Plano Nacional De Desenvolvimento Rural Sustentável: O Programa De Renovação Da Educação Rural

            A segunda versão do Plano Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (PNDRS) do governo foi aprovada no dia 28 de agosto de 20021, sendo que, desde sua primeira versão, o plano foi construído com a participação ampla de setores do Estado e da sociedade civil. Além de ampliar o debate, a opção do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável2 pelo planejamento participativo na elaboração do Plano visou, também, garantir o caráter pedagógico e legitimador durante todo o processo3.
            Incorporando várias emendas, uma terceira versão do documento em elaboração, que será discutida em Brasília em dezembro, divide-se em duas partes. A primeira trata da orientação estratégica do país, das opções estratégicas de governo para o período 2003-2006 e do Plano Plurianual (PPA 2004-2007). A segunda parte divide-se em quatro programas:

Programa 1 – Democratização do acesso à propriedade da terra;
Programa 2 – Fortalecimento da agricultura familiar;
Programa 3 – Renovação da educação rural; e
Programa 4 – Diversificação das economias rurais.

            Estes quatro programas articulam-se entre si e são prioritários, o que não descarta e existência de outros programas.
            Este artigo propõe-se a discutir um aspecto conceitual orientador do Programa 3 – Renovação da educação rural – que tem gerado polêmica e posicionamentos bastante passionais de instituições ligadas à capacitação, à luz de considerações teóricas inovadoras sobre essa problemática.

Análise do Programa e discussão

            O Programa de renovação do ensino rural do PNDRS apresenta elementos fundamentais para o desenvolvimento sustentável no campo, mas restringe-se ao desenvolvimento econômico e à possibilidade de se adotar um modelo criativo que considere as potencialidades locais, sejam humanas, financeiras, físicas, sociais e ambientais.
            No entanto, apesar de a educação ter 'sido proclamada como uma das áreas-chave para enfrentar os novos desafios gerados pela globalização e pelo avanço tecnológico da era da informação' (Gohn, 1999: 07), pouco se tem discutido sobre a real articulação entre a educação e o sistema produtivo.
            Desta forma, este artigo propõe uma reflexão sobre esta articulação e defende que o desenvolvimento econômico seja apenas uma parte da meta a ser perseguida pela educação, não um fim em si mesmo.

            O Programa 3 – Renovação da educação rural baseia-se em dois objetivos:

a) valorizar as pessoas a partir de sua situação de vida; e
b) valorizar os recursos do território a partir de um diagnóstico proveniente de pesquisa participativa.

            Segundo o Programa, a renovação da educação rural deve ser feita pela 'pedagogia da alternância' que parte dos recursos locais e de sua valorização. Isto porque, dentro dessa linha, podem-se desenvolver dinâmicas envolvendo a comunidade, criando e fortalecendo valores e atitudes de transformação e mudança, condições indutoras a um novo empreendedorismo solidário e protagonismo social (CNDRS, 2002:30). O documento propõe, também, envolver e articular a comunidade e fortalecer a educação pública não estatal. Nesta perspectiva, prevê um Programa Estratégico para a educação rural articulado aos demais programas do PNDRS, o que implicaria num novo modelo de educação rural.
            Ainda na parte referente à educação, propõe 'construir caminhos para o desenvolvimento sustentável do Brasil rural, por intermédio de ações que mobilizem sistemas de educação formal e informal, como instrumentos de cidadania. São normas políticas, pedagógicas, administrativas e financeiras a serem observadas nos projetos das instituições que integram esses diversos sistemas'.
            Esta preocupação com mudanças nas normas do sistema educacional, somada à proposta de fortalecer a educação pública não estatal e de estabelecer um novo modelo de educação rural, assemelha-se ao modelo de administração pública gerencial que inspirou as reformas do atual governo federal4.
            A administração pública gerencial considera a educação, saúde e a pesquisa como serviços não exclusivos da administração pública. São serviços públicos não estatais, que podem ser executados por organizações sociais.
            Ao encaixar-se neste programa de reforma do governo, o Programa de renovação da educação rural do PNDRS deixa dúvida quanto à sua intenção. Faz-se necessário deixar claro se o Programa pretende ser uma proposta para a restruturação do ensino rural como um todo (formal e informal) e, portanto, ser uma proposta de linha prioritária para o MEC , ou se visa apenas ser um item de um Plano de Desenvolvimento Rural Sustentável.
            O próprio termo 'modelo', utilizado no documento, é bastante inadequado para tratar da articulação entre Estado, terceiro setor e sociedade. Devem-se considerar prioritariamente os novos sistemas, uma vez que modelos podem impedir a ação criativa e democrática da sociedade.
            Independente desse aspecto, que visa situar o texto no âmbito geral das reformas do Estado, lendo-se o PNDRS com a perspectiva de que o Programa de renovação da educação rural trata apenas da integração do ensino não formal com o desenvolvimento local, nota-se um forte viés no sentido de focar a educação rural voltada prioritariamente para o mercado.
            Nota-se que o documento concebe a educação de forma ampla, o que implica, segundo Gohn, em associá-la ao conceito de cultura. Desta forma, a educação deve ser abordada enquanto ensino/aprendizagem adquirido ao longo de toda a vida.
            A educação formal refere-se à alfabetização e/ou ao objetivo de repassar o acervo de conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade.
            A educação não formal5 realiza-se através de uma organização distinta das organizações escolares e pode incluir a dimensão do conhecimento exigido para a educação formal. Porém, inclui uma segunda dimensão, a cultural, que trata da educação gerada no processo de participação social, em ações coletivas não voltadas para os conteúdos da educação formal.
            A educação não formal passou, nos anos 90s, a ter destaque devido às mudanças ocorridas no mundo do trabalho. Os processos de aprendizagem em grupos e os valores culturais que articulam as ações individuais passaram a ser valorizados e uma nova cultura organizacional que, em geral, exige a aprendizagem de habilidades extra-escolares assumiu importância (Gohn, 1999:92)6.
            Gohn considera que não são apenas as mudanças na economia e na mídia que geraram isto, mas também as agências e organismos internacionais (ONU, UNESCO, estudiosos).
            A Conferência da ONU, realizada em 1990 na Tailândia, concebe que o conhecimento adquirido é observado através da maior ou menor habilidade com que a pessoa age na vida familiar, comunitária, social, econômica, política e cultural7.
            Nos anos 90s, o modelo de educação não formal da ONU passou a vigorar com força, devido à crise e ao desemprego provocados pelas políticas globalizantes frente à nova ordem mundial de desmontagem do sistema de proteções e garantias vinculadas ao emprego, a desestabilização da estrutura do mercado de trabalho e a volta da situação de precariedade do trabalhador em relação ao sistema de direitos. Os trabalhadores, assim, perderam status, segurança e às vezes a própria identidade, com o fim do sistema salarial (Castel, 1998, citado por Gohn, 1999: 94).
            A partir de meados dos anos 90s, proclamou-se o poder do conhecimento (como a terceira onda) e não mais da economia. Ou seja, a terceira onda exige da pessoa novas habilidades, como a da gestão.
            Considera-se que não importa mais possuir um grande acervo de conhecimentos, mas sim o domínio de certas habilidades básicas, que, segundo Gohn, são:

  • Comunicar-se,
  • Dominar a linguagem da máquina,
  • Ter habilidade em gestão (própria vida, carreira, equipes, conflitos).

            Ou seja, todos têm que planejar e administrar a própria vida e carreiras (Gohn, 1999:95). Cobra-se um perfil de trabalhador criativo que:

  • saiba compreender processos e incorporar novas idéias,
  • tenha velocidade mental,
  • saiba trabalhar em equipe,
  • tome decisões,
  • incorpore e assuma responsabilidades,
  • tenha auto-estima e
  • atue como cidadão.

            Para Gohn, o enfoque na problemática da aquisição de novas habilidades desloca a questão social do desemprego do âmbito das políticas públicas governamentais8 para os indivíduos, enquanto trabalhadores, caracterizando-os como mão-de-obra despreparada (Gohn, 1999:95).
            Neste contexto, ocorreu a proliferação dos cursos dados por entidades e sindicatos e das demandas sobre educação. As ONGs, o novo terceiro setor, estão situadas mais nesta área de atuação, que engloba até o ensino formal.
            Alguns cursos desenvolvidos por programas oficiais têm utilizado as elaborações feitas sobre as novas necessidades básicas do cidadão. Tais programas foram realizados com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e, também, do Banco Mundial.
            Entretanto, segundo Gohn, apenas a habilidade de gestão acaba não capacitando os indivíduos a aprofundar o conhecimento de sua profissão ou administrar suas vidas. A avaliação destes programas realizados com recursos do FAT e do Banco Mundial (Gohn, 1999:96) mostrou que os indivíduos treinados não conseguem recolocação no mercado de trabalho. Segundo a autora, isto decorre do fato de que o treinamento não os prepara para tal, mas apenas para entrar no mercado informal e em trabalhos alternativos.
            A autora apresenta necessidades mais amplas dos indivíduos ao afirmar que:

            'Temos observado que o resultado prático da nova ordem mundial tem sido uma sociedade cada vez mais competitiva, violenta e individualista. Os indivíduos estão cada vez mais isolados e estressados. São pessoas desenraizadas, sem pertencimentos.'(Gohn, 1999)

            Essa necessidade de um novo enraizamento social requer conceber a educação de forma ampla, incluindo a educação formal e não formal.
                As experiências de ensino não formal acumuladas resultam em novos espaços institucionais na arena política. Gohn considera que estes espaços institucionais podem levar a novas estruturas coletivas que combinam formas de exercício da democracia direta com a representativa. Para tanto, há necessidade de um longo processo de aprendizado entre todos os atores que origine uma representação institucionalizada (Gohn, 1999).
            Especialmente num plano de desenvolvimento rural, as duas dimensões da educação são fundamentais. Gohn defende uma nova forma de gestão que 'pressupõe um sistema de comunicação composto sob a forma de redes, com canais bastante fluentes, com estruturas formais de representação (conselhos, colegiados, etc.) em todos os níveis e segmentos' (Gohn, 1999:109). A autora defende que a escola não deve ser voltada exclusivamente para a inserção econômica no mundo do trabalho – como preconizam os modelos neoliberais.
            A nova realidade exige uma preparação voltada para:

  • recompor a personalidade dos indivíduos
  • capacitar o cidadão a encontrar e preservar a unidade de sua experiência por meio das emoções da vida e da força das paixões que se exerce sobre elas.

            Isto é, Gohn defende que se deve trabalhar a subjetividade humana para entender a complexidade da vida e do trabalho
            Os valores que fundamentam esta preparação devem ser de caráter universal, de civilidade humana, de respeito ao outro, valores que aspirem uma vida sem violência, ódios e preconceitos raciais (Gohn, 1999). Desta forma, o homem deve ser tratado igualmente, seja na situação do ensino rural ou urbano, seja na de país em desenvolvimento ou de país desenvolvido.

Considerações finais

            Assim, quando se trata do aspecto educacional, mesmo dentro de um plano de desenvolvimento rural e, principalmente, se o plano pretender a sustentabilidade social, o objetivo não se pode restringir a pensar na liberdade de escolha resultante da ampliação de opções dada pela melhoria das condições econômicas e de saúde. Mas deve, principalmente, pensar na liberdade que o indivíduo adquire através da capacidade de se perceber no mundo, fundada, basicamente, em estruturas mentais que possibilitam a individuação. A educação deve visar também este desenvolvimento, que é muito mais amplo do que apenas a preparação para o mundo do trabalho (mesmo que este mundo seja o do empreendedor). A educação deve tratar de uma perspectiva da totalidade do ser humano.
            O construtivismo implica em trabalhar com a realidade local, mas esta realidade não está circunscrita ao mundo do empreendedorismo, do desenvolvimento econômico. Há inúmeras outras questões a serem tratadas. Deixá-las de lado significa considerar que o desenvolvimento humano pode ser realizado em etapas desconexas. Primeiro se resolvem questões como a alimentação e a saúde para depois se trabalhar aspectos emocionais, relacionais, psíquicos e espirituais. Acreditar nesta dissociação do homem de seus elementos constituintes essenciais implica em cair nas mesmas lógicas de propostas que já ludibriaram a tantos, como a de 'crescer para depois distribuir' ou o sonho socialista da igualdade de condições econômicas e sociais sem a igual preocupação com a liberdade e a inserção na sociedade.
            O desenvolvimento econômico só será sustentável e incorporará os anseios da comunidade se esta comunidade estiver apta a reconhecer seus próprios anseios.
 
 

1 NEAD (Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural) Portal NEAD de Estudos Agrários -  Notícias Agrárias 02 a 08 de Setembro de 2002 N.º 150 boletim@nead.org.br .
2
www.cndrs.org.br Segunda versão do PNDRS capturado em setembro de 2002.
3 NEAD
http://www.nead.org.br/boletim/boletim.php?boletim=150&noticia=282, capturado em 08 de setembro de 2002 (b) 
4 O modelo de administração gerencial foi apresentado no Seminário organizado pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado do Brasil em 1996 e organizado por Bresser Pereira e Spink em livro com prefácio do presidente Fernando Henrique Cardoso na qual reconhece a necessidade de mudanças no sentido de uma administração gerencial. (PEREIRA, L. C. Bresser e SPINK, Peter (org.). Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.)
5 Não confundir com educação informal, que acontece sem uma organização e um método de ensino/ aprendizagem.
6 GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e cultura política: impactos sobre o associativismo do terceiro setor. São Paulo, Cortez, 1999. – (Coleção Questões da nossa época; v.71).
7 Segundo documento da Unicef de 1992 (citado por Gohn, 1999: 93)
8 Concentradas na política econômica que subordina toda a vida social à busca de redução do, déficit fiscal, imposta como a única possível (Gohn, 1999)

Data de Publicação: 27/11/2002

Autor(es): Regina Helena Varella Petti Consulte outros textos deste autor
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