O Acordo Sobre Medidas Sanitárias E Fitossanitárias E A Experiência Brasileira No Comércio Com O Canadá

A despeito da fragilidade da Organização Mundial do Comércio (OMC), enquanto organismo internacional regulador do comércio mundial, notadamente no que se refere aos produtos agrícolas, está entre seus objetivos restaurar o livre comércio e o multilateralismo nas trocas internacionais. Os acordos e entendimentos sobre a liberalização do comércio de bens incluíram os seguintes temas: tarifas, agricultura, medidas sanitárias e fitossanitárias, têxteis e medidas de investimento relacionadas ao comércio.

O Acordo sobre as Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (MSFs), de particular interesse na elaboração deste artigo, visou estabelecer um conjunto de regras e disciplina multilaterais para orientar o desenvolvimento, a adoção e a implantação dessas medidas e, consequentemente, minimizar seus efeitos negativos sobre o comércio. Isto porque, embora sejam medidas que visem proteger a saúde dos homens, dos animais e dos vegetais, os riscos de utilização de regras sanitárias e fitossanitárias pelos países/blocos como instrumentos de proteção, barreira à entrada, e como instrumento de pressão, e mesmo de retaliação, contra terceiros não são desprezíveis. Pelo contrário. Nesse sentido, organizações internacionais, como por exemplo a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), afirmam que a redução programada dos direitos aduaneiros tornou as barreiras não tarifárias na principal fonte de entraves às trocas e as regulamentações nacionais são particularmente identificadas como sendo potencialmente uma causa importante de protecionismo.

No entanto, embora o Acordo sobre as MSFs encoraje a utilização dos padrões internacionais e a harmonização dos padrões nacionais, este ainda é bastante vago e, portanto, insuficiente para evitar que tais medidas sejam utilizadas como instrumentos restritivos no comércio entre países. A recente decisão do Canadá de proibir a importação de carne bovina brasileira, sob a alegação de que o rebanho nacional estaria exposto à doença da 'vaca louca' sem qualquer justificativa científica (esta é uma das regras mais importantes do Acordo das MSFs), é um exemplo claro do mal emprego que pode ser feito das barreiras não tarifárias contra terceiros. Além disso, tendo em vista os riscos de contaminação pela doença da 'vaca louca' em países da Europa, os efeitos causados sobre o consumo de carne bovina pelos consumidores locais e o efeito negativo causado sobre as exportações européias, a atitude canadense pode trazer conseqüências que extrapolam os efeitos sobre o comércio bilateral, para o produto, entre o Brasil e o Canadá. Aliás, a esse respeito a suspensão canadense causaria um dano desprezível para as exportações brasileiras de carne e miudezas de bovinos, conforme mostrou a participação das importações deste 'parceiro' comercial para estas mercadorias no ano 2000 e mesmo para o grupo de produtos que compõem o capítulo 02 (Tabela 1).

Tabela 1: Exportações Brasileiras de Carnes e Miudezas, Comestíveis, Capítulo 02, US$ FOB, 2000

Destino

Canadá (A)

Mundo (B)

A/B (%)

0201.10.00: carcaças e meias carcaças, de bovino fresca

-

1.126,00

-

0201.20.90: outras carnes de bov., não desossadas, fresca

-

10.633,00

-

0201.30.00: carnes de bov., desossadas, frescas ou refrig.

-

170.141.478,00

-

0202.20.90: outras carnes de bov., não desoss., congel.

-

355.409,00

-

0202.30.00: carnes de bov., desossadas, congeladas

48.061,00

332.763.479,00

0,01

0206.21.00: línguas de bovino, congeladas

101.903,00

4.155.762,00

2,45

Total Exportado pelo Brasil das Mercadorias do Cap. 02

156.049,00

1.605.569.479,00

0,01

Fonte: SISCOMEX - Brasil.

Além dos 'estragos' causados para a imagem da carne bovina brasileira no comércio internacional, com provável comprometimento da rentabilidade do setor, para os quais o governo ameaça, e deve, exigir reparação moral e econômica, este caso trouxe à tona a fragilidade e o despreparo do país frente aos países desenvolvidos que, na prática, administram o comércio internacional.

Assim que, até 1999, o Brasil tinha apenas um reduzido corpo diplomático junto à OMC, sem a assessoria de uma equipe de advogados e especialistas em comércio internacional para melhor defender seus interesses nesse fórum internacional. Apesar da mudança recente de atitude, o país ainda está longe de se igualar às condições oferecidas aos seus representantes pelos países desenvolvidos. Além disso, o setor privado brasileiro, acostumado a se apoiar no Estado, não esteve atento para a necessidade de participar ativamente no sentido de ajudar a levantar questões de mérito, respaldadas tecnicamente, para a defesa de seus interesses e do país. Persiste no Brasil a cultura de ação individualista do empresariado nacional, que, se de um lado pode ser positiva ao estimular o crescimento e o desenvolvimento através da competição, de outro inibe ações coletivas benéficas para enfrentar a concorrência desleal, característica que historicamente tem marcado as relações comerciais entre sociedades capitalistas.

Outro ponto importante diz respeito à carência de uma política séria, rigorosa e efetiva de fiscalização e de controles sanitário e fitossanitário, tanto para a produção interna quanto para a importação de agroalimentares. As exigências brasileiras com relação à qualidade de entrada de produto vegetal importado deixam a desejar se comparadas com às de outros países. No ano de 2000, o Ministério da Agricultura finalmente regulamentou a carreira de fiscal agropecuário, mas ainda persistem diferenças salariais com relação a outros fiscais federais, como por exemplo aos fiscais de renda, desestimulando os mesmos a resultados mais concretos em termos de fiscalização. Há, portanto, ainda muito para ser investido nessa área, principalmente em condições melhores de trabalho (como por exemplo a maior e melhor informatização do setor). Outros problemas enfrentados pelo setor de fiscalização sanitária referem-se à sobrecarga de trabalho dos fiscais, dado que o efetivo é insuficiente, e o acúmulo de funções administrativas, devido à carência de pessoal de apoio. Além disso, as negociações em andamento com a União Européia para o estabelecimento de legislação e normas comuns nesse domínio devem ser, na medida do possível (reconhece-se que as dificuldades são grandes), aceleradas e colocadas como metas de curto prazo pelo governo brasileiro.

Finalmente, investimentos em pesquisa e treinamento na área de comércio internacional devem ser prioridades em qualquer país que deseje ganhar poder de decisão no cenário mundial, pois apenas a capacitação, o conhecimento da realidade, a identificação de problemas e a busca de soluções dão sustentação para ações críveis e sustentáveis no tempo.

Data de Publicação: 22/02/2001

Autor(es): Valquiria da Silva Consulte outros textos deste autor