Resiliência da Agropecuária aos Choques da Covid-19

 

A causa da pandemia da covid-19 é basicamente unidimensional: uma mutação natural no vírus denominada SARS-Cov-2, com grande capacidade de infecção que provoca graves consequências em pessoas idosas e com comorbidades, causando a síndrome respiratória aguda grave (SARS)1. Os efeitos da pandemia da covid-19 são multidimensionais2, 3 que se alastram em ondas de choques4 com efeito dominó envolvendo os setores de saúde, ambiental, economia, sociais e educacionais.

O grande choque da covid-19 abate o bem-estar e a vida humana. A rapidez da dispersão global do vírus que cruza fronteiras, carregado por infectados assintomáticos, associada às características desconhecidas pela ciência, sem vacina e sem tratamentos clínicos, vem causando milhares de mortes, com crescimento em escala exponencial, mostrada em gráficos atualizados diariamente pela mídia internacional e pela Organização Mundial da Saúde, e consolidados em artigos científicos5.

O choque da covid-19 na saúde foi respondido com medidas profiláticas de contaminação, acolhimento dos infectados, tratamentos clínicos em UTIs, construção de hospitais de campanha e, sobretudo, vem sendo respondido com o trabalho de valor inestimável dos profissionais da saúde. Avançou-se com rapidez em ações para identificar o vírus, para o desenvolvimento de testes sintomáticos e pesquisas de equipamentos hospitalares, medicamentos e vacinas em todo mundo, conforme recomendações da Organização Mundial da Saúde6.

No meio ambiente, o choque da pandemia da covid-19 vem em onda de resplendor com menores emissões de gases e poluentes, água mais limpa, animais ressurgindo na paisagem e o planeta pulsando menos. Ainda não é o Planeta Verde, isto durará enquanto as atividades antrópicas continuarem congeladas. As mudanças climáticas continuarão no curso das atividades antrópicas7, 8.

O choque econômico da pandemia da covid-19 se propaga em ondas globalizadas que abalam os principais centros financeiros, industriais e mercados consumidores mundiais. As projeções são de diminuição do crescimento econômico e de recessão, ao menos durante alguns meses. Os indicadores econômicos estão no vermelho: quebra em bolsas de valores, desvalorização de moedas, valorização do ouro, acentuação da queda do preço do petróleo, desempregos e gastos de trilhões de dólares no combate a pandemia. Problemas de coordenação nacional no Brasil atrasaram as respostas da área econômica governamental, as quais poderão ser insuficientes para as empresas e população enfrentarem as dificuldades financeiras9.

As questões são:

a)  quando a economia mundial se recuperará ao padrão de fins de 2019?

b)  quando serão recuperados os trilhões de reservas monetárias gastas com a mitigação da pandemia da covid-19?

c)  quando os empregos voltarão a crescer?

As incertezas tornam difícil responder estas e outras questões. Mas há uma certeza: para esta recuperação, muitos outros trilhões de dólares serão necessários, mobilizando os estoques de capitais financeiros, humanos, físicos, sociais e naturais de todas as nações. O que caracteriza o potencial de recuperação tem um nome: resiliência.

Assim, o desafio para a agropecuária enfrentar o choque da covid-19 é de estabelecer ações estratégicas resilientes com cobenefícios, mantendo as estruturas que suportam a vida, a economia, o desenvolvimento sustentável e, ao mesmo tempo, mantendo as funções de saúde humana, sanidade animal e vegetal e segurança alimentar.

A resiliência da agropecuária aos choques da covid-19 depende de manter em níveis operacionais os estoques dos cinco capitais nas cadeias agroindustriais.

A vida nas comunidades rurais foi preservada na primeira onda da pandemia da covid-19. Isoladas e distantes das luzes das capitais que atraem multidões, as comunidades rurais ficaram inacessíveis aos primeiros espirros dos grandes centros urbanos. Esse
isolamento está de acordo com a propriedade fundamental da resiliência agropecuária
à covid-19, a dureza, que promove o efeito tampão que atua dificultando a contami-
nação. Projeções da dispersão da covid-19 no interior do Estado de São Paulo, feitas pela UNESP-Botucatu, indicam dependência do controle da pandemia realizado na capital e
regiões metropolitanas, e uma defasagem de três semanas para atingir as principais cidades do interior.

No final do outono paulista, as colheitas de inverno estão a caminho, conduzidas pelas condições climáticas que antecederam a pandemia, as quais possibilitarão as boas safras. O que não for colhido estará amadurecendo. Em condições normais, ocorreria um período de crescimento do PIB agropecuário e de formação dos capitais. Efeitos graves de mercado estão sendo sentidos nos produtos perecíveis como leite, pescado e hortifrutigranjeiros por retração do consumo baseado nos serviços de alimentação fora de casa ou venda direta ao consumidor, e por estocagem caseira de alguns alimentos. Nos primeiros meses se caracterizou mais como um choque sobre o ambiente alimentar urbano do que de produção, abastecimento e segurança alimentar. A resiliência do capital financeiro da agropecuária ao choque da covid-19 depende de vender a safra atual, obtendo receita, para pagar as dívidas e custear a próxima safra.

Os reflexos da pandemia na oferta de bens e serviços agropecuários estão projetados para o médio prazo, no segundo semestre de 2020 e início da próxima safra, quando o contágio dos sistemas produtivos agropecuários é mais lento. A pandemia da covid-19 contamina e apavora as pessoas provocando mudanças de hábitos. Novos hábitos urbanos influenciam o ambiente alimentar que sinaliza o caminho para o crescimento das cadeias produtivas agropecuárias.

Restrições de aglomerações de pessoas em lugares públicos e privados modificaram de imediato os hábitos do maior centro gastronômico do país, São Paulo. A estocagem doméstica de alimentos, no início da pandemia, drenou parte dos produtos das prateleiras dos supermercados, apenas antecipando a compra, e não aumentou fisicamente o consumo. Agora os estudos de cadeias agroindustriais terão de contabilizar os inventários de produtos armazenados nas dispensas domésticas acima das necessidades com risco de serem perdidos. Este processo se retroalimenta em ciclo de balanço do mercado. Pelo lado da dinâmica dos preços, a pressão de demanda aumenta os preços, e os preços altos diminuem a demanda. No curto prazo, a oferta de alimentos não responde às variações nos preços, e há uma demora na percepção de informações e nas alterações dos processos de produção agropecuários.

Durante o isolamento social, menos consumidores frequentam as bancas das feiras livres, frustrando o escoamento de produtos hortifrutigranjeiros perecíveis, inclusive de pescados em plena quaresma, e aqui a resiliência é construída com ações de adaptação ampliando a diversidade dos canais de comercialização, tais como delivery e e-commerce. Há diferenças de robustez entre os elos da cadeia agroindustrial aos impactos da pandemia. Por exemplo, a robustez do capital humano na pecuária de corte, devido à baixa densidade de trabalhadores, dificulta a contaminação, possibilitando a manutenção das funções do manejo dos animais nas fazendas, ao contrário dos frigoríficos com alta densidade de trabalhadores que tiveram que interromper o abate e o processamento da carne. A interligação entre os elos da cadeia provoca um efeito cascata que altera os fluxos de bens e serviços. Esta interligação pode gerar ciclo virtuoso com a retroalimentação positiva do fluxo de informações e da coordenação da cadeia. Para tanto, é necessária uma visão sistêmica na abordagem científica dos problemas, e que os tomadores de decisão abandonem a visão linear que leva a crer que o acionamento de uma única alavanca soluciona os problemas de sistemas complexos.

O uso do estoque de capital social, construído com as relações entre os agentes, é a base para a coordenação que ampliará a resiliência da cadeia agroindustrial em momentos de crise. Os CONSELEITES estaduais são exemplos de formação de capital social que podem promover a resiliência da cadeia de laticínios aos choques da pandemia. No entanto, na crista da onda dos choques da covid-19, as divergências nos valores de referência para o preço do leite fixados pelos laticínios e pelos conselhos podem levar à perda de confiança que formam o capital social e a consequente perda de resiliência.

O período de crises provocadas pela covid-19 será propício para a formação de capital social na agropecuária, o qual aumenta com o uso positivo e não se desgasta. Aprender com os efeitos das iniciativas e ações públicas e privadas para enfrentamento dos choques da covid-19 promoverá a resiliência das comunidades rurais e das cadeias agroindustriais, gerando cobenefícios com a formação de capitais.

 

 

 

 

 

1LIMA, C. M. A. O. Informações sobre a nova doença de coronavírus (COVID-19). Radiologia Brasileira, São Paulo, v. 53, n. 2, p. V-VI, abr. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/0100-3984.2020.53.2e1. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-39842020000200001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 29 maio 2020. Epub 17 de abril de 2020.

 

2SCOTT, J. The economic, geopolitical and health consequences of COVID-19. World Economic Forum, 06 Mar 2020. Disponível em: https://www.weforum.org/agenda/2020/03/the-economic-geopolitical-and-health-consequences-of-covid-19/. Acesso em: maio 2020.

 

3ALKIRE, S.; et al. Multidimensional poverty and COVID-19 risk factors: A rapid overview of interlinked deprivation sacross 5.7 billion people. Oxford Poverty & Human Development Initiative, Oxford, 2020. Disponível em: https://ophi.org.uk/b53/. Acesso em: maio 2020.

 

4KLARE, M. T. Covid-19’s third shock wave: the global food crisis. The Nation. may  2020. Disponível em: https://www.thenation.com/issue/may-18-25-2020-issue/. Acesso em: maio 2020.

 

5LI, R. et al. Substantial undocumented infection facilitates the dissemination of new coronavirus (SARS-CoV2). Science, Vol. 368, Issue 6490, pp. 489-493, 01 May 2020. DOI: 10.1126/science.abb3221.

 

6WORLD HEALTH ORGANIZATION – WHO. Strengthening preparedness for COVID-19 in Citiesand Urban Settings. Geneva: WHO, 28 Apr. 2020. Disponível em: https://www.who.int/publications-detail/strengthening-preparedness-for-covid-19-in-cities-and-urban-settings. Acesso em: maio 2020.

 

7BASHIR, M. F. et al. Correlation between climate indicators and COVID-19 pandemic in New York, USA. Science of The Total Environment, Vol. 728, Aug. 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.scitotenv.2020.138835.

 

8CHAKRABORTY, I.; MAITY, P. COVID-19 outbreak: migration, effects no society, global environment and prevention. Science of The Total Environment, Vol. 728, 1 Aug. 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.scitotenv.2020.138882.

 

9MARANHÃO, R. A.; SENHORAS, E. M. Pacote econômico governamental e o papel do BNDES na guerra contra o novo coronavírus. Boletim de Conjuntura, Boa Vista, ano II, v. 2, n. 4, 2020. DOI: DOI: http://dx.doi.org/10.5281/zenodo.3748888. 

 

Palavras-chave: cinco capitais, pandemia, resiliência.

Data de Publicação: 22/06/2020

Autor(es): Luís Alberto Ambrósio Consulte outros textos deste autor