Instrução Normativa 51: breve reflexão sobre as consequências da implantação de uma boa ideia para o setor lácteo

 


 

            Desde o início, a ideia da implementação da Instrução Normativa 51 (IN 51), publicada pelo Ministério Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) em 28 de setembro de 2002, com vistas a mudanças na produção de leite, visando a melhoria qualidade do produto no Brasil, aconteceu sem uma prévia e profunda avaliação da situação da produção do país1. Mesmo considerando que a IN 51 não é uma lei, o objetivo é que tivesse força de lei e possibilitasse uma mudança na qualidade do leite produzido no país.
 

            O que se impunha, no momento, era a necessidade de atingir um mercado novo, com padrão de qualidade internacional e a perspectiva de implantação de um pagamento por qualidade beneficiando o produtor com melhores preços pelo produto.
 

            O objetivo principal da IN 51 é garantir a melhora da qualidade do leite. No entanto, passados seis anos desde o início da implantação, inicialmente nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, ele não foi alcançado, havendo estimativas de que 70% dos produtores de leite estejam em desacordo com as regras2.
 

            A preocupação com esse fato levou o setor a propor a prorrogação do prazo de 1º de julho de 2011 para sua implantação integral. A Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Leite e Derivados do MAPA sugeriu, como alternativa, a inclusão de mais uma etapa com redução dos parâmetros mínimos de qualidade (redução do nível aceitável de contagem bacteriana total (CBT) de 750 mil UFC/ml para 600 mil UFC/ml, e da contagem de células somáticas (CCS) de 750 mil CS/ml para 600 mil CS/ml3, os quais devem ser ampliados gradualmente3.
 

            Propôs ainda o estímulo para o pagamento por qualidade pelos laticínios, vinculado à possibilidade de acesso das empresas e cooperativas aos instrumentos de política pública, ou seja, essas só teriam acesso a esses instrumentos se tivessem um programa de pagamento por qualidade, o qual contemplaria os quesitos: matéria gorda, proteína, células somáticas e contagem bacteriana.
 

            Considerando que a produção de leite brasileira se dá em um país que conta com realidades produtivas completamente diferentes, a implantação de mudanças visando a melhora da qualidade do produto devia ter sido antecipada por uma forte ação da assistência técnica, um item fundamental neste caso. No entanto, isso não ocorreu.
 

            O papel da assistência técnica, como difusor de conhecimento aplicável, é um item essencial na mudança de comportamento e visão do homem do campo em relação à sua produção.
 

            A constatação das diferentes realidades dos produtores em todo país é o primeiro ponto a ser considerado. Essas são diferenças que vão desde o sistema de produção até as condições sanitárias do rebanho, passando pelo tipo do produtor rural.
 

            Na verdade, os diferentes prazos para implementar as medidas nas regiões do país já mostravam uma consciência em relação a esse fato. No entanto, mesmo nos Estados com mais condições de implantar as novas mudanças, as realidades também não eram e não são uniformes.
 

            É certo que a melhoria da qualidade do leite deve ser um pressuposto básico na produção não apenas pela necessidade de trazer maior competitividade ao país e atender o crescimento do mercado externo, nem mesmo pelo apelo do consumidor interno mais consciente e exigente em relação à saúde, ao respeito ao meio ambiente e ao bem-
-estar animal4, fatores estes que podem agregar valor ao produto, mas antes pela necessidade de garantir um alimento seguro ao consumidor.
 

            A questão é mais profunda. A ideia de se publicar a IN 51 não pode deixar de ser considerada louvável, mas as condições do produtor de leite no país, mal informado e sem uma assistência técnica eficiente, não viabilizaram um bom andamento no seu processo de implantação. Isso é comprovado pelo acompanhamento das análises da amostras de leite nos laboratórios de referências cadastrados pelo MAPA.
 

            Já no início, o MAPA assumia não ter um plano de ação para informar aos produtores sobre as novas normas. Os Estados também não conseguiram atuar na educação de seus produtores e a maioria das empresas e cooperativas não atuaram nesse sentido, dando apoio técnico aos seus produtores.
 

            Anos depois, muitos produtores dos Estados das regiões Sul, Sudeste e Centro-
-Oeste, primeiros Estados onde foi exigida primeiramente a observação das novas normas, não tinham conhecimento da sua existência. Antes mesmo, o MAPA, prevendo dificuldades nessas regiões nos primeiros seis meses de implantação, preferiu não punir, informando que usaria esse período para fazer ajustes na cadeia láctea, orientando e monitorando produtores e indústrias, se limitando a dar advertências.
 

            A ideia era punir a partir de 2006, mas segundo técnicos do próprio ministério, não havia, na época, nenhum plano de atuação para ser implementado para os pequenos produtores, os mais carentes de informações5.
 

            Como a produção de leite se dá principalmente por meio da agricultura familiar, na qual a pequena produção é a realidade, não se pode esperar outro resultado. A consequência prevista era a expulsão desse produtor da atividade leiteira ou sua entrada na informalidade.
 

            Na época de sua implantação, o setor produtivo do Rio Grande do Sul, atento a essas questões e preocupado com o perfil de seus produtores, foi contra a implantação da IN 51, da forma como foi concebida.
 

            Tinha razão em se preocupar com a realidade de seus produtores. O resultado foi um número abaixo do desejado de produtores produzindo um leite de ótima qualidade, dentro dos padrões estabelecidos pela norma do MAPA, e a discussão da necessidade de adiar os prazos e/ou reduzir os limites de CCS e CBT, frente à realidade6.
 

            Apesar das ressalvas, agora, o discurso das lideranças é que as exigências da IN 51 são muito fortes comparáveis com as regras internacionais vigentes nos principais países produtores de leite, que começaram a implantar suas regras há mais de 30 anos.
 

            A não adesão da maioria das indústrias ao pagamento pela qualidade mostra que a efetivação da IN 51 foi ineficaz pelo fato de que grande número de produtores, ao verem que aqueles que investiram em tecnologia na produção, para garantir a melhora da de seu produto, não tiveram retorno. A consequência foi o desestímulo.
 

            Há condições para produzir leite de qualidade superior com tecnologias simples, que estão disponíveis a um baixo custo, com ordenha manual. Como exemplo, citam-se os estudos da USP-Pirassununga, que tiveram como eixo fundamental a sustentabilidade da produção com o objetivo de 'implementar um programa educativo voltado à qualidade do leite em que, por meio das atividades propostas, fossem avaliadas as mudanças culturais, sociais e tecnológicas'7, ou o trabalho do Instituto de Economia Agrícola em parceria com o SEBRAE, que teve como objetivo 'promover a permanência sustentável da pequena produção de leite no Estado de São Paulo'8.
 

            Conforme Silva9, ambos tiveram sucesso na sua aplicação e são modelos importantes que podem ser levados ao produtor rural, mostrando que 'uma interferência educacional pode dar uma nova dimensão à produção de leite para pequenos criadores'.
 

            Essas são pesquisas que não chegam ao campo muitas vezes pela falta de diálogo entre a área de pesquisa e a assistência técnica, e também pela estrutura deficiente da assistência técnica brasileira. Ou seja, se houvesse uma difusão eficiente das tecnologias pela assistência técnica, com certeza a realidade poderia ser mais positiva, mesmo considerando as dificuldades do pequeno produtor em investir.
 

            Se aliado a esse fator, as indústrias tivessem feito programas de bonificação financeira com base na qualidade do leite, com certeza o resultado seria a produção de um leite com uma qualidade superior. No entanto, ainda são poucas as usinas que implantaram o sistema.
 

            Isso significa que a incapacidade do produtor de leite de produzir um leite de melhor qualidade está diretamente vinculada à falta de uma assistência técnica eficiente e a ausência de pagamento por qualidade por parte das indústrias. Outros fatores, como estradas em más condições, falta de recursos financeiros para investir, acesso à energia elétrica para resfriamento do leite, são questões estruturais importantes que não têm sido normalmente consideradas.
 

            Um debate sério deve incluir essas questões na pauta para que se possa dar continuidade a todo o processo, envolvendo toda a cadeia produtiva. Enquanto isso não ocorrer, de nada vai adiantar adiar prazos, reduzir limites da CCS e CBT, pois a realidade do produtor destoa do que pede o mercado.
 

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1Instrução Normativa n. 51, de 18 de setembro de 2002. Aprova os Regulamentos Técnicos de Produção, Identidade e Qualidade do Leite tipo A, do Leite tipo B, do Leite tipo C, do Leite Pasteurizado e do Leite Cru Refrigerado e o Regulamento Técnico da Coleta de Leite Cru Refrigerado e seu Transporte a Granel. Diário Oficial da União, 20 set. 2002.

2ENTRADA em vigor da IN-51 gera preocupação. MilkPoint. Piracicaba, 27 maio 2011. Disponível em: http://www.milkpoint.com.br/mercado/giro-lacteo/entrada-em-vigor-da-in51-gera-preocupacao-72067n.aspx. Mercado. Giro Lácteo. 27 mai. 2011. Acesso em: 30 maio 2011

3CÂMARA Setorial propõe alteração dos valores da IN 51. MilkPoint. Piracicaba, 16 maio 2011. Disponível em: <http://www.milkpoint.com.br/mercado/giro-lacteo/camara-setorial-propoe-alteracao-dos-valores-da-in-51-71751n.aspx>. Acesso em: 30 maio 2011.

4SANTOS, M. V. A melhoria da qualidade do leite e a IN 51. Piracicaba: MilkPoint, 2011. Disponível em: <http://www.milkpoint.com.br/artigos-tecnicos/qualidade-do-leite/a-melhoria-da-qualidade-do-leite-e-a-in-51-71764n.aspx>. Acesso em: 22 maio 2011.

5SILVA, R. O. P. Educação: o melhor caminho para o pequeno produtor de leite. São Paulo: IEA, 2005. Disponível em: http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto.php?codTexto=3823, 2005. Acesso em: 27 maio 2011.

6Op. cit. nota 5.

7OLIVAL, A. A. et al. Programa educativo sobre a qualidade do leite: aspectos culturais, sociais e tecnológicos. Revista Ciência em Extensão, v. 1, n. 1, p.17-30, 2004.

8REIS, J. C. G. et al.Evaluation of the efficiency of the small production of milk, State of Sao Paulo: productivity indicators and technical indexes. São Paulo: IEA, 2005. Disponível em: <http://www.iea.sp.gov.br/out/arquivoAN.php?codTipo=4>. Acesso em 20 set. 2005.

9Op. cit. nota 5. 
  
  
  
Palavras-chave: Instrução Normativa 51, qualidade, leite, assistência técnica, pagamento por qualidade.

 

 

Data de Publicação: 16/06/2011

Autor(es): Rosana de Oliveira Pithan e Silva (rosana.pithan@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor