Vale A Pena Reinventar O Proálcool No Brasil?


            Uma forma de se compreender com um pouco mais de segurança o que envolve a instalação do Proálcool no Brasil é analisar algumas questões que dizem respeito à interdependência dos mercados interno e externo de açúcar e de álcool, assim como as suas possibilidades de desenvolvimento a partir de estratégias empresariais e de políticas públicas setoriais. É claro que, como pano de fundo, e permeando todo esse processo, está o fato de que é preciso entender e decidir sobre sua importância social, creditando-lhe (ou não) o devido peso estratégico por ser um combustível produzido a partir de fonte renovável. Ademais, vale ressalvar seu menor impacto ambiental na poluição atmosférica vis a vis a gasolina, sempre lembrando que esse programa é um exemplo típico daqueles que exigem a construção de alianças sólidas entre os diversos segmentos produtivos e entre esses e a sociedade para se alcançar uma estruturação eficiente.

Relação entre açúcar e álcool: mercados interdependentes

            A flexibilidade da matéria-prima ser esmagada para produzir açúcar ou álcool, reduzindo ou aumentando o mix da produção em função dos preços de ambos os produtos, além da rentabilidade econômica que essa diversificação produtiva possibilita aos empreendimentos do setor, acrescenta uma importante influência na definição dos preços do açúcar no mercado externo.
            Veja-se o cenário elaborado por um conceituado analista internacional, A.C. Hannah sobre a influência do Brasil no mercado internacional de açúcar, conforme minha tradução livre: 'o Brasil construiu uma poderosa indústria de álcool no final dos 1970 e início dos 1980, (chamada pelo autor de 'bomba de álcool'), através da grande expansão da produção de cana-de-açúcar, a qual se usada para produzir açúcar poderia suprir todo (grifo meu) o mercado mundial. Nos anos 1990 a gradual desregulação do mercado doméstico de álcool levou o país a aumentar a produção de açúcar, acelerada em 1998 e 1999. E a desvalorização do Real detonou o gatillho dessa bomba: no início de 1990 a produção brasileira estava por volta de 10 milhões de toneladas e em 1999 havia excedido 21 milhões. As consequências para o mercado mundial de açúcar tem sido, e continuarão a ser, profundas e danosas (grifo meu). A esse nível de produção o Brasil alcançou uma participação de 25% nesse mercado, ditando preços ao aumentar ou diminuir sua produção. E, as consequências não param por aí. Os preços desse mercado, e já há evidências desse fato, deverão convergir para um nível próximo aos custos de produção dos países mais competitivos, mais uma margem. Dada a grande participação brasileira, e seus baixos custos, incrementados pela desvalorização da sua moeda, o novo preço de equilíbrio deverá estar na faixa de 7 a 8 centavos de dólar por libra-peso. Se os preços subirem acima disso o Brasil expandirá a produção e estes se reduzirão para o nível anterior. Este cenário é obviamente complicado inclusive para os mais eficientes exportadores, cujo custo de produção está perto de 10 centavos (de fato, para todos)'.
            Em resumo, percebe-se uma estreita dependência entre ambos os mercados com a dinâmica evolutiva do mercado brasileiro de álcool influenciando o comportamento dos preços externos de açúcar. Isso leva a pensar na relevância de torná-lo bem estruturado, com regras transparentes e objetivas para que os observadores e analistas percebam sua racionalidade e consigam verificar que, se bem regulado, não provocaria impactos extremados sobre os preços do açúcar, tornando-os ainda mais voláteis do que normalmente o são.
            Para que isso ocorra a regulação desse mercado precisa ser feita de maneira a criar um fluxo constante de disponiblização da mercadoria. Para tanto devem-se utilizar os instrumentos de política relativos à mistura do álcool à gasolina, assim como os que incentivem a formação de estoques estratégicos governamentais e privados.

Ampliando o mercado de álcool pelo caminho externo: tamanho atual e possibilidades de expansão

            Essas duas formas de atuação não esgotam o leque de alternativas que objetivam regular com mais eficiência o mercado de álcool combustível. Uma delas é a possibilidade de explorar novos mercados, criados a partir da expansão das exportações.
            Entretanto, esse é ainda um mercado acanhado que precisa ser instrumentalizado para permitir transações comerciais expressivas, embora já haja indícios de que poderá crescer rapidamente nos próximos anos. Atualmente a produção mundial de álcool é de 33 bilhões de litros. O Brasil ocupa a primeira posição, com 32%, seguido pelos EUA, com 20%, e pela China com 9%, sendo os restantes 39% diluídos em vários outros países, segundo dados divulgados pela UNICA.
            Por sua vez, a comercialização mundial alcançou, em 1996, um pico de 4 bilhões de litros (historicamente sendo comercializados em média, 3,6 bilhões), quando o Brasil importou álcool dos EUA para suprir necessidades tópicas, (Rodrigues, 2000). As exportações nacionais sempre foram de álcool destinado à industrias, como as de perfumaria e bebidas, girando em torno de 100 milhões de litros, o que significa 3% do total.
            As perspectivas de aumentar a participação brasileira no mercado mundial de álcool combustível em termos de demanda futura são promissoras, pois cresce o interesse de vários países em utilizá-lo como oxigenante da gasolina, de maneira a contribuir para a redução da poluição atmosférica. A demanda adicional de álcool nos próximos anos, dependendo dos percentuais de mistura adotados poderá variar entre 19 bilhões e 60 bilhões nos EUA, no Canadá deverá ser de 2,7 bilhões, no México de 2,1 bilhões (Rodrigues, 2000) e no Japão, caso misture-se 5% de álcool, será de 2 bilhões de litros adicionais. Além desses países, França, China, Austrália, México, e Tailândia, já têm programas de adição de álcool à gasolina e ao diesel, ou estão estudando suas possibilidades, o que significa ampliar ainda mais essa demanda potencial (Exame, 2002).
            É evidente que essa demanda não será cativa do Brasil. Haverá incentivos à produção local em vários países e competição na conquista de outros mercados consumidores. O Brasil inicia com vantagens relativas ao custo de produção, pois seu custo de US$ 0,19/litro é mais baixo que dos EUA, de US$ 0,33/litro, e sensivelmente mais baixo que o álcool europeu, de US$ 0,56/litro. Porém, encontrará dificuldades de entrar no principal mercado, o dos EUA, que conta com sistema de proteção para ao álcool, pois além do imposto de importação (de 3%), tem um subsídio interno de US$ 0,54/galão, e que ao câmbio de R$ 2,50/US$ significa acréscimo de R$ 0,35/litro ao custo original.
            Os mercados consumidores dos países da zona do euro podem ser potenciais compradores, mas dependem tanto do estabelecimento de estratégias empresariais e governamentais brasileiras para atender esse objetivo, quanto de negociações que evitem os conflitos que poderão surgir em função do sistema protecionista da agricultura européia.
            Duas possibilidades aventam-se muito positivas: a de ampliar a exportação de tecnologia na forma de bens de capital para instalação de destilarias em vários países, tal como o interesse manifesto da Índia de importar algo como 20 ou 30 destilarias, e a aparentemente bem sucedida estratégia de exportação, coordenada pela Coimex, de estocar 1 bilhão de litros para comercializá-los no mercado internacional.
            Nesse sentido, deve-se, no mínimo, pensar em se fazer investimentos diretos na instalação de destilarias nos principais mercados asiáticos, tal como o mercado chinês, através de parcerias com empresários locais, visando tanto ao abastecimento doméstico quanto atender a outros países dessa região.

Perspectivas para o mercado interno

            Ao mesmo tempo em que se pretende criar e expandir o mercado externo de álcool e sua regulação interna, não se pode esquecer dos incentivos à expansão doméstica, cujas dificuldades devem se enfrentadas pelo Governo e pelos produtores de álcool e de veículos.
            Esse mercado, que representava em 1986 uma participação de 76% na produção de automóveis, chegou a seu mais baixo nível em 1998 com 0,1% da produção total, recuperando-se até alcançar 1% em 2001, o que significa ainda uma participação muito baixa. A queda ocorreu em função da falta de disponibilidade do combustível em 1989 e consequente abalo na credibilidade dos consumidores relativa ao abastecimento futuro, pela mudança do regime automotivo que retirou gradativamente as vantagens tributárias (ICMS, IPI e IPVA) dos veículos a álcool, e principalmente pelo aumento da relação de preços álcool/gasolina, que evoluiu de cerca de 65% na década de 1980, para acima de 75% durante parte da década de 1990, chegando a 85% em 1997.
            Atualmente a recuperação nas vendas de veículos a álcool é muito positiva. Em abril deste ano o crescimento das vendas relativas ao mesmo período de 2001foi superior em 66% e em maio, de 263% a mais, embora sobressaiam as compras do governo e de taxistas e a concentração das vendas principalmente em uma montadora. Ou seja, os consumidores e o setor automobilístico em geral não foram incorporados, o que demonstra ausência de incentivos derivados do Governo e de estratégias empresariais.
            É interessante ressaltar que os preços relativos continuam favoráveis ao álcool. Em 1999 essa relação refluiu para 52%, aumentando um pouco em 2000 para 62%, e retornando em 2002 para 50-60%, o que evidentemente se configura em forte incentivo a compra de veículos a álcool e em importante estratégia comercial a ser mantida pelo setor produtivo. É bom lembrar que, dada a relação técnica de consumo do álcool, de 25% a mais que a gasolina, o preço que torna desestimulante utilizar álcool será aquele que chegar próximo à equivalência de 80%.
            Assim, é óbvio que a primeira estratégia comercial, de responsabilidade do setor produtivo, já está em ação e demonstra resultados. Mas a maior dimensão desse programa depende também de outras iniciativas motivadoras, entre as quais destacamos o retorno do bônus de álcool para o comprador de automóvel zero quilômetro, equivalente ao consumo de uma utilização de 20 mil quilômetros, algo como 2,5 mil litros; sorteios de carros a álcool para compras efetuadas em shoppings; investimento na criação de marcas e elaboração de políticas típicas de propaganda e marketing para o produto. Por fim, emulando iniciativas de sustentação de preços do álcool, sugere-se pensar na implantação de um plano que permita, enquanto o mercado de carros a álcool não adquirir dinamismo próprio, financiar a sustentação de preços de recompra de carros usados nas principais praças, de forma a evitar que, no processo de renovação de veículos a álcool, o consumidor tenha de reembolsar um valor superior ao do veículo OK a gasolina.
            Pelo lado do Governo, a principal medida se refere à reformulação do ICMS do álcool produzido em São Paulo. As alíquotas diferenciadas para anidro (recolhido na gasolina) e as existentes para o hidratado nas operações interestaduais – que variam de 7% para o caso das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, e Estado do Espirito Santo, de 12% nas operações interestaduais com destino às regiões Sul e Sudeste e de 25% nas operações internas – provocam condições para negociações fraudulentas, sejam porque se entrega o produto sem nota, seja porque se possibilita a existência de várias modalidades de fraudes (álcool 'molhado', 'operação pelicano', etc). A existência de 25% de adulteração comprovada de álcool nos postos de combustíveis, detectada em pesquisa recente da Agência Nacional do Petróleo-ANP, demonstra inequivocamente esse fato.
            Nesse caso, cabem estudos criteriosos para se chegar a valores adequados para as alíquotas assim como para estabelecer mecanismos de controle que permitam verificação de origem. Caso contrário se estará simplesmente reduzindo alíquotas e também a arrecadação, conflitando diretamente com os critérios de administração pública estabelecidos na lei de Responsabilidade Fiscal.
            Por fim, deve-se levar em conta o aproveitamento de uma janela de oportunidade não vislumbrada no passado recente, representada pela tecnologia do motor flexível, que utiliza qualquer proporção de álcool hidratado, gasolina pura ou misturada. Essa inovação introduz uma mudança qualitativa no sentido de vincular fortemente a decisão de produção à demanda do consumidor, e também uma mudança quantitativa pois permite potencializar as vendas de veículos a álcool. Resta (o que não é pouco) desenvolver as articulações de modo a motivar as montadoras em colocar essa tecnologia mais cedo do que está divulgando.

Breves considerações finais

            A relevância do álcool como combustível pode ser ressaltada através de várias formas. Uma delas é pelo foco da importância estratégica, no sentido de ampliar as fontes energéticas primárias renováveis como maneira de reduzir a dependência do petróleo, que é insumo finito, provoca impactos irreversíveis ao meio ambiente e, ademais, é causa de instabilidades políticas e econômicas por ser explorado numa região do mundo (oriente médio) submetida a constantes conflitos belicosos. Uma segunda forma é destacar suas vantagens relativas à redução da poluição atmosférica, enquanto produto ambientalmente amigável, desde que, inclusive, se resolva o problema das queimadas.
            Ambas representam opções em que a sociedade deve tomar posição acima dos interesses corporativos pois estão ligadas ao desenvolvimento do capital social básico mais importante para o destino da economia brasileira, qual seja o da infra-estrutura energética.

Data de Publicação: 01/08/2002

Autor(es): Alceu De Arruda Veiga Filho Consulte outros textos deste autor