Produtores Agrícolas Pobres Conquistam Mercado: Experiências Latino-americanas

Introdução

A noção de que produtores agrícolas pobres só conseguem produzir bens tradicionais para o autoconsumo e/ou para mercados locais deve ser reformulada. Essa categoria quer e pode, muitas vezes, traçar metas mais ousadas, como ascender a mercados dinâmicos, definidos como aqueles que estão em permanente transformação em termos de custos, produtos específicos, qualidades demandadas, tendências tecnológicas, vantagens dos competidores, etc. – desde que esteja atenta a essas mudanças. O planejamento da produção para atender esses requisitos de mercado pressupõe capacitação, informação e organização.

Muitos dos objetivos desses produtores são comuns aos dos empresários rurais e há espaço para todos. No entanto, os tipos de mercado e condições de acesso diferem entre as categorias. Também é significativa a diferença quanto aos meios de se atingir mercados dinâmicos.

Preocupados com a pobreza rural, organismos internacionais vêm implementando discussões sobre acessos ao mercado, caso do Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola para a América Latina e Caribe - FIDAMERICA, que, criado em 1996, tem a missão de estimular o trabalho com populações rurais pobres em países em desenvolvimento, através de uma rede institucional de intercâmbio, documentação, financiamento e análises de experiências concretas. Mais especificamente trata de melhorar os sistemas de informações e de conhecimento: de tecnologia, de preços e mercados, de experiências exitosas e reaplicáveis, de canais de comercialização e sistemas financeiros e de políticas que afetam o segmento produtivo, com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento agrícola sustentável de países pobres e de melhorar a qualidade de vida da população.

Nesse contexto, na IX Conferência Eletrônica organizada pelo FIDAMERICA foram selecionados 10 estudos de caso sobre o acesso de produtores rurais pobres a mercados dinâmicos, para serem analisados e discutidos. Além do Brasil, foram apresentadas experiências concretas dos seguintes países: Argentina, Bolívia, Costa Rica, Equador, Guatemala, México, Peru e Venezuela. Participaram da Conferência cerca de 850 técnicos e representantes de entidades internacionais da América Latina, Caribe, Estados Unidos, Canadá, Europa e Ásia.

O objetivo deste artigo é apresentar, de forma resumida, os estudos de caso, bem como as principais conclusões do evento.

O estudo de caso do Brasil - gengibre

O estudo sobre o gengibre, desenvolvido no Instituto de Economia Agrícola (IEA), foi realizado no município de Tapiraí, na região Sudoeste paulista onde predominam produtores familiares responsáveis por parcela expressiva da produção de bens básicos de consumo. Da área total municipal, 70% possuem restrições ambientais - tombados como Área de Proteção Ambiental (APA) - e têm na agropecuária sua base econômica. O cultivo de gengibre (Zingiber officinale Rosc.) é um caso exitoso no contexto do agronegócio, sendo explorado por cerca de 100 produtores com área média de quatro hectares e introduzido na região no final da década de oitenta por agricultores da colônia japonesa. Os níveis de rendimento obtidos em Tapiraí são os mais altos de todas as regiões produtoras do País, podendo afirmar-se que a exploração destinada ao mercado externo tem se mostrado lucrativa.

Essa atividade vem contribuindo para a absorção da mão-de-obra local e, por necessitar de contínuo monitoramento, é adequada aos moldes familiares. As políticas públicas de investimento e de custeio, o papel das instituições estaduais de extensão e pesquisa e, principalmente, as ações municipais foram importantes para a alavancagem da cultura do gengibre em Tapiraí. Destaca-se a iniciativa da prefeitura local no estímulo ao uso mais intensivo de composto orgânico, que, ao resolver um sério problema de doença de solo, também contribuiu para aumentar a eficiência técnico-econômica da lavoura, o que, na prática, resultou numa redução da ordem de 300% no preço da compostagem para o produtor e no aumento da produtividade em relação à média nacional. Essa inovação tecnológica e outros manejos recomendados à planta têm sido repassados aos produtores do município por meio de cursos de capacitação técnica, com o objetivo de difusão dos conhecimentos para, com isso, também se conseguir um padrão homogêneo de qualidade do produto, visando à sustentabilidade do agronegócio.

 

Os demais estudos de casos da América Latina

O estudo do México reporta-se à exportação de café orgânico pelos indígenas da Serra Madre de Motozintla, Chiapas. Apresenta a experiência da Sociedade de Solidariedade Social Indígena (ISMAN), formada na sua totalidade por produtores de origem maia de 196 comunidades (1.240 sócios) distribuídas no estado de Chiapas. O café orgânico é o produto principal da ISMAN, ocupando cerca de 5.100 hectares, cuja exportação - nos últimos 15 anos - se destina a 14 países. Graças ao trabalho dessa associação, criada a partir de oito organizações privadas – de classe, técnica, cultural e social -, a renda média dos sócios aumentou 30%, além de revalorizar a tecnologia tradicional indígena, seguindo uma estratégia de proteção à natureza, visando à auto-suficiência e à diversificação de cultivo.

Da Guatemala foi selecionado outro documento que enfoca a produção e a comercialização de café orgânico. Descreve uma experiência realizada com 1.770 camponeses da etnia Kanjobal, muito pobre e com graves problemas de acesso a mercados, cujas áreas sempre se caracterizaram por cultivos naturais sem contaminação de agroquímicos e por possuírem grande beleza natural e biodiversidade. Em 1996, o Ministério de Agricultura, Pecuária e de Alimentação (MAGA) implementou o Projeto de Desenvolvimento da Serra dos Cuchumatanes (Pcuch), através do qual a produção de café natural foi transformada num sistema de produção orgânica e a etapa de comercialização - que era individual - passou a ser feita conjuntamente por três cooperativas. Deste modo, esses produtores de café têm tido acesso a mercados que requerem volumes relativamente grandes, graças também ao empenho na melhoria e certificação do produto e da gestão em todos os segmentos de sua cadeia produtiva. A renda média das famílias aumentou de US$ 1.250/ano a US$ 1.970/ano.

Costa Rica apresentou o caso da organização FUFUMRAMA (que no dialeto indígena significa 'mulheres produtoras de borboletas'). Em 1997, seis grupos de mulheres (80 famílias) da Região Norte Huetar de Costa Rica decidiram formar uma organização com o objetivo de planejar e coordenar a produção, em cativeiro, e a venda de borboletas. Atualmente, a FUFUMRAMA faz a conexão entre os compradores e as produtoras, encarregando-se também da classificação, embalagem e remessa do produto. A experiência tem se consolidado graças a um processo contínuo de pesquisa e aprendizagem, com a ajuda de agentes externos, tanto nos aspectos técnicos e comerciais como nos organizacionais. Trata-se de exportações de crisálidas para países de alta renda, cuja finalidade é a de propiciar a exibição do nascimento e a exibição de espécies exóticas de borboletas em zoológicos desses países. Com essa atividade, a renda familiar tem aumentado de US$ 100 a US$ 150 por família/mês.

Um dos estudos da Venezuela tratou da elaboração e comercialização de conservas de leite de cabra pela Associação Civil 'El Titiriji'. Esta experiência se desenvolve na aldeia de Las Guarabas, município de Torres no Estado de Lara, no semi-árido venezuelano. A organização é integrada por três famílias que possuem um total de aproximadamente 300 cabras. Por meio de um processo contínuo de melhoria de qualidade, elas puderam atingir novos mercados, partindo inicialmente do local para chegar aos centros urbanos regionais, inclusive Caracas. A expansão dos mercados possibilitou aos caprinocultores daquela aldeia o crescimento da escala de produção, levando-os à compra de leite de cabra de produtores vizinhos. A renda média dessas famílias tem aumentado 60% ao ano.

Outro trabalho da Venezuela descreveu um projeto que acrescenta valor à carne de caprinos, por intermédio da Associação de Produtores de Caprinos (ASOPROCA). Trata-se da Comunidade de Cañaote, município de Iribarren, também no Estado de Lara. Refere-se ao caso de uma pequena organização, de base familiar, cuja estratégia de acesso a mercados está estreitamente vinculada à agregação de valor através do processamento da matéria-prima, procedimento este que tem permitido uma saída às produções tradicionais que, até antes da experiência, apresentavam poucas perspectivas de desenvolvimento. Nesse processo, a margem de ganho da carne para consumo in natura é de 3,2% e a porcentagem de ganho na elaboração de embutidos é de 9%, incremento de renda que tem estimulado os produtores a continuarem no negócio, conquistando mercado e mais emprego para a comunidade.

Da Argentina veio a experiência de 200 artesãos da etnia Wichí, da Missão Chaquenha na província de Salta. Tradicionalmente, os indígenas Wichí dedicavam-se à coleta e à caça, embora o artesanato já existisse há 20 anos. Depois de experiências fracassadas de desenvolvimento agrícola, atualmente essa comunidade se constitui num centro de destaque na produção de artes em madeira e o ofício está se estendendo às outras aldeias vizinhas. O valor da produção chega aos US$200 mil e as exportações representam 50% das rendas, proporcionando um nível de vida bem mais elevado do que o de outras comunidades congêneres. Contribuíram para o sucesso dessa atividade, na etapa de comercialização e divulgação, agentes externos ligados à igreja anglicana e a uma companhia americana que criou um site na Internet sobre o artesanato, visando principalmente ao mercado dos Estados Unidos.

O estudo de caso da Bolívia apresentou a experiência de uma organização de camponeses membros da Cooperativa Agrícola Integral Campesina (CAIC) de Riberalta, Departamento de Beni. Eles são descendentes da mestiçagem entre várias etnias locais e colonos trazidos de outras regiões argentinas para a exploração, principalmente, da castanha do Pará (brazilian nut), sendo o extrativismo preponderante na região e a agricultura uma atividade marginal. As exportações da CAIC para a Europa alcançam um valor aproximado de US$300 mil anuais. Além da atuação da cooperativa – criada com o auxílio de instituições religiosas e ONG -, um passo muito importante para o desenvolvimento desta experiência foi a construção de uma planta beneficiadora da castanha, permitindo agregar valor ao produto e fugir dos atravessadores e dos empresários agroindustriais. Um aspecto muito interessante deste estudo de caso é a análise da relação entre os sócios e o pessoal administrativo da cooperativa e das dificuldades vividas para o desenvolvimento do 'capital social' no contexto de uma atividade eminentemente sazonal como é a coleta da castanha.

Do Equador foi selecionado o estudo que descreve a experiência de uma fundação privada - Fundação para o Desenvolvimento Agropecuário (FUNDAGRO) – que se associou ao governo local para formar uma empresa exportadora de aspargos frescos (AGRIGUNGA) , com a finalidade de obter recursos para investir em programas sociais. A participação da fundação visou proporcionar o capital necessário, assim como know how para desenvolver e consolidar a empresa. O objetivo inicial foi o de apoiar a Comuna Engunga, situada no Cantón Santa Elena, Província de Guayas, onde viviam cerca de 250 famílias (1.600 pessoas) em condições precárias e com dificuldades de se manterem no campo, já que as explorações tradicionais vinham se deteriorando nos últimos anos. Para tanto, a FUNDAGRO definiu o projeto de aspargos com os auspícios da USAID. O sucesso do empreendimento – que conta com um gerente profissional de agronomia e de administração de empresas – deve-se à eficiência na gestão de todo o processo produtivo e de mercado, ainda que sujeito às incertezas de preços do mercado externo.

O estudo do Peru relatou a experiência desenvolvida por 171 famílias rurais pobres da região andina de Pasco, em Santa Ana de Tusi. O documento trata dos esforços iniciais da comunidade, com o apoio governamental e de entidades nacionais e internacionais, de exportar maca in natura – raiz com propriedades nutritivas e medicinais. Ao contrário dos demais estudos de caso, destaca como os avanços obtidos pela organização local foram afetados negativamente pela intervenção de políticas públicas. Apesar das vantagens obtidas tanto econômicas quanto sociais (adequadas à pequena produção, inclusive no contexto da sustentabilidade ambiental), a burocracia estatal do Ministério da Agricultura emperrou todo o processo de exportação, levando à perda de competitividade dos camponeses peruanos.

Principais conclusões

Dos casos apresentados, o que chamou bastante atenção foram as semelhanças sócio-culturais e ambientais das populações pobres analisadas, antes quase excluídas do processo econômico-produtivo de seus países, fatores que devem ser observados criteriosamente quando o objetivo é o desenvolvimento sustentado.

Um dos consensos a que o grupo de debatedores chegou foi de que existem três estratégias possíveis para o acesso dessa categoria de produtores a mercados dinâmicos: a) ou as comunidades rurais conseguem diferenciar seus produtos, incorporando algum atributo de qualidade que os tornem mais atrativos; b) ou devem buscar a abertura de mercados mediante agregação de valor, pelo processamento ou industrialização dos produtos primários; c) ou, por fim, devem participar do mercado fora das épocas de pico de oferta de seus concorrentes, aproveitando vantagens locacionais. Em alguns casos, essas estratégias podem ser combinadas. Em qualquer dessas situações, as características e preferências do mercado devem ser devidamente identificadas, norteando a tomada de decisões dos produtores pobres e dos agentes envolvidos com a comunidade.

Os principais incentivos para o sucesso das experiências apontaram para a presença de agentes externos – locais, governamentais e/ou internacionais – atuando como lideranças técnicas no fornecimento de habilidades, conhecimentos e modelos organizacionais, gerenciais, de comercialização e marketing; de investidores iniciais 'a fundo perdido' e/ou com créditos em condições preferenciais; de responsáveis por sistemas de informações que permitam aos pequenos produtores conhecer seus custos, exigências de fatores de produção e ganhos reais em alternativas distintas – inclusive com projetos experimentais que detectem os principais problemas e vantagens de cada uma delas; e de formuladores de políticas públicas tributárias, jurídicas, trabalhistas e creditícias, adequadas a esse tipo de produção.

Em todo esse contexto, o processo participativo com a comunidade deve ser estimulado, facilitando a atuação de lideranças externas e conscientizando os produtores sobre a importância de sua organização e do cumprimento de regras e obrigações, assim como de seus direitos, de forma a levá-los no limite ao papel de tomadores de decisões. Isso porque parte dos agentes externos deverá retirar-se no momento em que a atividade se mostrar em condições de sustentabilidade sócio-econômica.

Saliente-se que a permanência dos pequenos produtores nos mercados dinâmicos significa não fixar objetivos constantes e inalteráveis, mesmo a médio prazo, em matéria de custos e qualidade. Por isso, torna-se essencial desenvolver, implementar e monitorar sistemas de informação, capacitação, assistência técnica e de organização que transmitam a esses produtores, de forma rápida e permanente, os sinais de mercado.

 

Data de Publicação: 01/06/2001

Autor(es): Nilda Tereza Cardoso De Mello (nilmello@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Elizabeth Alves e Nogueira (enogueira@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor