Proposta do movimento orgânico nacional para regulamentação do mercado

Entre os dias 14 e 16 de abril de 2003, o movimento orgânico brasileiro reuniu-se em Campinas para debater o Projeto de Lei 14/2002 que estava tramitando na Comissão de Assuntos Sociais do Senado e hoje já está na Câmara dos Deputados. O projeto trata da estruturação do mercado orgânico.

Atualmente, o arcabouço legal, em fase de implantação, consiste das Instruções Normativas (IN) 07, de 17/05/1999, e 06, de 08/01/2002. A primeira é fruto do consenso do movimento orgânico e, além de definir o processo de produção orgânica, determina as estruturas, pública e privada, necessárias para garantir o processo de certificação.

Prevê a criação de Colegiados Estaduais de produtos orgânicos, além do Nacional. Estão constituídos em 16 estados, dos quais três do sul, quatro do sudeste, os do centro-oeste, com exceção de Tocantins, e Bahia, Maranhão e Rio Grande do Norte, no nordeste, além de Pará e Acre no norte do país. O Colegiado Nacional vem funcionando precariamente, por conta da falta de representantes do movimento orgânico em algumas regiões.

A IN 06 define as exigências a serem cumpridas pelos Organismos Certificadores, feitas com base nos Critérios para Acreditação de Organismos Certificadores, da Federação Internacional do Movimento de Agricultura Orgânica (IFOAM)1, encaminhada pelo Colegiado de São Paulo. Não houve ampla discussão pública, particularmente dentro do movimento orgânico brasileiro, mas foi colocada para consulta pública, por trinta dias.

O movimento brasileiro, reunido no I Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado no Rio de Janeiro em julho de 2002, considerou que a IN 06 não leva em consideração as suas características heterogêneas. A partir daí, o movimento vem discutindo o arcabouço legal para a estruturação do mercado orgânico nacional, através de reunião em Curitiba (em outubro de 2002), virtualmente através de um e-group, por intermédio de oficina realizada no III Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e da reunião em Campinas em abril último. Discute-se um terceiro encontro para breve.

O ponto fundamental da discussão em Campinas passou a ser o PL14/02, em função do cronograma do Legislativo, mas também em função da maior relevância deste instrumento legal. Optou-se, entretanto, por continuar a discutir virtualmente as Instruções Normativas.

As discussões sobre o PL14/02 centraram-se no artigo 3º, que trata da exigência da certificação para comercialização dos produtos orgânicos. O ponto fundamental do debate refletia diferenças históricas da percepção da evolução do mercado orgânico.

As entidades com mais forte envolvimento com agricultores familiares encaram a expansão do mercado orgânico, impessoal e certificado, como crescentemente excludente deste público. Por isso, defendem a preservação de espaços de comercialização para este público, sem exigência da certificação. A rede Ecovida2, a AAO3, a ABIO4, a Chão Vivo5 e a ABD6, entre outras, manifestaram-se pela preservação de uma construção social importante do movimento: as feiras do produtor orgânico.

A história do movimento internacional é caracterizada pela expansão desta forma de comercialização nos anos 70. Foi através desta que a produção orgânica deixou de circular no âmbito restrito de amigos e ganhou a possibilidade de atender ao consumidor-cliente, interessado em adquirir a qualidade do produto oferecido, desenvolvendo a partir daí uma relação de confiança com quem lhe fornece o produto.

Nos anos 90, uma nova forma de comercialização direta tomou força, complexificando a relação que já existia de fornecimento de 'cestas' a domicílio: os grupos de consumidores que estabelecem alguma forma de contrato com grupo de produtores, indo desde a simples compra até o financiamento da produção e/ou o pagamento de uma renda mensal aos agricultores.

Hoje, crescem as possibilidades do comércio solidário através das redes virtuais. Todas estas formas de comercialização caracterizam-se como direta e, para grande parte do grupo reunido em Campinas, deveriam ser excluídas da exigência de certificação.

Por outro lado, as entidades comprometidas com a certificação para o mercado impessoal hegemônico preocupavam-se com qualquer possibilidade que venha a ser aberta para a venda de produto não certificado. A principal argumentação reside na dificuldade de fiscalização da exceção, o que poria em risco toda a organização estabelecida. Esta preocupação se materializa na figura de um comerciante de feiras livres, nas grandes cidades, que pode se autodenominar orgânico, quando aceita a exclusão da necessidade de certificação nas vendas diretas.

A superação deste conflito apontou para a necessidade de se considerar que o papel fiscalizador do Estado está cada vez mais comprometido por problemas orçamentários e que a organização social, um dos elementos fundamentais da ideologia do movimento orgânico, é o elemento básico à construção da regulação social. Desta forma, identificou-se que o movimento orgânico poderia ser chamado a construir internamente esta garantia, o que já faz, formal ou informalmente. Identificou-se que desta forma ficariam garantidas as condições para a preservação e continuidade do movimento, sem comprometer as exigências de estruturação do mercado impessoal.

A preservação e o fortalecimento do movimento relacionam-se com a possibilidade de dar continuidade às suas funções básicas: o fomento à produção orgânica e a organização social em torno de uma entidade formalmente constituída e reconhecida por sua idoneidade. Com isso, podem-se também garantir mecanismos simples à inclusão social dos agricultores familiares, através da comercialização diferenciada em espaços organizados por suas entidades associativas, reconhecidas pelo movimento orgânico.

Criou-se um sistema duplo. De um lado, garantiu-se a obrigatoriedade da certificação no mercado sem regulação pelo movimento orgânico e, de outro, os meios para a expansão e o fortalecimento do movimento orgânico. Além desta criatividade na regulamentação nacional, garantiu-se ainda espaço para a convivência de 'diferentes sistemas de certificação' existentes no país.

Este último aspecto também é de importância fundamental para o movimento orgânico brasileiro e para o atendimento inclusivo dos agricultores familiares. Admite-se na lei, para regulamentação posterior, a existência de vários mecanismos de certificação, que podem incluir a certificação participativa, ao lado do sistema utilizado internacionalmente, baseado no padrão ISO 65. Neste último, existe a preocupação em criar e manter procedimentos transparentes que garantam imparcialidade e neutralidade no processo. A ISO 65 torna a certificação um processo complexo que exige do interessado um sistema de registro detalhado. Este é um importante fator que dificulta o acesso dos pequenos agricultores, além do próprio custo da prestação do serviço.

Existem outros sistemas de certificação operando no país, mas há uma atenção especial para com o que se denomina de certificação participativa, que é realizada pela rede ECOVIDA. Através deste sistema, a garantia ao consumidor, dada por uma organização local, neutra e imparcial, é repassada em cadeia para instâncias estruturadoras da rede nos estados e região, chegando até onde se localiza o consumidor.

Desta forma, o movimento orgânico nacional, ao encontrar o consenso no texto do PL14/02 para que este possa seguir seu trâmite no Legislativo nacional, simplesmente inicia seu processo de negociação interna, pois remete à regulamentação da Lei aspectos fundamentais e ainda não consensuais. A contestação fundamental à IN 07 é que, por se balizar em documento da IFOAM, pressupõe um único sistema de certificação, inviabilizando a regulamentação da certificação participativa. Desta forma, o debate sobre a IN 07 e a regulamentação do projeto de lei se convergem.

Muitos são ainda os temas a serem tratados na regulamentação, mas algum deles merecem destaque:

  • exigências para credenciar organismos certificadores, estabelecendo os procedimentos admitidos de fiscalização e certificação (IN 07);

  • conceituação do que é comercialização direta ao consumidor;

  • estratégias para garantir a possibilidade de registro simplificado dos extratos vegetais usados na agricultura orgânica como insumos;

  • existência de selo orgânico único para o Brasil.

O encaminhamento de carta, com proposta para o PL 14/02, por parte do movimento orgânico brasileiro, para o relator, o senador Aelton de Freitas (PL/MG), foi um primeiro passo importante de uma longa caminhada que em julho colheu o primeiro fruto: a aprovação no Senado Federal. Trata-se de importante contribuição para demonstrar aos demais países que é possível conciliar o crescimento do mercado orgânico com o fortalecimento do movimento social. Ganham todos pois envolve a sociedade no sistema de garantia de qualidade que lhe interessa preservar!

1 IFOAM (www.ifoam.org), fundada em 1972, com sede na Alemanha

2 Associação ECOVIDA de Certificação Participativa: www.ecovida.org.br   . Opera principalmente nos estados do sul e conta com inúmeras feiras associadas aos seus núcleos de produção e nas grandes cidades.

3 Associação de Agricultura Orgânica (AAO): www.aao.org.br. Associação de Agricultura Orgânica. No final de 2002, separou suas atividades da certificação constituindo a AAOcert que já encaminhou sua documentação para credenciamento para operar no mercado interno. Atua principalmente em São Paulo, Minas Gerais e Espirito Santo. Todas as suas feiras estão em São Paulo. Além de duas no Parque da Água Branca, possui duas outras na cidade e duas em municípios próximos. Promove a criação de grupos regionais voltados ao fomento da produção e comercialização local.

4 Associação de Agricultores Biológicos do Rio de Janeiro (ABIO):  www.abio.org.br  .

5 Associação de Certificação de Produtos Orgânicos do Espírito Santo (Chão Vivo). Informações podem ser obtidas no site do planeta orgânico:  www.planetaorganico.com.br .Possui grupos de produtores que comercializam diretamente.

6 Associação Biodinâmica (ABD): www.abd.org.br. Tem ramificações em todo Brasil, com participação em feiras locais.

Data de Publicação: 06/08/2003

Autor(es): Yara Maria Chagas de Carvalho Consulte outros textos deste autor