forma desigual, concentrando-se nas áreas mais urbanizadas.
            Uma forma alternativa de ocupação que cresce bastante nestas regiões são os sítios de lazer. Neste caso, a questão fundamental está na definição do padrão de loteamento e nas exigências paisagísticas do projeto que podem definir padrões diferenciados de uso e ocupação. Loteamentos fechados são uma forma de responder à questão da violência, que parece ser o fator do esvaziamento de casas deixadas para caseiros que muitas vezes são desempregados esperando uma oportunidade melhor de emprego e se submetem a viver sob as condições de alto risco, que afasta os proprietários.
            Desta forma, a questão principal é alimentar as experiências existentes para que limitem a expansão urbana, criando um movimento contrário que possa atrair novos interessados. A grande demanda são leis e fiscalização que preservem a paisagem, além do desenvolvimento de formas de acesso: estrada-de-ferro turística, por exemplo, que facilite atingir as áreas ainda com características rurais.

3. A agricultura orgânica, uma alternativa de economia alternativa.

            A organização regionalizada do sistema orgânico de produção e sua associação com estratégias de desenvolvimento local têm sua origem nos fundamentos do movimento orgânico. A tecnologia de produção orgânica vê o produtor como um observador da natureza, de seus processos naturais e vê a intervenção como um mecanismo de fortalecimento e não de oposição a esses processos. A diversidade dos ecossistemas define, portanto, o caráter regional da pesquisa-extensão e da produção orgânica, do ponto de vista tecnológico. Na perspectiva sócio-econômica, a regionalização está associada a necessidade de fortalecer o sistema através da interação, complementação e troca de experiências entre os diversos agentes, dado o seu caráter de setor em formação, onde estas relações são escassas e bastante personalizadas. Por outro lado, o sistema orgânico se propõe como um modo de produção alternativo ao capitalismo, não simplesmente uma tecnologia alternativa. Isto significa que sua coexistência só é possível através da luta constante do movimento social dentro do (ou paralelamente ao) mercado, através da sua regulação. Pode ser entendido como dependente da construção da 'economia solidária'. Pode-se assim utilizar as palavras de SINGER (2000): 'a economia solidária é uma criação em processo contínuo de trabalhadores em luta contra o capitalismo. É um modo de produção e distribuição alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se encontram (ou temem ficar) marginalizados no mercado de trabalho', considerando assim o sistema orgânico como a sua base tecnológica no setor agro-industrial.
            Em Vignola (23/05/1999), foi anunciado um Plano de Ação para unir os movimentos orgânicos e de conservação da natureza. O Plano foi fruto dos esforços da União Mundial pela Natureza (IUCN) e da Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica (IFOAM). Deste encontro saiu a seguinte declaração: 'A agricultura orgânica coloca em prática o conceito de multi-funcionalidade, incluindo a biodiversidade, o bem estar animal, a segurança alimentar, a produção orientada para o mercado, o desenvolvimento rural e aspectos sociais e de comércio justo. A agricultura orgânica é fundamental para o desenvolvimento rural sustentável e crucial para o desenvolvimento futuro da agricultura e da garantia alimentar global' (SOUZA, www.iea.sp.gov.br – Agroecologia).
            As áreas de mananciais estão sendo ameaçadas por processos crescentes de urbanização em vários pontos do país. A água vem se tornando um bem escasso em um dos países do mundo em que existe a maior disponibilidade hídrica. Isto vem ocorrendo em função do assoreamento das nascentes, do desmatamento ao longo dos cursos d’água que provocam o seu alargamento, evaporação e redução do fluxo, contaminação por esgotos residenciais de loteamentos clandestinos e contaminação por instalação de serviços necessários ao atendimento da expansão urbana e que põem em risco a qualidade das águas superficiais e subterrâneas, utilizadas para consumo humano.
            A agricultura, pela sua baixa densidade de ocupação e pela manutenção da permeabilidade do solo, pode ser uma alternativa econômica de uso do solo mais compatível com as exigências de uma área de manancial. Quando considerado o padrão orgânico, elimina-se a possibilidade de contaminação pelo uso de produtos químicos inadequados. A preocupação com a manutenção da fertilidade natural do solo exige um manejo que evite a erosão ou até mesmo o escorrimento de águas superficiais para os cursos d’água. O cumprimento da legislação ambiental e trabalhista também consta das exigências do padrão orgânico.
            A regulação de mercado orgânico dá-se através das certificadoras que garantem aos consumidores as normas a serem observadas rigorosamente e que são de conhecimento público, sistematicamente revistas e aperfeiçoadas. No caso brasileiro, as certificadoras desenvolveram-se dentro do movimento orgânico. De forma geral, distinguem-se das internacionais pois são organizações não governamentais (ONGs), e não empresas. Como conseqüência, muitas delas têm suas normas revistas democraticamente por todos os associados e/ou certificados e, em geral, conseguem prestar os serviços de forma mais acessível aos agricultores familiares.
            A prática da agricultura orgânica tem efetivamente um custo associado mais alto devido ao caráter de pesquisa-ação que os agricultores realizam, devido à maior dependência da extensão rural e da orientação técnica, ao tempo necessário para a comercialização direta e/ou ao custo de obtenção da certificação, pela preservação do ambiente e observância da remuneração justa aos trabalhadores, além do cumprimento da legislação trabalhista.
            Desta forma, a produção orgânica tem como atributos adicionais a preservação dos recursos naturais e a construção de uma sociedade mais justa e equalitária.

4. Considerações finais

            A agricultura no país foi historicamente tratada como um setor de apoio ao desenvolvimento industrial através da produção de alimento barato para viabilizar os baixos salários e maximizar a capacidade de acumulação do setor emergente. Os preços baixos dos produtos agrícolas traduzem-se em baixa remuneração aos agricultores, reduzindo as condições de competitividade dos produtores com pequena escala. O êxodo rural foi o impacto esperado desta política, criando assim uma grande oferta de mão-de-obra que garantiu a formação dos baixos salários urbanos. A visão da natureza como um bem inesgotável também levou a uma forma de manejo predatória cujo sinal mais evidente é o aumento das áreas desérticas e o assoreamento dos cursos d’água. Vários estudos já demonstraram o impacto social e ambiental da agricultura quimificada, fortalecida no Brasil a partir dos anos 70s.
            Em uma economia regida pelo mercado, os atributos sociais e ambientais implícitos no produto orgânico devem ser valorados e adicionados ao preço do produto proveniente da agricultura tradicional. A construção de uma sociedade mais justa e equalitária depende da revisão deste padrão de relação setorial. A agricultura orgânica, com selo social e ambiental integrados, pode ser o instrumento fundamental desta transformação, via mercado. O apelo da qualidade e da disponibilidade da água é importante fator para impulsionar esta 'revolução' do padrão histórico de acumulação da sociedade brasileira.


Literatura Citada

GEIER, Bernward. Desenvolvimento Local num Mercado Global? O papel da IFOAM e do Movimento Agrobiologista na corrida à globalização. (on line) Disponível http://www.ifoam.org. (capturado 10/10/01)

SINGER, P & SOUZA, A R. (org). A Economia Solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo, Editora Contexto, 2000. 360p.

SOUZA, M. C. M. Declaração e Vignola e plano de ação. (on line) Disponível http://www.iea.sp.gov.br – Agroecologia (capturado em 10/10/01)

Data de Publicação: 31/10/2001

Autor(es): Yara Maria Chagas de Carvalho Consulte outros textos deste autor