Ganhos em escala nas agropecuárias norte-americana e brasileira

            As transformações da agropecuária durante o século XX, cujos desdobramentos persistem neste início do século XXI, produziram alterações significativas no perfil da demanda, generalizando hábitos de consumo. Ao mesmo tempo, empreenderam a mecanização de tarefas produtivas, de forma a multiplicar a produção com menos terra e menos braços, em resposta ao crescente processo de urbanização.
            Essas mudanças conformaram determinada composição da cesta de consumo, gerando reflexos diretos na estrutura da oferta. A questão fundamental das sociedades capitalistas desenvolvidas era garantir alimentos em quantidade suficiente para o abastecimento das suas populações, o que deu origem a políticas ativas de sustentação da produção em escala para o fornecimento de comida barata. Com isso, garantiram-se menores custos de reprodução da mão-de-obra que se urbanizava, além de estimular a expansão da indústria e dos serviços.
            Então, trocou-se progressivamente a proteína vegetal pela proteína animal produzida em escala oriunda da criação em estábulo de suínos, aves e bovinos, aprimorando a dieta alimentar. Esse movimento representou o aprofundamento do ocorrido no momento anterior porque a alimentação desses animais exigiu quantidades crescentes de grãos, ou seja, lavouras de escala. Essa conformação da estrutura agropecuária representa a condição dominante nas principais nações da agricultura mundial, gerando o poderoso complexo econômico-financeiro dos agronegócios de commodities.
            Os efeitos desse processo não são neutros pelo fato de que, para se obter ganhos em escala, há necessidade de intensa inovação em maquinaria, agroquímicos e genética vegetal e animal, bem como em outros elementos dessa moderna base técnica da agropecuária de grandes empreendimentos. Esse padrão da agricultura industrial implica na consolidação de cadeias de produção que promovam a orquestração de interesses, de maneira a propiciar mecanismos de coordenação vertical que produzam redução dos custos de transação e de produção.
            Os elos do fluxo produção-consumo são entrelaçados por diferentes modalidades de contratos que formatam teias de agronegócios. Estas estabelecem vínculos com o sistema financeiro, não apenas pela criação de mecanismos de financiamento da produção, como também na gestão de risco de preços com base em transações em bolsas de mercadorias.
            Em países-líderes como os Estados Unidos da América, a presença estatal está representada pela garantia de estabilidade do sistema mediante políticas ativas e subsidiadas de seguro rural e pela fiscalização das instituições financeiras, além de intenso subsídio de preços para as principais commodities. A negociação no sistema financeiro com títulos de terra com lastro de execução extra-judicial produziu uma cumplicidade patrimonial elevada entre os bancos e os proprietários de terra.
            Como os fundos de investimento detêm derivativos agropecuários no seu portifólio, há a convergência de interesses de parcela importante da sociedade norte-americana, no sentido de que a agropecuária e a agricultura tenham elevado desempenho. Noutras palavras, a sustentação das políticas de subsídios não está nos agropecuaristas, que têm pequena representatividade em número, mas no amplo interesse dos 'investidores' no setor.
            Esse padrão de agropecuária de ganhos crescentes à escala, que se movimenta com o combustível da inserção profunda na lógica do capital financeiro, traz inequívocos problemas estruturais, na medida em que a busca incessante da eficiência implica em maiores tamanhos dos empreendimentos. Assim, chama a atenção postulações críticas que colocam às claras essa realidade vivida no campo estadunidense, uma vez que, 'em uma lógica perversa que desafia a natureza, uma fazenda precisa se tornar cada vez maior e mais especializada para sobreviver. O número de fazendas com vendas anuais acima de US$ 500 mil dólares aumentou 23% de 1997 a 2002. A política agrícola americana, com um deslumbrante menu de subsídios, nos manterá no futuro previsível'1.
            A resposta a esse dilema estaria nas 350 mil fazendas de tamanho médio que cultivam 40% das terras produtivas, mas, 'infelizmente, esses agricultores também estão a caminho de desaparecer. As fazendas de tamanho médio, com vendas de US$ 50 mil a US$ 500 mil, estão em rápido declínio. Segundo o Governo, o número dessas fazendas caiu de 1997 a 2002, uma perda líquida de quase 65 mil fazendas ... Não é difícil imaginar que a maioria das fazendas de tamanho médio terá desaparecido em mais uma década'1.
            Entretanto, 'as grandes fazendas trouxeram um grande benefício: alimentos baratos. Os americanos gastam uma fatia menor da renda em alimento do que qualquer outro povo do mundo desenvolvido'1. Em função desse modelo de agropecuária de escala, 'cerca de 70% da terra agrícola no Meio Oeste são destinados a essas culturas. As fazendas que cultivam essas commodities têm, em média, 5.600 hectares e (se) prevê que as gigantes com 100 mil hectares dominarão a agricultura' 1.
            Essa eficiência e o fornecimento de alimentos baratos seriam ilusórios em função dos pesados subsídios, uma vez que 'o custo real dessas monoculturas não era contabilizado corretamente: os subsídios financiados pelo contribuinte (US$ 143 bilhões na última década), a injustiça que resulta quando nossa produção excedente é despejada nos países em desenvolvimento que não conseguem então desenvolver seus próprios recursos'1.
            A solução seria dada 'mudando a direção do dinheiro. O Governo subsidia hoje a produção de grãos como commodities - a maior parte milho e soja. Precisamos tirar os agricultores da armadilha da commodity e ajudá-los a fazer a transição para cultivar todos os tipos de alimentos - frutas e legumes - que beneficiarão a todos. Isso não é outro subsídio e não é previdência. É investimento inicial numa nova fronteira (na verdade, uma velha fronteira) em agricultura'1. Mas é importante ressaltar que 'essa mudança exigirá que mudemos hábitos. Teremos de apoiar uma dieta que contenha menos alimentos processados, baseados em commodities. Teremos de pagar mais pelo que comemos' 1.

O caso brasileiro

            Essa reflexão sobre a agropecuária norte-americana se mostra relevante também para a discussão dos rumos da agropecuária brasileira. Medidas tomadas na segunda metade dos anos 19902 manifestaram-se de forma plena quando o regime de câmbio flutuante passou a ser adotado em janeiro de 1999. A desvalorização da moeda brasileira nos anos seguintes permitiu enorme incremento nas vendas de produtos agropecuários brasileiros ao exterior, numa conjuntura de demanda mundial crescente e de preços remuneradores para as commodities3.
            Na fase de euforia da agropecuária brasileira de commodities, não faltaram artigos e farta divulgação da superioridade tecnológica e competitiva das cadeias de produção de grãos e fibras (notadamente soja e algodão) em relação à norte-americana. Essa percepção muda com a conjuntura desfavorável da safra de grãos e fibras 2004/2005, em especial as de soja e algodão, que enfrentou situação de perda, câmbio sobrevalorizado, preços internacionais cadentes e juros elevados que problematizam 'carregar estoques' numa atividade sazonal4.
            Nesse quadro, a superioridade em relação à agropecuária não se manifesta na crise, exatamente em função da institucionalidade jurássica em que se baseia a economia agropecuária brasileira. Esta não avançou para os modernos mecanismos de coordenação vertical centrados numa ampla economia de contratos negociados em bolsas, fundamentais não apenas para o financiamento mediante venda antecipada de safras como também para a gestão de riscos de preços operando com derivativos agropecuários. Além disso, o subsídio ao prêmio do seguro rural, na agropecuária norte-americana, promove a garantia da renda, enquanto no Brasil não existe estrutura consistente e organizada desse instrumento5.
            Porém, o processo mostra-se similar no que se refere ao fato de que a expansão de grãos e fibras levaria a uma imensa e insustentável amplitude de concentração da terra, ainda que com crises conjunturais como a atual. As grandes lavouras do cerrado do Brasil Central, Oeste da Bahia, Sul do Maranhão e Estado do Piauí, além do complexo sucroalcooleiro paulista, têm produzido elevada exclusão social. Houve redução de 1,8 milhão de postos de trabalho na agropecuária, ainda que a produção dessas culturas tenha se multiplicado de maneira significativa no período 1994-20036.
            Essa tendência continua e o peso das atividades agrícolas na ocupação é cada vez menor, ainda que tenha crescido a proporção de pessoas com carteira assinada. 'Considerando os resultados de 2004 com a mesma cobertura geográfica abrangida anteriormente pela pesquisa, a participação das pessoas ocupadas em atividade agrícola na população ocupada do País (19,9%), diminuiu em relação a 1992 (28,4%)'7.
            A PNAD 2004 mostra uma realidade dramática. Dos 17,7 milhões de pessoas da População Economicamente Ativa (PEA) da agropecuária nesse ano, 8,1 milhões estão na região Nordeste (45,7%), a imensa maioria em níveis elevados de exclusão social. Esse contingente não vem sendo incorporado na expansão setorial, com muitos sujeitos à expulsão do campo numa condição de pobreza ou impelidos à situação de miséria, vivendo à margem do progresso nas zonas rurais, pela dificuldade de serem aproveitados nas lavouras mecanizadas modernas.
            No Brasil, a discussão sobre a agropecuária norte-americana assume contornos mais graves. A competitividade do campo brasileiro está estruturada nas grandes lavouras de commodities (cana, laranja para sucos, papel e celulose e grãos e fibras) e na pecuária a pasto. É reduzida a participação das frutas e olerícolas para consumo direto na renda setorial.
            Nem mesmo tem sentido a discussão em torno da dualidade entre agropecuária de commodities e agropecuária familiar, ambas estruturadas em agronegócios competitivos. Salvo exceções como a maçã catarinense e outras experiências localizadas regionalmente, não foram estimuladas lavouras intensivas em trabalho, ficando a expansão por conta das lavouras com elevada relação capital/trabalho. Noutras palavras, a matriz estrutural da agropecuária nacional se mostra desempregadora.
            Assim, não faz sentido a discussão de que há ou não que se desenvolver a agricultura familiar. A questão está associada ao padrão de agricultura, naquilo que Ruy Miller Paiva já visualizava, nos idos dos anos 1940, claramente como a agricultura dos sitiantes produtores de frutas e olerícolas, em contraposição à agricultura das fazendas produtoras de grãos e fibras (commodities) 8.
            Em termos de limites macroeconômicos, a mudança da agropecuária de commodities para a agropecuária de frutas e olerícolas implica em trocar alimento farto e barato por alimento diferenciado e mais caro. Numa economia de baixos salários com renda muito concentrada como a brasileira, o problema da carestia dos alimentos, que atingia as massas urbanas, foi superado como resultado inequívoco dos efeitos sociais desejáveis da grande agricultura de alimentos baratos para a imensa maioria da população que vive nas cidades.
            Entretanto, numa economia capitalista, as pequenas e médias propriedades não têm chance de sucesso face à esmagadora superioridade tecnológica das grandes lavouras, ainda que com efeitos sociais e ambientais perversos, se mantido no Brasil unicamente o padrão das commodities de grãos e fibras, tal como nos Estados Unidos. Essa é a questão central a ser encarada na mudança do padrão vigente na agropecuária brasileira, tornando desnecessárias e muitas vezes impróprias definições e mensurações do que se comumente denomina 'agricultura familiar'.
            Na conceituação de agricultura familiar centrada na preponderância do trabalho da família no trabalho total, incluem-se situações antagônicas que vão desde a agricultura de subsistência nordestina, que vive em condições precárias, até os integrados nos complexos granjeiros de suínos e aves do Sul/Sudeste que obtêm condições de vida muito superiores. Essa iniqüidade tira a legitimidade e a universalidade do conceito, retirando-lhe consistência teórica e prática.
            Na verdade, há de se discutir a essência do processo de transformação da agricultura brasileira, que caminha para o aprofundamento do desenvolvimento capitalista. E, dentro dele, procurar alternativas de padrões que reduzam a relação capital/trabalho; ou seja, desenvolver atividades intensivas em terra como as frutas e as olerícolas, com plantios adensados para a produção de qualidade. Aí se incluiria o café, que deve ser a base de ampla agropecuária intensiva em gente e no uso da terra, com elevado padrão de renda e de qualidade de vida para seus praticantes.
            Mais que plantar pomares e cafezais e multiplicar estufas e canteiros de olerícolas e flores, há de se constituir a moderna logística de pós-colheita, beneficiamento, armazenagem de atmosfera controlada e transporte de perecíveis de qualidade. Isso representa a face peculiar do 'complexo agroindustrial' de perecíveis, sem o que não haverá chance de sucesso. A não ser que se queira dar razão à máxima carnavalesca de Joãozinho Trinta.
            De outro lado, há de se resolver a realidade ultrajante da miséria da agropecuária nordestina e de outros bolsões de pobreza rural. Misturar situações, empregando categorias conceituais que não permitem uma leitura consistente da realidade, mais que a compreensão não-adequada, pouco contribui para mudar os rumos da agricultura brasileira, enquanto reflexo tardio do desenvolvimento do capitalismo na agricultura norte-americana. Os efeitos de aumento da dimensão das lavouras no Brasil podem tomar proporções muito mais sérias, pois, sem o inverno rígido dos EUA, as possibilidades de ganhos em escala pela mecanização de processos são escandalosamente maiores 9. 10

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1 Texto originalmente publicado no The New York Times, por BARBER, Dan . O tardio apoio americano aos agricultores. O Estado de São Paulo de 27/11/2005. Caderno de Economia. Pág. B11.
2 Essa pujança atual decorre de medidas tomadas na metade dos anos 1990. Um discussão detalhada sobre as mudanças no padrão de financiamento da agropecuária brasileira e a criação dos novos títulos financeiros está disponível em GONÇALVES, José S. et al Novos títulos financeiros do agronegócio e o novo padrão do financiamento setorial. Revista Informações Econômicas 35 (7):63-90, 2005.
3 Sobre os incrementos recentes das exportações agropecuárias, ver VICENTE, José R., GONÇALVES, José S. & SOUZA, Sueli A M Desempenho da Balança Comercial dos Agronegócios sob a Ótica dos Grupos de Cadeias de Produção, Brasil, 1997-2004. Revista Informações Econômicas 35 (9):7-16, 2005.
4 A análise consistente da crise dos agronegócios brasileiros na safra 2004/05 foi realizada por MENDONÇA DE BARROS, José Roberto & MACHADO, Renata Ferraz de Toledo. O agronegócio brasileiro sob o stress de forte crise. Valor Econômico de 1/12/2005. Opinião. Pág A14.
5 Sobre essa discussão, ver GONÇALVES, José S. Crise da agricultura: modernidade produtiva e institucionalidade jurássica. IEA-APTA, São Paulo, Maio de 2005 (http//www.iea.sp.gov.br), e GONÇALVES, José S. et al. Novos títulos financeiros e novo padrão de financiamento do agronegócio. IEA-APTA, São Paulo, Março de 2005 (http//www.iea.sp.gov.br).
6 Ver essa discussão em GONÇALVES, José S. Agricultura: crescimento e desemprego.IEA- APTA, São Paulo, Dezembro de 2004b (http//www.iea.sp.gov.br).
7 Esse comportamento de queda do emprego agropecuário ocorre numa realidade em que o emprego total cresce no Brasil. Esses resultados correspondem a conclusões da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2004 (PNAD 2004). Ver IBGE. PNAD 2004: ocupação cresceu e rendimento ficou estável. Rio de Janeiro. Novembro de 2005 (www.ibge.gov.br). Acessado em 25/11/2005).
8 Ver essa interessante argumentação em PAIVA, Ruy M. Algumas observações sobre a agricultura dos pequenos sitiantes. Revista de Agricultura, SP, v. 16, p.487-500, 1941.
9 Isso sem aprofundar na análise estrutural da exploração da força de trabalho que se revela mais elevada em determinadas condições das pequenas e médias propriedades, na medida em que nas grandes lavouras capitalista cresce o emprego com carteira assinada que assegura direitos sociais e trabalhistas. Afinal, 'no aspecto econômico-produtivo, o desenvolvimento dos complexos agroindustriais do arroz e da laranja vem ocorrendo pelo triunfo da grande produção, seja na lavoura, seja na indústria, representada pelos conglomerados empresariais que se expandem por diversas regiões do país... O pequeno produtor, tão romantizado pelos arautos da agricultura familiar, são os que mais fraudam os direitos dos trabalhadores, impondo-lhes as piores condições de trabalho'. Sobre essas conclusões, ver SAMPAIO, Fernando dos Santos; BROIETTI, Marcos Henrique & MEDEIROS, Marlon Clovis. Dinâmica capitalista na agricultura brasileira: acumulação e relações de trabalho. UFSC/Depto de Geociências. Cadernos Geográficos 11. Maio de 2005.
10 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-124/2005.

Data de Publicação: 13/12/2005

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor