Organizações como seres vivos e as instituições de pesquisa

            Nesses tempos de grandes e freqüentes transformações, está se discutindo, constantemente, sobre qual a melhor organização para as instituições que produzem ciência e tecnologia. Agora, mais uma vez, está se debatendo a conveniência do modelo de Organizações Sociais (OS) para as instituições de pesquisa do Estado de São Paulo.
            A grande maioria dos argumentos é baseada em aspectos práticos da gestão do dia-a-dia dessas organizações ou em posturas baseadas em um passado que não mais se repetirá. Entre o pragmatismo e o saudosismo sobra espaço para a reflexão.
            As principais teorias sobre gestão de organizações são baseadas em metáforas. Em modelos de funcionamento de máquinas, organismos e sistemas de governo1 . Recentemente, têm ganho adeptos as teorias de gestão que procuram emular organismos vivos.
            Nesse sentido, é oportuno introduzir as idéias de Humberto Maturana e Francisco Varela2 sobre as bases biológicas da compreensão humana. Muitas teorias de administração têm se inspirado nesse modelo de explicação do surgimento e desenvolvimento da vida no nosso planeta.
            O livro A Arvore do Conhecimento3 é considerado uma síntese do pensamento desses dois biólogos chilenos. A seguir, uma breve introdução ao referido livro que pode servir para ocupar o espaço de reflexão entre aquelas duas posturas cristalizadas.
            Os autores partem da qualidade de nossas experiências, comuns à nossa vida social conjunta. A partir daí, fazem um longo percurso pela autopoiese celular, a organização dos metacelulares e seus domínios comportamentais, a clausura operacional do sistema nervoso, os domínios lingüísticos e a linguagem. Armam, gradualmente e com peças simples, um sistema explicativo capaz de mostrar como surgem os fenômenos próprios dos seres vivos.
            A primeira grande questão colocada pelos autores é como saber quando um ser é vivo. Propõem que os seres vivos se caracterizam por produzir de modo contínuo a si próprios, o que indicam quando chamam a organização que os define de organização autopoiética.
            A organização autopoiética seria proporcionada por certas relações como as que seguem.

1. Os componentes moleculares de uma unidade autopoiética celular deverão estar dinamicamente relacionados numa rede contínua de interações. (No caso dos seres vivos), o bioquímico as chama (as transformações químicas concretas dessa rede) de metabolismo celular.
2. Esse metabolismo celular produz componentes e todos eles integram a rede de transformações que os produzem. Alguns formam uma fronteira, um limite (membrana) para essas redes de transformação. Ela não só limita a extensão da rede de transformações que produz seus componentes como também participa dela. Se não houvesse essa arquitetura espacial, não constituiria uma unidade separada como célula.

            Não se trata de processos seqüenciais, mas sim de dois aspectos de um fenômeno unitário. Estão falando de um tipo de fenômeno no qual a possibilidade de distinguir algo do todo depende da integridade dos processos que o tornam possível. A característica mais peculiar de um sistema autopoiético é que ele se levanta por seus próprios cordões, e se constitui como diferente do meio por sua própria dinâmica, de tal maneira que ambas as coisas são inseparáveis.
            A noção de autopoiese destaca o fato de que os seres vivos são unidades autônomas. Um sistema é autônomo se é capaz de especificar sua própria legalidade, aquilo que lhe é próprio.
            Para compreender a autonomia dos seres vivos, deve se entender a organização que o define como unidade. Aquilo que os define como unidades é a sua organização autopoiética, e que é nela que eles, ao mesmo tempo, realizam e especificam a si próprios.
            O ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, e isso constitui seu modo específico de organização. Foi necessário contar com moléculas capazes de formar membranas suficientemente estáveis e plásticas para serem barreiras eficazes e de propriedades mutantes que permitissem a difusão de moléculas e íons por longos períodos, em relação às velocidades moleculares.
            Na medida em que a organização autopoiética determina a fenomenologia biológica – ao configurar os seres vivos como unidades autônomas -, será chamado de biológico todo fenômeno que implique a autopoiese de pelo menos um ser vivo.
            Os autores destacam que nós, como seres vivos e como seres sociais, temos uma história: somos descendentes, por reprodução não apenas de nossos antepassados humanos, mas também de ancestrais muito diferentes, que retrocedem no tempo mais de três bilhões de anos. Para compreender os seres vivos em todas as suas dimensões – e com isso entender a nós mesmos -, torna-se necessário entender os mecanismos que fazem do ser vivo um ser histórico.
            O fenômeno da reprodução4 consiste em que, a partir de uma unidade – e por meio de um determinado processo –, se origina outra da mesma classe. Para que haja reprodução, têm de ocorrer duas condições básicas: a unidade original e o processo que a reproduz.
            Fala-se de reprodução quando uma unidade sofre fratura que resulta em duas unidades da mesma classe. O fundamental é que tudo ocorre na unidade como parte dela, e não há separação entre sistema reprodutor e reproduzido. O fenômeno da reprodução gera necessariamente unidades historicamente conectadas. Formam um sistema histórico.
            Não é necessário nenhum agente ou força externa. O fenômeno da reprodução implica, necessariamente, a geração tanto de semelhanças quanto de diferenças estruturais. Semelhanças são chamadas de hereditárias e diferenças são chamadas de variação reprodutiva. O fenômeno da hereditariedade – e a produção de diferenças estruturais nos descendentes – é próprio do fenômeno da reprodução
            Outra questão fundamental levantada por Maturana e Varela é que deve haver uma congruência estrutural entre meio e ser vivo. Nessa congruência estrutural, uma perturbação no meio não contém em si uma especificação de seus efeitos sobre o ser vivo. Este, por meio de sua estrutura, é que determina quais as mudanças que ocorrerão em resposta. As mudanças são desencadeadas pelo efeito perturbador e determinadas pela estrutura do sistema perturbado. O mesmo vale para o meio ambiente: o ser vivo é uma fonte de perturbação e não de instruções.
            A esse processo continuado (alterações mútuas) deram o nome de acoplamento estrutural. Ele é sempre mútuo: organismo e meio se transformam.
            Chamam de adaptação a compatibilidade organismo/meio; ou seja, a manutenção dos organismos como sistemas dinâmicos em seu meio. A adaptação de uma unidade a um meio é uma conseqüência necessária do acoplamento estrutural dessa unidade nesse meio. Assim, a ontogenia de um indivíduo é uma deriva de modificações estruturais com invariância da organização e com conservação da adaptação.
            A conservação da autopoiese e a manutenção da adaptação são condições necessárias para a existência dos seres vivos.
            A deriva natural dos seres vivos resulta que há ontogenia5 de seres vivos que são capazes de se reproduzir e filogenias6 de diferentes linhagens que se entretecem em uma gigantesca rede histórica com assombrosa variação. A chave da compreensão da origem da evolução está na associação inerente entre diferenças e semelhanças em cada etapa reprodutiva.Porque há semelhanças, existe a possibilidade de uma série histórica ou linhagem ininterrupta. Porque há diferenças estruturais, existe a possibilidade de variações históricas nessas linhagens.
            No processo de evolução orgânica, uma vez cumprido o mecanismo ontogênico essencial da reprodução, tudo é permitido. A deriva natural ocorrerá seguindo os cursos possíveis a cada instante, muitas vezes sem grandes variações na aparência dos organismos (fenótipo) e freqüentemente com múltiplas ramificações, a depender das relações organismo/meio que sejam mantidas.
            Os organismos variam a cada etapa reprodutiva e o meio segundo uma dinâmica diferente. A constância e a variação das linhagens dependerão do jogo entre as condições históricas em que elas ocorrem e as propriedades intrínsecas dos indivíduos que as constituem. Por isso, na deriva natural dos seres vivos haverá muitas extinções, muitas formas surpreendentes e muitas formas imagináveis como possíveis, mas que nunca veremos aparecer.
            Em resumo, a evolução é uma deriva natural, produto da invariância da autopoiese e da adaptação. Sem obedecer a outra lei que não a da conservação da identidade e da capacidade de reprodução, surgimos todos nós.
            Ao final, destacam que a bagagem de regularidades próprias do acoplamento de um grupo social é sua tradição biológica e sua cultura. A tradição é ao mesmo tempo uma maneira de agir e também uma forma de ocultar. Toda tradição se baseia naquilo que uma história estrutural acumulou como óbvio, como regular, como estável e a reflexão que permite ver o óbvio só funciona com aquilo que perturba a regularidade.
            Os seres humanos têm em comum uma tradição biológica que começou com a origem e a vida se prolonga até hoje, nas variadas histórias dos seres humanos deste planeta. De suas heranças lingüísticas diferentes, surgem todas as diferenças de mundos culturais, que como homens podem viver e que, dentro dos limites biológicos, podem ser tão diversas quanto queira.
            O conhecimento do conhecimento obriga-nos a assumir uma atitude de permanente vigília contra a tentação da certeza, a reconhecer que nossas certezas não são provas da verdade, como se o mundo que cada um vê fosse o mundo e não um mundo que construímos juntamente com os outros. O ponto central é que assumir a estrutura biológica e social do ser humano equivale a colocar no centro a reflexão sobre aquilo do que ele é capaz e que o distingue. Equivale a buscar as circunstâncias que permitem tomar consciência da situação em que se está e olhá-la a partir de uma perspectiva mais abrangente, a partir de uma certa distância.
            Se soubermos que nosso mundo é sempre o que construímos com os outros, cada vez que nos encontramos em contradição ou oposição com outro ser humano com o qual desejamos conviver, nossa atitude não poderá ser reafirmar o que vemos do nosso próprio ponto de vista. Ela consistirá em apreciar que nosso ponto de vista é o resultado de um acoplamento estrutural no domínio experimental, tão válido quanto o do nosso oponente, mesmo que o dele nos pareça menos desejável. Caberá, pois, a busca de uma perspectiva mais abrangente, de um domínio experimental em que o outro também tenha lugar e no qual possamos construir um mundo juntamente com ele.
            O que a biologia nos mostra é que a unicidade do ser humano, seu patrimônio exclusivo, está num acoplamento estrutural social em que a linguagem tem um duplo papel.

1. Gerar as regularidades próprias do acoplamento estrutural social humano, que inclui, entre outros, o fenômeno das identidades individuais.
2. Constituir a dinâmica recursiva do acoplamento estrutural social, que produz a reflexividade que conduz ao ato de ver sob uma perspectiva mais ampla. Como seres humanos, só temos o mundo que construímos com os outros.

            Ampliar o ato cognitivo reflexivo nos leva a ver o outro como um igual, um ato que habitualmente chamamos de amor. A aceitação do outro junto a nós na convivência é o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade.
            Qualquer coisa que destrua ou limite a aceitação do outro, desde a competição até a posse da verdade, passando pela certeza ideológica, destrói ou limita o acontecimento do fenômeno social. Portanto, destrói o ser humano, porque elimina o processo biológico que o gera. Só estamos destacando o fato de que biologicamente, sem amor, sem aceitação do outro, não há fenômeno social.
            A intenção ao apresentar as idéias de Maturana e Varela não era apresentar soluções prontas ou modelos acabados, mas chamar a reflexão sobre a condição atual e as perspectivas das instituições de pesquisa. Principalmente evidenciar que é necessário estar aberto para o diálogo, evitando posturas cristalizadas.
            O momento é adequado tendo em vista que se está entrando em um ano eleitoral, quando os candidatos estarão formulando seus programas de governo para o próximo período e o governo atual deve se limitar a consolidar o que foi proposto em seu Plano Plurianual.7

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1 Morgan, Gareth, Images of Organizations, Berret-Koeler, San Francisco, 1988. Citado por Capra, Fritjof em As Conexões Ocultas – Ciência para uma vida sustentável, Cultrix, 2002.
2 Maturana é Ph.D. em Biologia (Harvard, 1958). Nasceu no Chile. Estudou Medicina na Universidade do Chile e depois Biologia na Inglaterra e EUA. Como biólogo, seu interesse se orienta para a compreensão do ser vivo e do funcionamento do Sistema Nervoso, e também para a extensão dessa compreensão ao âmbito social humano. É professor da Universidade do Chile. Varela foi Ph.D. (Harvard, 1970). Nasceu no Chile. Depois de ter trabalhado nos EUA, mudou-se para a França, onde passou a ser diretor de pesquisa do CNRS (Centro Nacional de Pesquisas Científicas) no Laboratório de Neurociências Cognitivas do Hospital Universitário da Salpêtrière, em Paris, além de professor da Escola Politécnica, também em Paris. Faleceu recentemente.
3 A Árvore do Conhecimento, Humberto R. Maturana e Francisco J. Varela, Editora Palas Athena, 2001
4 O fenômeno da reprodução não é constitutivo do ser vivo e não faz parte da sua organização. Eles devem poder existir sem se reproduzir. Ex: mulas.
5 O desenvolvimento de um indivíduo desde a concepção até a idade adulta.
6 História evolutiva de uma espécie ou qualquer outro grupo taxonômico.
7 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-126/2005.

Data de Publicação: 17/02/2006

Autor(es): José Ricardo Cardoso de Mello Junqueira (josericardo@apta.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor