A sociedade impulsionando seu desenvolvimento: o exemplo de Lagoinha

              Vista Panorâmica de Lagoinha. Foto: Maria Célia Martins de Souza.

            Quem trabalha com a responsabilidade de gerar inovações tecnológicas, nos centros de pesquisa ou nas universidades, sabe que, normalmente, os passos são: primeiro, inventar; depois, desenvolver o invento através de modelos a serem testados e aprimorados; e, finalmente, dispô-los aos consumidores, os quais vão avaliar, adotar e difundir.
            Independente de considerações sobre as dificuldades para gerar e difundir tecnologias, o que se quer ressaltar é a existência de um trabalho abstrato que se transforma em concreto e que poderá ser adotado por empresas ou outros tipos de consumidores. Esses resultados têm, em geral, interferência direta, objetiva e mensurável na sociedade.
            Por sua vez, os que trabalham na área de pesquisa em ciências sociais sabem que seu caminho difere bastante, seguindo outra trajetória. Os conhecimentos desenvolvidos podem ser discutidos em fóruns, acadêmicos ou não, publicados em revistas especializadas e citados por outros autores. Sua concretização, porém, não é visível em processos ou produtos, sendo normal que tenham características contrárias às das tecnologias, ou seja, interferem de maneira indireta (pois ajudam nos processos de decisão), são mais sujeitos à subjetividade (no sentido de não haver prevalência de paradigmas técnico-científicos) e são de difícil mensuração por sua natureza discursiva.
            Mas há situações em que o próprio desenvolvimento da pesquisa proporciona condições para ocorrer interferência concreta na organização social e econômica. Uma delas será relatada em seguida.

Histórico do projeto

            A oportunidade em elaborar projeto sobre agricultura familiar surgiu quando o Pronaf começou a apoiar financeiramente estudos e pesquisas. Com essa possibilidade, um grupo de pesquisadores do IEA reuniu-se e decidiu desenvolver estudo no Vale do Paraíba, conhecido por ser uma região em que a agricultura familiar, em geral, tem garantido sua reprodução, agregando pouco valor nas atividades agrícolas que desenvolve, seja por deficiências das políticas agrícolas ou por razões estruturais.
            Em seguida, promoveu-se uma reunião com a diretoria e os técnicos extensionistas do EDR de Guaratinguetá, na qual se apresentou a idéia do projeto e se definiu o local. A idéia era a de estudar uma microbacia ou bairro rural, que tivesse características intrínsecas semelhantes, para poder diagnosticar e identificar problemas e prováveis soluções visando à sustentação e melhoria dessa categoria de agricultores.
            A escolha, por sua vez, foi realizada com base nos critérios: a) atuação da extensão no local; b) existência de Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural; c) prioridade à agricultura por parte da prefeitura; e d) importância da agricultura familiar.
            Assim, selecionou-se Lagoinha, situada a 197 km da capital, pertencente à Comarca de São Luiz do Paraitinga e localizada em região serrana, com altitude de 915m, população, em 1998, de 5.259 almas (pouco menos da metade morando na zona rural) e uma estrutura fundiária de 625 propriedades rurais (área média de 40 hectares), das quais 322, ou 52%, têm tamanho até 20 hectares. Nos três bairros pesquisados, os produtores tinham como fonte principal de renda a aposentadoria (42,2%), a atividade urbana (27,9%) e a renda do imóvel (20,4%). A principal atividade local era (e é) a exploração da pecuária leiteira, com aproximadamente 70% da área dessas propriedades sendo ocupados por pastagens.
            A partir daí começaram-se as articulações para dar prosseguimento ao estudo, no qual se envolveram a equipe de extensão rural do município, apoiada pelo EDR de Guaratinguetá, os conselheiros, o prefeito da gestão 1997/00 e os produtores familiares dos bairros rurais escolhidos para o estudo ( total de 151 proprietários).
            Os trabalhos desenvolvidos abrangeram treinamento para o levantamento de questionários, reuniões técnicas, reuniões com o Conselho para a escolha e referendo dos bairros e discussão sobre problemas enfrentados e possíveis soluções (esta última chamada de Diagnóstico Rápido Participativo-DRP), aplicação dos questionários em campo, elaboração de relatório e apresentação dos resultados à comunidade, etapas que ocorreram no período de julho de 1999 até final de 2000.

Mudanças ocorridas e superação de divergências

            O primeiro impacto da realização do DRP com o Conselho, após sua apresentação aos conselheiros, foi o pedido para apresentar os resultados aos produtores de leite e à diretoria da cooperativa, da qual eles são associados. Ressalte-se que essa reunião foi a primeira ocorrida entre eles e considerada inédita em Lagoinha.
            Durante a apresentação dos resultados obtidos com o diagnóstico participativo, houve questionamento, por parte de dirigente da cooperativa, quanto a uma determinada solução apresentada. Explicitou-se que a proposta partia de necessidade detectada junto aos produtores familiares e que talvez não estivesse sendo contemplada de modo adequado pelas ações da cooperativa. Esse primeiro conflito foi salutar no sentido de despertar nos produtores a possibilidade concreta de colocar suas necessidades e de discuti-las com seus parceiros. Ficou claro para os produtores que eles são o elo mais frágil da cadeia e que esta situação só será revertida na medida em que se organizarem. Também percebeu-se que, apesar de os problemas serem antigos e conhecidos, até então não havia tido articulação para discutir as questões em conjunto, sistematizá-las e procurar as possíveis saídas.
            Além disso, a ausência detectada de assistência técnica e a reflexão exercida pelos interessados resultaram na contratação de um médico-veterinário com a incumbência de apoiar tecnicamente os pecuaristas de leite. Destaque-se que esta era uma reivindicação antiga dos técnicos regionais e, até a ocasião, nunca atendida,.
            A necessidade de organização dos produtores passou a ser uma preocupação constante. Como exemplo desse fato, vale a pena destacar que, por ocasião da apresentação dos resultados finais do estudo aos conselheiros, o debate centrou-se amplamente nesse aspecto crucial. Além disso, denotou-se claramente uma vontade coletiva manifestamente dirigida para formar uma associação no município, inclusive buscando superar conflitos individuais e ideológicos locais.

Conclusões Finais

            Esta última discussão ocorreu em clima de conflito acirrado pois o prefeito anterior havia sido derrotado, nas eleições recentes, por outra facção política, que reivindicou a participação e o acesso aos resultados do trabalho realizado. Após negociação, chegou-se ao acordo no sentido de aceitar o novo grupo, que assim participou ativamente do debate ocorrido após a apresentação do estudo. Destacamos nesse processo o elevado nível de troca de idéias entre adversários políticos.
            Mudanças da administração na esfera municipal (pela alternância do poder local e de diretrizes de ação), alterações na questão dos repasses de recursos do governo estadual para o municipal, em obediência à lei de responsabilidade fiscal, e também mudanças na esfera federal, com o fim dos financiamentos do fundo Pronaf-Pesquisa, levaram à descontinuidade no processo de trabalho iniciado. Estes são exemplos de problemas que afetam constantemente os projetos de desenvolvimento rural que demandam ações de mais longo prazo para efetuar sua consolidação.
            São muitas as dificuldades para se implementar um trabalho de desenvolvimento rural. Mesmo assim, concluímos que a parceria entre o poder público municipal, os produtores agrícolas e as instituições de pesquisa e de extensão acabou por proporcionar alterações positivas em prazo bastante curto. Ou seja, como afirma o Prof. Abramovay , '... mais importante que vantagens competitivas dadas por atributos naturais, de localização ou setoriais é o fenômeno da proximidade social que permite uma forma de coordenação entre os atores capaz de valorizar o conjunto do ambiente em que atuam e, portanto, de convertê-lo em base para empreendimentos inovadores.'

Data de Publicação: 10/04/2001

Autor(es): Alceu De Arruda Veiga Filho Consulte outros textos deste autor
Malimiria Norico Otani (maliotani@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
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