Aspectos Inovadores da Legislação Brasileira de Orgânicos e os Desafios para São Paulo: Decreto 6.323, de 27/12/2008

            No final de dezembro de 2007, a legislação brasileira de orgânicos (Lei 10.831, de 23/12/20031) foi finalmente regulamentada. O Decreto 6.323, de 27/12/20072, vem por fim tornar efetiva a longa luta do movimento orgânico-agroecológico nacional pela estruturação do mercado. Em notícia publicada neste site3, já foram enfatizados alguns dos aspectos pioneiros deste documento legal e também sinalizado que contribuições da sociedade em geral são esperadas no período de audiência pública, com duração de trinta dias que acaba de ser instalado.

            As normas de 'produção animal, vegetal, extrativismo sustentável orgânico, processamento, envase, rotulagem, transporte, armazenamento e comercialização' (Decreto 6.323, Art. 9º § 1), assim como a estruturação das Comissões Estaduais e Nacional; manual de boas práticas e os sistemas de garantia estão em audiência pública e podem ser consultadas no site do Ministério de Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA). Pode-se encontrar aí os documentos e os formulários para encaminhamento das contribuições. A audiência está sendo conduzida no âmbito nacional, de forma descentralizada e com baixo custo, mas existe o risco de o segmento agricultura familiar, particularmente o do Estado de São Paulo, ficar fora desse processo. Segue uma visão geral do Decreto, enfatizando os principais pontos de interesse para a agricultura familiar, com o intuito de procurar motivar os leitores a tomarem a si a tarefa de contribuir à participação deste segmento no processo.

            Em São Paulo, o MAPA atuará através da Comissão de Produção Orgânica-SP (CPOrg-SP), criada pelo Decreto 6.323 (Art. 33), junto à Superintendência Federal de Agricultura. Com denominação diferente, esta Comissão já vem trabalhando em São Paulo, baseada na Instrução Normativa 07, de 17/05/99. Apesar de a IN 07 ter sido revogada pela IN 16, de 11/06/2004, a Comissão continuou a se reunir até os dias de hoje. Dessa forma, vem de fato conduzindo o processo da estruturação do mercado orgânico no Estado, mas terá que se ajustar a IN que está em audiência pública: 'IN das Comissões de Agricultura Orgânica'. A representação do segmento da agricultura familiar na Comissão do Estado é um imperativo!

            É importante ressaltar que o Decreto institui também o Comitê Nacional de Produção Orgânica (CNPOrg). Remete a essa estrutura (CNPOrg e CPOrg-UF) toda a regulamentação que tem 'por finalidade o aperfeiçoamento da rede de produção orgânica no âmbito nacional e internacional' (Decreto 6323, Art. 43 item II e Art. 35 item II). Isso inclui não somente a atualização das normas técnicas de produção, mas também o sistema de garantia para comercialização direta, sem certificação, pelos agricultores familiares. As propostas iniciais para essas questões estão agora em audiência pública através dos documentos: IN de Produção Animal e Produção Vegetal; IN de Processamento e IN de Extrativismo Orgânico Vegetal, que se referem à produção; e a IN dos Sistemas de garantia que estabelece as regras para a venda direta, entre outros assuntos. As Comissões são assim responsáveis pela atualização das normas técnicas e procedimentos. Dois conceitos distintos, já consolidados na literatura. Cabe a essa estrutura não só regulamentar, mas também assessorar o Sistema Brasileiro de Avaliação de Conformidade Orgânica (SISBRACO), fortalecer o caráter democrático dessa nova estrutura articulando e fomentando fóruns setoriais e territoriais que aprimorem a representação do movimento social.

            O Decreto institui o SISBRACO, integrado por órgãos e entidades da administração pública federal e pelos organismos de avaliação de conformidade credenciados junto ao MAPA, tanto os que operam com o Sistema Participativo de Garantia da Qualidade Orgânica como os que atuam com base na Certificação por Auditoria (Decreto 6323, Art. 29 e § 2). Haverá um sistema único de identificação do produto no território nacional: um selo, com a descriminação do critério de avaliação de conformidade utilizado. Os dois critérios têm a mesma credibilidade, pois são reconhecidos sob o mesmo sistema acabando com a situação que prevalecia anteriormente a esta regulamentação. Até hoje, as diversas instituições tinham a responsabilidade de manter a credibilidade do conjunto. Tarefa árdua, pois instituições de avaliação de conformidade operando sob reconhecimento de algum sistema internacional conviviam com outras que, sem este tipo de reconhecimento, pautavam-se pelos mesmos princípios (auditoria) e ainda outras (certificação participativa) que não tinham seus procedimentos claramente estruturados e comprováveis. Nessa situação, todo tipo de discriminação prevalecia. O novo arcabouço legal define as bases operacionais exigidas dos dois sistemas de avaliação de conformidade e torna-os equivalentes. Esta foi a grande vitória do movimento social brasileiro de agroecologia que criou um novo sistema de garantia da qualidade, baseada no controle social. A Seção III é um bom exemplo da igualdade na diversidade que os dois sistemas de avaliação de conformidade têm perante a Lei. Exige-se, em qualquer caso, que o organismo de Avaliação de Conformidade seja pessoa jurídica, pública ou privada, com ou sem fins lucrativos, previamente cadastrados no MAPA. Quando pública não pode também ser encarregada da fiscalização da rede de produção orgânica. Por outro lado, somente o sistema por auditoria não poderá desenvolver atividades relacionadas à assistência técnica (Decreto 6323, Art. 36 § 1 e 2). A proposta inicial do grupo proponente do Sistema Participativo de Garantia da Qualidade Orgânica criava uma base comum de operação ainda maior, mas não foi esta a versão aprovada.

            O Sistema Participativo de Garantia da Qualidade Orgânica é uma construção brasileira, surgida a partir da experiência da Rede Ecovida de Certificação Participativa. Sua estruturação ocorreu no âmbito do movimento agroecológico nacional reunido em torno das discussões do marco legal brasileiro, com apoio político e financeiro do Ministério de Desenvolvimento Agrário. Hoje, é uma proposta defendida no âmbito e nos Fóruns Internacionais. É particularmente adequado a agricultores familiares e a propriedades que preservem a diversidade de atividades agropecuárias e de processamento, por razões distintas. É uma construção que preserva os ideais e o envolvimento do movimento agroecológico e pode fazer uso das organizações e do comprometimento do movimento, não ficando exclusivamente dependente da motivação econômica, para estruturar o sistema de garantia.

            No primeiro caso, agricultores familiares, o envolvimento do agricultor como protagonista no processo de avaliação de conformidade exige adaptação da linguagem e dos procedimentos à realidade cultural e sócio-econômica do agricultor. Nesse sentido, o objetivo principal da proposta é ampliar o número de agricultores que possam vir a buscar sua inserção no mercado em que impere a necessidade de avaliação de conformidade.

            Ao permitir a inclusão de agricultores diversificados, o objetivo é ambiental e tecnológico. O custo da certificação por auditoria é por escopo e assim tende a penalizar os que desenvolvem atividades de escopo4 diferente. No Sistema Participativo, a visita é feita por técnicos com as diversas especialidades, e pode ser realizada por organizações do movimento.

            Um Sistema Participativo de Garantia da Qualidade Orgânica é composto por um organismo com personalidade jurídica e responsabilidades definidas no seu estatuto social. Precisa ter no mínimo uma comissão de avaliação e um conselho de recursos. Pode fazer parte de uma entidade maior, mas deve conter em seu estatuto a criação de um setor específico responsável por organizar o sistema de avaliação de conformidade orgânica. Manterá todos os registros do processo de forma a garantir a rastreabilidade do produto orgânico. A existência deste órgão organizador é obrigatória para poder responder legalmente pela qualidade do processo implantado. A responsabilidade pela garantia da rastreabilidade do produto é dada a este órgão, deixando em aberto a definição do procedimento para isto, o que pode aliviar o próprio agricultor (Art. 38 e 39).

            O credenciamento dos Organismos Participativos de Avaliação de Conformidade não envolve o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO)5, mas tão somente o MAPA, pois no momento só é válido para o mercado nacional. É concedido por escopo e depende de auditoria do MAPA. No âmbito do mercado interno, são sistemas alternativos de avaliação de conformidade, mas discriminação pode ocorrer, na prática, em função de um potencial atendimento ao mercado externo.

            Outro aspecto inovador desta legislação é a liberação da certificação na venda direta, realizada por agricultores familiares inseridos em processos de controle social. Existe obrigatoriedade de cadastramento junto ao órgão fiscalizador (Decreto 6323, Art. 28) que pode ser órgão do governo do Estado, desde que seja celebrado convênio (Art. 28 e 57). Comprovante deste cadastramento tem que ser exibido pelo agricultor no local de venda (Art. 17). O MAPA poderá estabelecer outras regras para identificar os agricultores familiares que poderão se beneficiar da isenção da certificação na venda direta (Art. 22 parágrafo único) e estabelecerá os procedimentos para o cadastramento (Art. 28 §3º). A certificação de grupo, o sistema participativo de avaliação de conformidade orgânica como os mecanismos para controle da venda direta estão no documento: 'IN de mecanismos de garantia e de informação da qualidade orgânica' disponível para audiência pública.

            A relação entre agricultura orgânica e desenvolvimento local, característica da ideologia do movimento, é resgatada no espírito da lei e aparece como a sua primeira diretriz: 'contribuição da rede de produção orgânica ao desenvolvimento local, social e econômico sustentável' (Art. 3º. Item I); e também em: 'desenvolvimento de sistemas agropecuários baseado em recursos naturais renováveis e organizados localmente' (Item III); e: 'incentivo à integração da rede de produção orgânica e a regionalização da produção e comércio de produtos, estimulando a relação direta entre produtor e consumidor final' (item IV). É neste contexto que a isenção de certificação na venda direta deve ser compreendida. É dado ao agricultor familiar a responsabilidade de garantir a rastreabilidade do produto e de dar livre acesso ao órgão fiscalizador e aos consumidores aos locais de produção e processamento. A Lei abre a possibilidade de inserção de todos os agricultores familiares no mercado orgânico, mas exige e estimula sua organização social. A construção de um sistema simples e eficaz é o grande desafio que ainda está por construir, particularmente no Estado de São Paulo.

            Alguns outros aspectos também merecem destaque. No que diz respeito à legislação trabalhista, é de conhecimento que muitas são as práticas realizadas que dialogam com as exigências legais, sem exatamente observá-las. A lei da produção orgânica busca dar um passo adiante quando estabelece que os organismos responsáveis pela garantia da qualidade orgânica podem exigir termo de compromisso do empregador com os trabalhadores para garantir melhoria contínua da qualidade de vida (Decreto 6323, Art. 5º§2º).

            Outro aspecto refere-se ao caráter negativo associado à agricultura orgânica devido à natureza das normas, geralmente definidas pelo proibido. O Art. 10 trata de dar um caráter propositivo ao Decreto definindo que caberá ao MAPA, isoladamente ou com outros Ministérios, elaborar um 'Manual de Boas Práticas de Produção Orgânica', com o objetivo de orientar a melhoria contínua dos sistemas orgânicos de produção. Este manual se encontra disponível no site do MAPA sob a denominação de: 'IN de Boas Práticas na Agricultura Orgânica' e traz também um maior detalhamento do marco conceitual da agricultura orgânica.

            O movimento orgânico-agroecológico brasileiro busca assim estabelecer as bases para uma forma de fazer a agricultura que não se oriente somente pelo objetivo de máximo lucro!

            Definida as bases legais para organização do mercado dos produtos orgânicos-agroecológicos as 'Instruções Normativas', agora em audiência pública, definem os procedimentos para o Sistema Participativo de Garantia da Qualidade Orgânica e para a venda direta. É fundamental garantir que o processo seja ágil e que realmente permita a inserção dos agricultores familiares. No caso de São Paulo existe, ainda, o desafio de apoiar os agricultores familiares na construção e fortalecimento de suas organizações sociais, estimular a formação de entidades de apoio e integrar os órgãos públicos de extensão atuantes no Estado. A Articulação Paulista de Agroecologia (APA) é uma entidade criada, que participa da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), frágil mas que pode ser o fio condutor para estimular os agricultores familiares tradicionais do movimento agroecológico-orgânico a iniciarem a discussão e a necessária construção social estadual. É chegada a hora de participar!
 

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1 MAPA-SISLEGIS. Disponível em: http://extranet.agricultura.gov.br/sislegis-consulta/consultarLegislacao.do?operacao =visualizar&id=5114. Acesso em 28 abr. 2008.

2MAPA-SISLEGIS. Disponível em: http://extranet.agricultura.gov.br/sislegis-consulta/consultarLegislacao.do?operacao=visualizar&id=18357. Acesso em 28 abr. 2008.

3REZENDE, J. V. de. Regulamentação do mercado orgânico traz avanços. São Paulo: IEA, 17 jan. 2008. Disponível em: <http://www.iea.sp.gov.br>. Acesso em: 28 abr. 2008.

4Escopo: segmento produtivo objeto da avaliação de conformidade orgânica, tais como produção primária animal; produção primária vegetal; extrativismo; processamento de produtos de origem animal; processamento de produtos de origem vegetal, entre outros. (Art. 2, item V)

5No caso das Certificadoras por auditoria precisam buscar acreditação no INMETRO e creditação no MAPA. O Decreto define acreditação como: procedimento realizado pelo INMETRO como parte inicial do processo de credenciamento. Credenciamento é definido como o procedimento pelo qual o MAPA reconhece formalmente que um organismo de avaliação de conformidade está habilitado para realizar avaliação de conformidade de produtos orgânicos, de acordo com a regulamentação oficial de produção orgânica e com os critérios em vigor.

Palavras-chave: regulamentação da agricultura orgânica, agroecologia, certificação, venda direta.

Data de Publicação: 26/05/2008

Autor(es): Yara Maria Chagas de Carvalho Consulte outros textos deste autor