A Defesa da liberalização do comércio agrícola é realmente vantajosa para o Brasil?

            O governo brasileiro está envolvido em três frentes principais de negociações externas: Rodada de Doha junto à Organização Mundial do Comércio (OMC)1 para o fechamento de um novo Acordo Multilateral, Acordo Regional para criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e Acordo Birregional Mercosul/Bloco Europeu. O ponto comum da participação brasileira nestes três fóruns tem sido a estratégia de defender a liberalização do comércio agrícola - em particular, o desmantelamento de subsídios à exportação e legislação anti-dumping.
            Contudo, o foco sobre a agenda agrícola tem sido o principal obstáculo para o avanço dessas negociações, dada a resistência dos Estados Unidos da América (EUA), da União Européia (UE) e do Japão em alterar suas políticas protecionistas. Esse comportamento, inclusive, está na origem do provável fracasso da rodada de negociações em curso na OMC e das previsões pessimistas do não-cumprimento do prazo estabelecido para a criação da ALCA.
            Ë necessário saber se a posição do governo brasileiro se justifica pela vantagem competitiva já adquirida pelas exportações agrícolas do país, ou é um escudo protecionista para setores que ainda não estão preparados para a ampliação da liberalização comercial já existente.

Desempenho recente do agronegócio brasileiro

            O desempenho da pauta agrícola brasileira, a partir da década de 1990, mostra que o país adquiriu vantagem comparativa no comércio internacional. Ganha expressão o desempenho positivo da pauta agrícola registrado a partir desse período, que resultou, principalmente, de grande esforço exportador realizado pelo setor. A despeito de preços internacionais desfavoráveis, em grande parte da década de 1990, para os principais produtos da balança agrícola e do problema sobre a taxa de câmbio valorizada, houve crescimento sustentado dos volumes exportados2.
            A competitividade do setor é reforçada pelos cálculos dos indicadores de Posição e de Vantagem Comparativa Revelada para 1986 e 1998, que mostram que cerca de 70% da pauta agrícola do país registraram situação favorável no mercado internacional, a despeito do forte protecionismo prevalecente3. Contribuíram para esse desempenho, entre outros fatores, a criação do Mercado Comum do Cone Sul (Mercosul), notadamente as trocas comerciais com a Argentina3, a isenção fiscal para pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) às exportações (Lei Kandir) e os avanços obtidos com a pesquisa tecnológica. Estes últimos resultaram em consolidação de ganhos de produtividade em áreas de exploração já existentes (como foi o caso da competitividade adquirida na produção de carnes de frango e de suínos) e nas regiões de fronteira agrícola (destaque para a performance do cultivo de soja), bem como na revitalização da produção agrícola em regiões tradicionais via substituição de culturas (por exemplo, produção irrigada de café na Bahia em substituição às antigas lavouras de cacau).
            Esse comportamento positivo continuou nos primeiros anos da década de 2000. Assim, em 2002, o balanço anual para o agronegócio brasileiro apresentou superávit de US$ 18,3 bilhões, 12,1% superior ao registrado em 2001. No primeiro trimestre de 2003, ocorreu novamente desempenho positivo, com crescimento de 45,6% no superávit em relação ao mesmo período de 2002 4.

Impactos de melhor condição de acesso ao mercado, da ALCA e do Acordo Birregional Mercosul/UE

            Nas Rodada de Doha, a melhora nas condições de acesso ao mercado pode constituir-se no principal avanço a ser obtido, tanto para o setor agrícola quanto para o industrial. Estimativas sobre o desempenho do comércio internacional para cinco mil produtos, com base em quatro cenários de redução do equivalente tarifário, mostram que o melhor resultado corresponde ao cenário que considera a eliminação da proteção através de picos tarifários (considerados protecionistas se igual ou superior a 15% para a indústria e 85% para a agricultura).
            Para os países do Grupo de Cairns, entre os quais se inclui o Brasil, o crescimento do comércio seria de 8,7%, com média de 9,5% para o mundo. Em termos de setores, os maiores aumentos resultam do desempenho dos produtos agroalimentares, com duplicação do volume comercializado para produtos lácteos, arroz transformado e açúcar. Ainda com relação a esses países, as produções de veículos a motor e de peças automotivas seriam as mais afetadas, em qualquer dos cenários considerados6.
            Nas negociações com a ALCA, as preocupações brasileiras concentram-se em três focos principais: 1) distribuição temporal das concessões recíprocas referentes ao acesso, particularmente de bens; 2) garantia de inclusão de temas de especial interesse brasileiro, notadamente legislação anti-dumping, subsídios agrícolas e ajustes às regras relativas à propriedade intelectual; e 3) garantia de que a inclusão de temas como normas trabalhistas e meio ambiente não seja utilizada como base para emprego de instrumentos adicionais de proteção, especialmente nos Estados Unidos. Além disso, a Trade Promotion Authority, aprovada em dezembro de 2001, exigiu substanciais concessões por parte do Executivo que colocam em risco o bom êxito das negociações. Assim é que, tanto do ponto de vista de acesso para a exportação de bens quanto dos temas anti-dumping e subsídios agrícolas, as perspectivas são pouco animadoras7.
            Estudo recente 8 estimou o impacto da ALCA sobre o Mercosul. Com base na premissa de que a redução tarifária seria de 10% ao ano durante dez anos, os resultados mostraram que haveria criação global de comércio de 11% para as importações e de 11,3% para as exportações do bloco. As categorias de produtos 'Outros produtos da manufatura' (máquinas e equipamentos, não especificados em outro item) e 'Lácteos e Açúcar' se beneficiariam da liberalização, com percentuais de crescimento de 1,7% e 1%, respectivamente. Para os demais países das Américas, apenas os setores têxtil e químico exibiriam crescimento significativo (3%).
            Com relação ao Acordo Birregional Mercosul/UE, de modo geral, a proposta dos europeus se restringe às tarifas consolidadas na OMC e é silenciosa quanto ao tratamento de barreiras não-tarifárias. Além disso, particularmente, para os produtos agrícolas, como cereais, azeite de oliva, lácteos, carnes, fumo, açúcar e algumas frutas e legumes processados, é bastante limitada pois o bloco estaria disposto a negociar maior liberalização na forma de quotas tarifárias preferenciais9. Este posicionamento estaria relacionado à competitividade da agricultura dos países que compõem o bloco do Cone Sul.
            Avaliou-se, também, impacto do Acordo Birregional Mercosul/UE e, nesse caso, os resultados mostraram que as importações e exportações realizadas pelo Mercosul cresceriam 12,3% e 12,7%, respectivamente. Os setores do Bloco Sul-Americano, que seriam beneficiados pela liberalização, são: cereais (2%); lácteos e açúcar (2%); arroz processado, produtos alimentares nec, bebidas e fumo (2,1%) e trigo (8%). Isto é, abrangeria uma cesta de produtos maior que o acordo com a ALCA. Entre os setores negativamente afetados, encontram-se as categorias 'Vegetais, frutas, nozes, óleo de sementes, fibras vegetais, lã, gorduras e óleos vegetais' (-1,5%) e 'Veículos' (-1%). 'Outros produtos da manufatura', ao contrário do que ocorreria com a ALCA, também sofreria retração (-1,7%)10.

O que se pode concluir

            Desde a década de 1990, a performance registrada pela balança comercial agrícola brasileira tem mostrado que o país vem adquirindo competitividade internacional na esfera produtiva, suficiente até para neutralizar os efeitos negativos gerados por problemas decorrentes da sobrevalorização cambial. Além disso, estimativas sobre a assinatura de Acordos Regionais de Comércio como a ALCA e o Acordo Birregional Mercosul/UE mostram que segmentos do setor agrícola, dentre os quais o Brasil já comprovou sua superioridade produtiva, seriam beneficiados, isto é, ampliariam sua participação no comércio.
            Nesse sentido, justifica-se a posição brasileira de defender com firmeza maior liberalização comercial para esses produtos, principalmente nas negociações em curso no cenário mundial.
            No entanto, dadas a resistência a mudanças profundas no quadro protecionista atual de interlocutores com grande peso sobre a decisão final e a fragilidade de importantes segmentos da indústria nacional, esta estratégia deve ser utilizada como moeda de troca para firmar acordos que assegurem condições para o crescimento e o ganho de competitividade dos segmentos produtivos que ainda são frágeis para enfrentar uma concorrência mais acirrada.
            Outra alternativa é a ampliação de assinatura de acordos de menor amplitude, envolvendo apenas um país, como estratégia para minimizar as perdas geradas por acordos mais amplos envolvendo blocos comerciais. Além disso, é desejável orientar ações que fortaleçam o comércio com regiões onde os resultados brasileiros hoje ainda são bastante modestos, como com a Europa Oriental e a Ásia.

1 Organização Mundial do Comércio – OMC (http://www.wto.org )
2 Para uma análise mais detalhada, ver CARVALHO, Maria A. et al. Liberalização Comercial e Competitividade da Agricultura Brasileira. Passo Fundo, Anais do IL Congresso Brasileiro de Economia e Sociologia Rural, 2002.
3 Para uma análise da evolução desses indicadores por capítulo de produto ver SILVA, Valquiria et al. Indicadores de Competitividade Internacional dos Produtos Agrícolas e Agroindustriais Brasileiros, 1986-1998. São Paulo, Agricultura em São Paulo, vol. 48 (1), 2001: 69-87.
4 Contudo, há que se destacar que os benefícios do Mercosul, como normalmente ocorre na criação de Acordos Regionais de Comércio, não foram generalizados para todas as cadeias produtivas. No caso, por exemplo, dos produtos lácteos os reflexos foram bastante negativos para a produção de leite no Brasil.
5 Resultados sobre a Balança Comercial Brasileira e o desempenho do agronegócio podem ser obtidos no site http://www.iea.sp.gov.br .
6 FONTAGNË, Lionnel et al. Accès au Marché: quel objectifs après Doha. Paris, La Lettre du CEPII, n° 211, abril de 2002.
7 ABREU, Marcelo de P. Política Comercial Brasileira: limites e oportunidades. Brasília, Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior – FUNCEX, Relatório Preliminar, fevereiro de 2002.
8 BCHIR Mohamed H. et al. Mercosur: free-trade area with the EU or with the Americas? Some lesson from the model MIRAGE. Paris: CEPII, novembro 2001. (http://www.cepii.fr).
9 ABREU (2202:10), op. cit.
10 BCHIR et al (2001), op. cit.
 

Data de Publicação: 05/06/2003

Autor(es): Valquiria da Silva Consulte outros textos deste autor