Cancún: a Rodada do amadurecimento

            O jogo de forças no cenário internacional entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento, ou subdesenvolvidas, tem ocasionado sempre resultados favoráveis às primeiras. Especificamente, com relação às negociações comerciais, a Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), na reunião realizada em Cancún — e inclusive, após o fechamento de acordo sobre o setor agrícola entre Estados Unidos da América (EUA) e União Européia (UE), com o apoio explícito do Japão —, parecia caminhar para esse mesmo desfecho.
            No entanto, a resposta dos países em desenvolvimento em defesa de avanços concretos na liberalização do comércio agrícola 1, através da formação do G-20+ 2, sob a liderança brasileira e com forte apoio da Índia e da China, alterou completamente essa premissa e pode ser considerada um fato histórico, no âmbito das relações internacionais.
            Há que se destacar, ainda, que um grupo de 70 países em desenvolvimento também não aceitou a inclusão, no texto-base, dos 'temas de Cingapura', como investimentos, transparência nas compras governamentais e facilitação do comércio. E que a minuta propunha a prorrogação por um período indeterminado da 'Cláusula de Paz', pela qual os países em desenvolvimento prometiam não apresentar controvérsias sobre as medidas agrícolas dos países ricos, cujo prazo de vigência vence no final de 2003.
            Assim, se a reunião pode ser considerada 'fracassada', quanto aos avanços que seriam esperados para a conclusão da Rodada 3, ao mesmo tempo, esta representou uma vitória para os países com, até então, menor poder de força relativa.
            Este resultado decorreu, fundamentalmente, do processo de amadurecimento político dessas nações no tabuleiro das negociações internacionais. Contribuíram, basicamente, para esse processo:

  • A globalização em si, ao evidenciar que regular o econômico num território hoje significa entrar em competição com a regulação empreendida deste espaço em outros territórios. Assim, diante desse novo quadro, faz-se necessário o fortalecimento das nações através de alianças com parceiros que tenham objetivos comuns ou muito próximos4, realidade devidamente internalizada (tomada de consciência) pelos países em desenvolvimento;
  • A substituição do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT) pela OMC, que alterou as regras de solução de conflitos comerciais. Pelo GATT, o relatório final poderia ser recusado se a parte perdedora não o aceitasse, enquanto que, pela OMC, deve haver consenso para a recusa (consenso 'negativo')5 ;
  • Experiência adquirida pelos diplomatas desses países, ao longo das intensas negociações empreendidas nesses nove anos de vigência da OMC; e,
  • O sucesso obtido pelos países em desenvolvimento, ou subdesenvolvidos, nos painéis para solução de controvérsias, sobre os mais diferentes temas e sob essa nova regra, que conferiu confiança e firmeza aos negociadores desses países na defesa dos interesses nacionais.

            A estratégia dos países desenvolvidos frente a este novo quadro, num primeiro momento, foi a de tentar desarticular o G-20+, no que foram parcialmente bem-sucedidos se considerarmos a saída de El Salvador do grupo. E em seguida, dado o reconhecido fracasso na aprovação de um texto-base consensual, estes têm alardeado que devem partir, de modo agressivo, para a assinatura de acordos bilaterais, o que teria como principal conseqüência o enfraquecimento da OMC, que defende a multilateralidade nas negociações comerciais. No entanto, a questão agrícola é apenas um dos pontos a ser regulado no comércio internacional e, a despeito da resistência empreendida, esses países têm interesses muito mais amplos em termos de regulação do mercado internacional, cujo melhor fórum para o equacionamento das divergências ainda é a OMC.
            Com relação ao Brasil, o país teve sua imagem internacional fortalecida ao ser reconhecido como o grande articulador dos países em desenvolvimento. Seguindo nessa estratégia, há a firme posição de ser o intermediador do grupo recém criado com o de Cairns — constituído por 17 membros considerados potências no mercado agrícola internacional — o que, ao aumentar o poder de barganha, trará benefícios para todos os envolvidos. Nesse sentido, espera-se que um acordo satisfatório sobre a agricultura seja assinado ainda como parte da Rodada de Doha 6.
            Entende-se que a nova coligação de forças é benéfica, mas não suficiente ainda para a completa liberalização do comércio internacional do agronegócio. Certamente, deverá ocorrer um certo trade off entre os interesses essencialmente agrícolas e os demais temas em discussão na presente rodada de negociações, o que, no estágio atual, já representará ganho considerável para os interesses dos países em desenvolvimento. Além disso, nada impede que o governo brasileiro intensifique a assinatura de acordos bilaterais, sem perder de vista o objetivo maior da multilateralidade.

1 O Grupo reivindicava uma sinalização clara sobre a eliminação dos subsídios agrícolas, praticados por EUA e UE. Porém, o texto-base divulgado pelo presidente da Conferência de Cancún, Luis Ernesto Derbez, propunha a diminuição dos subsídios, mas apenas para uma lista de produtos. Essa lista deveria ser definida posteriormente e ser negociada por produto pelos países que se sentissem prejudicados. Ou seja, era claramente insatisfatório frente à posição do G-20+ que reivindicava um cronograma para o fim completo dos subsídios destinados ao setor.
2 Participam desse grupo, além do Brasil, África do Sul, Argentina, Bolívia, Chile, China, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Egito, Equador, Filipinas, Guatemala, Índia, Indonésia, Malásia, México, Paquistão, Paraguai, Peru, Tailândia e Venezuela, entre outros.
3 Prevista para ser encerrada em 1° de janeiro de 2005.
4 Necessidade de superar diferenças em prol de um objetivo comum. O Grupo de Cairns é um claro exemplo dessa estratégia de ação.
5 Tornou efetiva a possibilidade de aplicação de retaliação comercial como instrumento legítimo de defesa do país ameaçado e/ou afetado pelo exercício de políticas protecionistas.
6 Note-se que nova reunião foi agendada para 15 de dezembro de 2003.

Data de Publicação: 03/10/2003

Autor(es): Valquiria da Silva Consulte outros textos deste autor