Agricultura Familiar E A Dinâmica Local

            Este artigo tem como objetivo analisar as condições de vida e as estratégias de emprego e renda familiar em duas comunidades de agricultura familiar no Estado de São Paulo, identificadas dentro dos limites geográficos de microbacias hidrográficas, áreas de mananciais não delimitadas legalmente que abastecem as sedes de seus municípios.
            A pesquisa realizada tem como marco teórico as definições de desenvolvimento local contraposto ao desenvolvimento global, avaliando as estratégias das famílias de construir relações de solidariedade no meio urbano na busca da sua viabilização econômica.
            Como salienta BENKO (1966), existe um aspecto dual na globalização: 'De um lado, um mosaico de sistemas de produção regionais especializados, possuindo cada qual sua própria rede densa de acordos de trocas...e um funcionamento específico do mercado local de trabalho. De outro, o mesmo mosaico se insere no entrelace planetário de ligações inter-industriais, de fluxos de investimentos e de migrações de população.' Seu conceito básico é o da 'globalidade dinâmica local', definida como o processo dos sistemas locais inovadores, que se desdobram sobre o seu 'hinterland', transformando a dinâmica do sistema internacional, criando um novo sistema integrado, mais importante (BENKO, 1996). Como diria SANTOS (1991), 'cada lugar recebe influências de variáveis internas (que são características locais) e externas, combina variáveis de tempos diferentes, aceitando ou rejeitando o 'novo' a partir da organização política, econômica, social, cultural do espaço. O novo não chega em todos os lugares e quando chega não necessariamente ao mesmo tempo'. Estas variáveis influenciam as características do lugar mediadas pelo mercado, que regula, ou pelo Estado, que regulamenta este processo.
            As microbacias escolhidas para a pesquisa têm forte predominância da agricultura familiar, definida pela não dissociação do trabalho gerencial e braçal. O marco teórico fundamental é a metodologia de sistemas agrários (DUFUMIER, 1996; DUFUMIER, 1985; e MAZOYER, 1989), detalhada nas técnicas desenvolvidas no seu âmbito (FUNDAÇÃO INSTITUTO AGRONÔMICO DO PARANÁ, 1997).
            Através da leitura de paisagem, fez-se um primeiro contato com a diversidade do meio natural e social. A técnica de leitura de paisagem propõe uma exploração pelo contato visual abrangente, associado a entrevistas semi-estruturadas, realizadas aleatoriamente. Neste processo, identificam-se as comunidades, os principais sistemas de produção (conjunto de atividades agropecuárias desenvolvidas dentro do estabelecimento, relacionado a uma condição econômica específica) e as atividades complementares não agrícolas importantes para os produtores da região.
            Foi então estabelecida interativamente, com os técnicos regionais, locais e produtores, a tipologia dos produtores da região, considerando a diversidade existente de sistemas de produção. Foram identificadas famílias representantes dos diversos tipos descritos, que concordaram em receber um estudante bolsista. Realizou-se com elas levantamento durante 15 dias, em cada propriedade, integrando a obtenção de informações com os afazeres cotidianos da produção. Os dados são referentes à safra 1998/99. Os instrumentos para o levantamento do sistema de produção são: o 'croquis' e o corte transversal da propriedade; o itinerário técnico que descreve a seqüência e a intensidade do trabalho do conjunto da força de trabalho disponível no estabelecimento; a rotina diária de todas as pessoas que constituem a força de trabalho agrícola, mas que não se dedicam exclusivamente a esta tarefa; o calendário anual de uso da força de trabalho identificando as tarefas realizadas por atividade; o calendário de uso dos equipamentos, com identificação das tarefas; e o fluxo de caixa em termos físicos e monetários, determinando a principal fonte de fornecimento dos insumos e compradora dos produtos. Foi também feito um relatório de avaliação técnica da exploração onde se deu o estágio do estudante, com base em um roteiro técnico proposto.
            Durante o tempo de permanência na comunidade, foram feitas visitas a todas as famílias que receberam os estudantes e, pelo menos, a um núcleo familiar de todos os ramos existentes na comunidade. Isto tinha o objetivo de aproximação pessoal, mas também de elaboração da 'arvore genealógica' das famílias, ainda presentes nas áreas.
            As reuniões foram preparadas através de perguntas/temas/palavras geradoras, de acordo com a proposta de Paulo Freire (Freire, 1992; e FREIRE, 1994) e da metodologia ZOPP (MINISTÉRIO ALEMÃO DE COOPERAÇÃO ECONÔMICA, s.d.). É consistente com as abordagens 'crafting new rules and institutions' (OSTROM, 1992; OSTROM, 1990; ESMAN & UPHOFF, 1984), 'resolução de conflitos' (FISHER, URY & PATTON, 1991; e FISHER & BROWN, 1989) e de fortalecimento dos segmentos sociais marginalizados (CERNEA, 1994)
            A participação da comunidade deu-se através do uso de cartelas. As posições do grupo são fruto da análise das idéias nelas contidas, dentro do método dialógico de Freire. Todas as propostas são consideradas e hierarquizadas de acordo com a visão da maioria. Posições contrárias foram analisadas exaustivamente. Em caso de persistência, buscou-se garantir a unidade do grupo através de uma posição abrangente que pudesse acomodar as divergências.

1. As regiões e as comunidades

            Este trabalho se desenvolveu em duas regiões específicas - Escritório de Desenvolvimento Rural de Guaratinguetá, município de Piquete, microbacia do Ribeirão Passa Quatro, e Escritório de Desenvolvimento Rural de Assis, município de Paraguaçú Paulista, microbacia Água do Alegre - onde predominam agricultores familiares. As duas regiões são bastante diferenciadas em termos da importância da atividade agrícola e da dimensão das áreas urbanas, no Estado de São Paulo. Nas duas áreas, a principal atividade agropecuária é a produção de leite, atividade que vem passando por fortes transformações tecnológicas e de estruturação de mercado em prejuízo dos agricultores familiares.
            O município de Piquete, na encosta da Serra da Mantiqueira, caracteriza-se por estar localizado em área de pecuária leiteira de baixa produtividade, próximo à divisa do Rio de Janeiro, e abrigar uma cidade de porte pequeno para os padrões do Vale do Paraíba. A Cooperativa Paulista esta sediada nesta região.
            Paraguaçú Paulista localiza-se na área oeste do Estado, perto de áreas de solo de alta fertilidade onde se concentra a produção paulista de grãos. No município, as principais atividade são a cana-de-açúcar e a pecuária de corte e leite. A cidade é a segunda mais importante da região administrativa da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado e é um pólo econômico para os municípios vizinhos. A Cooperativa presente na região tem abrangência local.

2. Resultados

            As informações de fluxo de caixa demonstraram que as famílias residentes no Ribeirão Passa Quatro conseguem uma renda modal líquida comparável à das de Paraguaçú, mas existe menor diferenciação entre elas. Compensam a baixa produtividade leiteira pela agregação de valor ao produto, pela não aquisição de insumos e por se apropriarem das margens de comercialização, praticando a venda direta ao consumidor. A localização em área de menor atividade agrícola e maior urbanização lhes garante um mercado para o seu produto mais compensador do que em Paraguaçú. Estes agricultores podem ser associados com os denominados de 'periféricos' no estudo FAO/INCRA (1995), mas demonstram grande capacidade de resistência às transformações da economia global, ofertando produtos na cidade próxima que são vistos como de qualidade diferenciada.
            Identificou-se que a residência na área rural de Piquete é uma opção para muitos jovens que ganham a vida deslocando-se diariamente ou por empreita para trabalhar na construção civil, conforme enfatizam os trabalhos sobre o novo rural (GRAZIANO, 1997a e b). Outras famílias de jovens buscam alternativas agrícolas nas pequenas criações, em hortaliças e mel, mas não há nenhum trabalho da extensão para estas atividades. A terra é um fator escasso.
            As mulheres de Piquete dedicam-se ao artesanato de crochê, mas são exploradas por quem fornece a matéria prima e compra a produção. Existem possibilidades próximas de comercialização, mas elas dependem dos homens para irem à cidade, o que inviabiliza tanto a compra do insumo como a venda do produto.
            As características do emprego rural e as dificuldades da atividade agropecuária, associadas às condições do meio físico, estimulam o grande interesse da comunidade pelo turismo rural. Entretanto, desperta sentimentos e expectativas diferentes. Identificou-se a necessidade de desenvolvimento de projeto, voltado à questão da organização para participar do Conselho Gestor na APA da Mantiqueira, focado no desenvolvimento do turismo.
            No caso de Paraguaçú, embora algumas famílias tenham construído sua moradia na cidade e algumas mulheres tenham emprego urbano, identificou-se que existem alguns jovens, com formação em agronomia e zootecnia, dedicando-se à atividade agrícola no bairro. A moradia é urbana, mas deslocam-se diariamente para a propriedade.
            A titulação das terras, em muitos casos, ainda não sofreu partilhas mesmo quando o primeiro comprador já é falecido. Existem vários casos de netos casados partilhando a terra. A terra já é, portanto, um fator escasso para várias famílias que procuram identificar os que devem permanecer na área e os que devem buscar formas alternativas de sobrevivência, tornando fundamental encontrar alternativas agropecuárias que não sejam exigentes no uso extensivo da terra.
            As formas de comercialização utilizadas pelos agricultores também demonstraram que muitos deles, fundamentalmente os que têm menor produção, buscam agregar valor ao produto na comercialização. Um dos produtores participa da feira, outro vende frutas diretamente aos consumidores, outro vende leite para restaurante e uma família tem um açougue na cidade. Há indícios de que, quanto mais tecnificado, menos tempo o produtor dedica à comercialização e à busca da margem apropriada pelo intermediário. No que diz respeito ao café, vendem a um único comprador que paga pela qualidade diferenciada do produto.
            De uma forma geral, as condições econômicas vividas pelos agricultores dessa área são difíceis, mas as estratégias de agregação de valor ao produto agrícola, diversidade de fontes de renda e residência rural parecem ser suficientes para mantê-los no campo. Embora existam famílias cujos jovens abandonaram a terra, predominam aquelas em que está aumentando o número de pessoas que têm que viver da mesma área.
            Não existe nas comunidades uma compreensão da fragilidade e importância ambiental da área em que residem. Por não existir uma clara definição dos usos possíveis, multiplicam-se as residências de familiares em detrimento da área de uso agrícola. Encontrou-se em Paraguaçú uma carvoaria instalada, sem a preocupação da poluição causada para os vizinhos e para a própria família.


LITERATURA CITADA

BENKO, Georges. Economia, espaço e globalização na aurora do século XXI. São Paulo, HUCITEC, 1996. 266 Pg.

CERNEA, Michael. (ed_ Putting People First: sociological variables in rural development. BIRD, Washington D.C. 1994.

DUFUMIER, Marc. Worshop: O sistema agrário no município de Promissão. Convênio FAO/INCRA. Promissão, julho de 1996.

______________ Sistemas de produção e desenvolvimento agrícola no terceiro mundo. Paris GRET Les Cahiers de la Recherche Développement 6, 1985. (resumo traduzido)

ESMAN, Milton & UPHOFF, Norman. Local Organizations: intermediaries in rural development. Ithaca, Cornell University Press, 1984.

FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Diretrizes de Política Agrária e Desenvolvimento Sustentável. C. E Guanzirolli (coord.), 1995. 24 p.

FISHER, R; URY, William; PATTON, Bruce. Getting to yes. Penguin Books, 1991. 200 Pg.

FISHER, Roger & BROWN, Scott. Getting together. Penguin Books1989.217 Pg.

GRAZIANO DA SILVA, J. O Novo Rural Brasileiro. Nova Economia, Belo Horizonte. 7(1):43-81, 1997.

---------------------------------- Sobre a delimitação do rural e urbano no Brasil: testando as aberturas geográficas das novas PNADs. Anais do XXXV Congresso da SOBER, Natal,1997. 114-146 Pg.

FUNDAÇÃO INSTITUTO AGRONÔMICO DO PARANÁ. Enfoque Sistêmico em P&D: A Experiência Metodológica do IAPAR.IAPAR, Londrina, dez. 1997. 152 p. (Circular 97)

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994. 218 p.

_____________ Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. 219 p.

MAZOYER, Marcel. Algunos apuntes sobre los sistemas agrários. Trad. M. Auxiliadora Mojica. Nicaragua, 1989. (mimeo)

OSTROM, Elinor. Crafting Institutions for Self Governing Irrigation Systems. Institute for Contemporary Studies Press, San Francisco, 1992. 110Pgs.

----------------------- Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge University Press, 1990.

SANTOS, M. Pensando o espaço do homem. São Pulo, Hucitec, 1986.64 p.

__________    Metamorfose do espaço habitado. São Paulo, Hucitec, 1991. 124 p.

__________    A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo, Hucitec, 1997.
 

Data de Publicação: 31/10/2001

Autor(es): Yara Maria Chagas de Carvalho Consulte outros textos deste autor