Crise agrícola: dimensão estrutural e uma proposta de política em três pilares

            A agropecuária brasileira vem passando por situação dramática decorrente da crise da safra 2004/2005 em diante. Mas desde logo há que se refletir sobre a profundidade dessa crise, dimensionar seu caráter no tempo e sua abrangência espacial, definindo seu lugar para depois enfrentar o desafio de encontrar saídas.
            A determinação da dimensão da crise deve ter a clareza de que nem toda a agropecuária está assolada por ela. Com certeza, nas lavouras de soja, milho e algodão a realidade atual configura-se como dramática.
            Na produção de alimentos, essa situação afeta mais duramente o arroz. Nas criações, estão sendo afetados por razões sanitárias os agronegócios da carne bovina e da carne de frango. O primeiro, como reflexo da detecção e não solução do problema do foco de febre aftosa nos rebanhos sul-matogrossense e paranaense. O segundo, pelos impactos derivados da ocorrência de gripe aviária com efeitos sobre o consumo.
            Entretanto, vários agronegócios vão muito bem e vêm se aproveitando da crise para alargar sua representatividade interna, expandindo áreas cultivadas na substituição de outros que tiveram afetadas as respectivas rentabilidades. Trata-se do caso do agronegócio canavieiro, cujos preços do açúcar dobraram nos últimos doze meses e os preços do álcool tornaram-se remuneradores ao produtor. O setor não tem apenas um vento favorável a impulsioná-lo, mas um verdadeiro furacão de economicidade.
            Mas há outros setores cujas cotações também vêm sendo favoráveis, no mínimo melhores do que as do passado recente. São exemplos os agronegócios dos citros (suco de laranja) e do café, cujas recuperações dos preços internacionais reduziram ou equilibraram os efeitos do câmbio.
            Mais ainda, nem mesmo nos alimentos básicos tal unidade pode ser encontrada. Enquanto no arroz vige a crise, no feijão vivencia-se a euforia de preços remuneradores e incrementos de oferta. Assim, há que se ter a consciência dessa dimensão da crise em termos de atividades atingidas, com efeito localizada nas cadeias de produção de soja, milho, algodão, arroz e carnes (bovina e avícola). Noutras, a realidade pode configurar-se como de euforia, caso da cana para indústria.
            A dimensão espacial dessa crise deve ser ponderada, uma vez que a agropecuária paulista, por exemplo, apresenta atividades estimuladas, como as dos complexos sucroalcooleiro, citrícola e cafeeiro, além do feijão, da mesma forma que sofre os efeitos diretos pela crise da pecuária e dos grãos.
            As regiões paulistas de pecuária estão localizadas, principalmente, a oeste do território estadual, enquanto os grãos formam um cordão nas terras limítrofes com o Paraná ao sul, em toda a zona lindeira do Rio Paranapanema, no sentido da sua foz, e com Minas Gerais na Alta Mogiana. O feijão está postado no sudoeste paulista e o complexo sucroalccoleiro irradia-se de leste para o oeste pelo centro do território estadual, a partir de Ribeirão Preto, nos caminhos da cana em São Paulo.
            As mudanças na composição de culturas representam uma dimensão estrutural perene dessa dialética de crise e euforia. A cana marcha firme e a passos largos sobre pastagens e áreas de grãos, enquanto as árvores dos laranjais e dos cafezais firmam-se em espaços onde a cana não entrou de forma frontal ou não tem possibilidades de entrar. O efeito estrutural mais visível consiste na facilitação da expansão dos canaviais, que, por envolver atividade perene, produzirá alterações estruturais mais duradouras, em torno de no mínimo uma década, podendo ir além.
            Em São Paulo, nem toda agropecuária está afetada pela crise, dado que a cana para indústria consiste na mais relevante atividade agropecuária, quando se comparam os efeitos entre as unidades da federação. Assim, têm-se nítido as diferenças espaciais da crise, que afeta as commodities de grãos e fibras dos cerrados, as várzeas rizícolas gaúchas e as imensas superfícies de pecuária a pasto dos circuitos do centro-sul brasileiro. Logo, decorre que não há alternativa de solução 'macroeconômica' para a crise, pois as diferenças estruturais de produto e de lugar ganham explicitação claramente 'microeconômica'.
            Pensar na solução, por essa razão, exige mais que uma pauta de reivindicações. Há que se levar em conta as diferenças e as possibilidades macroeconômicas e técnico-agronômicas das propostas.
            Na pecuária de corte, urge um esforço diplomático federal e estadual decisivo no sentido da desobstrução de mercados que foram objeto de suspensão por parte de nações importadoras da carne brasileira. Isto além da solução definitiva da estruturação de um eficiente, eficaz e efetivo sistema de defesa sanitária, o que exigiria normas regulatórias nacionais mais consistentes e operacionais. Nesse aspecto, deve se ter nítida também a espacialidade das exportações brasileiras de carne bovina, pois dois terços delas partem do território paulista que está livre de aftosa.
            O Governo do Estado de São Paulo deveria, assim, tomar a iniciativa e envolver-se com o Governo Federal numa cruzada diplomática mais contundente e na realização de estratégias de marketing mais ousado de promoção da carne paulista no exterior, o que minimizaria o problema.
            Nas aves, medidas específicas também devem voltar-se para reduzir os impactos na demanda da pauta sanitária associada à gripe aviária nos mercados importadores. Nesses casos, as especificidades postam-se do lado da demanda externa que poderia enxugar 'o excesso de liquidez' de carnes existente na agropecuária brasileira. Caso contrário os abates de matrizes configurarão maiores perdas estruturais que as já provocadas pelos baixos preços, afetando a capacidade produtiva brasileira.
            Nos grãos e fibras, a compreensão da crise também deve ser procurada nas especificidades. As sugestões veiculadas pelos movimentos reivindicatórios enfrentam enormes dificuldades de se tornarem efetivas. Uma delas consiste na redução substancial da condição ' vigente de sobrevalorização cambial'. Desde logo, há que se caracterizá-la no tempo, além de qualificá-la, para que não sejam tomadas decisões lastreadas em equívocos.
            A imagem televisiva de fardos de algodão em pluma sendo queimados na beira das estradas mato-grossenses, em 03/05/2006, permite verificar a validade dessa constatação para o caso do algodão de janeiro de 2000 a março de 2006. O comportamento anormal nesse caso consiste exatamente na conjuntura de preços verificada entre a metade de 2002 e a metade de 2004. São consistentes e similares tanto os desempenhos anteriores (até metade de 2002) quanto os posteriores (da metade de 2004 a março de 2006). Nesse período de apogeu de preços, verifica-se uma conjunção de preços mundiais da pluma (expressos em US$) próximos ou um pouco superiores aos do início do ano 2000, com moeda brasileira submetida a expressiva desvalorização cambial (figura 1).


Figura 1. Evolução dos indicadores de preços na cadeia de produção de têxteis e da taxa de câmbio, valores nominais, Janeiro de 2000 a Março de 2006

Fontes: Roupas feitas SP (IPCA do IBGE); preço mundial US$ (Cotton World Markets on Trade), pluma mundial (em R$= Preço Mundial convertido), algodão em caroço (em R$ IEA), pluma Brasil (em R$ BM&F/CEPEA) e câmbio (Banco Central)


            Os preços do algodão em pluma no mercado brasileiro, dessa maneira, após curto período de comportamento elevado e fora da normalidade, voltam ao seu patamar histórico na realidade vigente desde janeiro de 2005. Desse modo, não faz sentido a proposição de desvalorização cambial para alavancar os preços internos de algodão exatamente porque, aí sim, estaria sendo criada uma artificialidade incompatível com a lógica autônoma de um mercado de câmbio flutuante.
            Visualiza-se, de forma nítida, que desde janeiro de 2005 a situação vigente, para o algodão em pluma, consiste em preços mundiais (em US$) inferiores ao patamar de janeiro de 2000, queda que se aprofunda exatamente do ano de 2004 em diante; ou seja, uma lavoura de algodão competitiva teria de se ajustar a essa contingência de mercado num País que não dispõe de recursos fiscais abundantes para praticar protecionismo.
            Quanto às práticas de subsídio das demais nações, cumpre-se apenas condená-las e lutar contra elas de forma incessante pelos efeitos depreciativos nas cotações internacionais. Nesse sentido, não faz o menor sentido o Governo do Brasil ter postergado exigência de aplicação da condenação da Organização Mundial do Comércio (OMC) aos subsídios da produção norte-americana. Com a quebra da produção nacional, às custas da estrutura interna, subsidiou-se na verdade a política de transição dos Estados Unidos, sem ter-se certeza de que ela se configurará como efetiva.
            De outra ótica, sendo o câmbio o preço dos preços numa economia aberta, essa artificialidade produziria significativas distorções nos preços relativos, do lado do mercado, porque não haveria como criar 'um câmbio para cada produto'. Numa comparação entre produtos, ao cotejar os efeitos sobre o algodão em pluma e o açúcar, tem-se, no primeiro caso, queda dos preços internacionais e, no segundo, a duplicação dos valores.
            Uma desvalorização cambial equivaleria a multiplicar por valores astronômicos a já elevada competitividade interna relativa das lavouras de cana para indústria. Isto aprofundaria a já distorcida composição de culturas na área agropecuária, fato que interessa decididamente ao Estado de São Paulo. Cada produto produziria um 'câmbio' ideal e distinto para promover o equilíbrio interno, o que inviabilizaria essa artificialidade do lado do comportamento dos mercados, tornando inaceitável essa proposta.
            Do lado da produção, haveriam também distorções estruturais relevantes. O padrão tecnológico insumo-intensivo praticado nas lavouras do cerrado tem como componente fundamental a mecanização plena de todas as tarefas produtivas do plantio à colheita.
            Assim, os impactos dos preços do petróleo sobre os custos de produção e de exportação de produtos configuram-se como relevantes. A conjuntura dos últimos anos vem mostrando preços internacionais crescentes dessa fonte de energia não-renovável com impactos em toda a agroindústria petroquímica de insumos (fertilizantes, por exemplo) e do diesel que move a maquinaria agropecuária. Por essa razão, mesmo numa conjuntura de câmbio que sobrevaloriza a moeda brasileira, os custos das operações de máquinas das lavouras mecanizadas crescem por conta dos maiores preços do petróleo (quando deveriam cair).
            Então, a desvalorização cambial não representa a solução devido ao impacto elevado no preço do diesel, produzindo aumento do custo de produção. Para lavouras de produtos de baixo valor unitário como a soja, os impactos negativos seriam de tal monta nos custos das operações de máquinas e dos fretes até o porto que poderiam retirar-lhes a competitividade.
            Se os argumentos dos reflexos sobre os preços relativos e sobre os custos operacionais forem insuficientes para a não-adoção de artificialidades no câmbio e nos preços do diesel, agreguem-se os desdobramentos inflacionários que seriam produzidos pela desvalorização cambial. Isso não apenas porque maiores preços internos na produção significam maiores preços para os consumidores, mas também porque produziria enorme regressividade ao atingir produtos de alimentação de amplas camadas sociais que teriam preços maiores, como o trigo e o arroz que o Brasil depende de importações. Não haveria sentido social e econômico que pudesse dar um mínimo de suporte a essa artificialidade.
            A execução de uma política consistente e efetiva de desvalorização cambial exige um atributo não presente na macroeconomia nacional que não tem recursos para comprar dólares de forma não-inflacionária. Ressalte-se a enorme penúria fiscal do Estado Brasileiro, ainda que se propale para todos os cantos e ventos a excelência dos fundamentos macroeconômicos da economia brasileira, que seria fruto do acerto da política econômica iniciada na metade da década de 1990 e continuada no período recente.
            O mesmo está imerso num emaranhado de carga tributária bruta cobrada da sociedade, que atingiu o patamar de suportabilidade (superior a 38% do PIB) mas que produz uma carga tributária líquida (pouco mais de 20% do PIB), incompatível com a realização de políticas pró-ativas de sustentação da agricultura. Os custos previdenciários (aposentadoria) e da gestão do estoque da dívida pública (juros) consomem parcela ponderável dos recursos fiscais.
            Pela análise precedente, já se configura na agropecuária a absoluta heresia da idéia de mercado auto-regulável como alocador ótimo e distribuidor equânime dos benefícios do desenvolvimento, contradizendo o discurso liberal. Aqui, essa contradição ganha contornos definitivos, uma vez que produtividade sem institucionalidade não produz competitividade.
            E não há institucionalidade sem Estado; ou seja, não se têm consistente produção competitiva em nações não-competitivas. E tornar o Brasil uma nação competitiva significa enfrentar e perseverar na solução do constrangimento fiscal do Estado, que não apenas o impede de praticar políticas conjunturais de sustentação da agropecuária nas crises (a exemplo da atual), como também o coloca como causa dessa mesma crise. A gestão da dívida pública, ao concorrer com recursos nas captações no mercado financeiro, promove a atração de recursos especulativos externos, ao mesmo tempo em que eleva juros (e encarece os custos financeiros da produção), empurrando a taxa de câmbio para baixo.
            As dificuldades de solução da crise da agropecuária brasileira de grãos e fibras (soja, milho e algodão) pelo lado da mera desvalorização cambial mostram-se inequívocas, ainda que, progressivamente e de forma lenta, alguma elevação da taxa de câmbio seja desejável e possível com a progressiva redução da taxa de juros. Isto porque estariam sendo reduzidos os atrativos para o capital especulativo internacional que entra no mercado brasileiro apenas com esse objetivo. Ao mesmo tempo, o menor custo do dinheiro produziria menores juros da dívida pública, abrindo espaço inclusive para uma certa dose de moderada intervenção no mercado cambial para corrigir a valorização desproporcional da moeda nacional.
            Por óbvio, no desenho dessa ação, não há como nem pensar nos limites propostos pelos movimentos de reivindicação dos agropecuaristas do cerrado. Uma das limitações da intervenção da autoridade monetária no mercado de câmbio, ainda que ela pretenda ali atuar para acumular reservas cambiais, está em que a compra de dólares (US$) implica em injetar reais (R$) na economia, exigindo medidas de enxugamento da liquidez para evitar-se impactos inflacionários indesejáveis.
            A idéia de as aquisições governamentais formarem estoques também se mostra incompatível com os custos de carregá-los numa economia de altos juros. A não ser que se refira a compra alimentos ou de produtos transformados que não seriam estocados porque distribuídos aos pobres, produzindo ao menos algum efeito social desejável.
            No curto prazo, não há como atuar para evitar-se o sucateamento da estrutura produtiva construída da agropecuária de grãos e fibras, senão criando mecanismos de securitização das dívidas. Isto ainda que se conduzam negociações para o postergamento dos vencimentos e alguma amenização dos impactos dos juros sobre o estoque de dívidas.
            Há limites ficais para isso, mas sem uma decisão que encaminhe a solução o quadro só tende a piorar. A possibilidade de aplicação de recursos, em qualquer circunstância, será sempre menor que o necessário, mas muito maior que os cofres públicos poderiam alocar.
            Entretanto, numa conjuntura como essa, pior que uma decisão ruim é uma decisão que tarda ou não vêm. Já se passaram duas safras e as medidas efetivas de solução desses impasses, ainda que parciais, não vêm sendo adotadas, o que piora ainda mais o quadro e aumenta de forma substantiva os valores exigidos para que seja produzido o encaminhamento efetivo da superação dos problemas.
            Como sempre no período de 'vacas gordas', a agropecuária de grãos e fibras dos cerrados não produziu mecanismos consistentes com o enfrentamento das épocas das 'vacas magras'. Por isso, assiste assustada o desenrolar da atual grave crise que coloca em questão a própria ocupação dos cerrados com grandes lavouras mecanizadas.
            Ao lado da solução da conjuntura da crise, há que se aprofundar e discutir a estrutura, verificando como essas lavouras mecanizadas seriam afetadas na sua competitividade relativa pelos preços de seu principal insumo: o óleo diesel. E, para isso, enfrenta-se a construção de estratégias viáveis que poderiam ser o uso do biodiesel (de soja) nas lavouras e a alteração na estrutura de transporte, de maneira a fugir da hegemonia rodoviária.
            Ademais, a solução para o endividamento deve ter nítido que não dá para o Governo securitizar dívidas de R$ 30 bilhões a cada cinco anos. Nem há recursos fiscais para isso.
            Assim, é preciso produzir encaminhamentos que formem o alicerce de uma política agrícola para commodities mais perene e sem exigir recursos públicos. Esta teria de ser efetiva numa economia livre do peso excessivo da dívida pública no produto nacional. Essa política deveria ter três pilares:

1) no custeio das safras com recursos públicos, a lei deveria prever o seguro rural compulsório e a venda antecipada da safra, também obrigatória, com hedge em bolsas de mercadorias.
2) nas exportações, na operação dos mecanismos da política cambial (como os Adiantamentos de Contratos de Câmbio - ACCs), além do contrato de venda externa, seria obrigatória a apresentação de Cédula do Produto Rural oficial (CPR ou título equivalente), comprovando a compra do produto;
3) no crédito de investimento de bancos públicos ou de bancos privados lastreados em fundos públicos, deveria ser criado um novo título fundiário (de prazo largo), líquido e certo, lastreado na propriedade da terra, com execução extra-judicial e negociável no mercado secundário.

            Com isso, haveria melhor gestão dos riscos agronômicos (seguro) e dos riscos de preços (hedge), conduzindo estabilidade aos mercados. Assim, ao menos as crises futuras não seriam mais tratadas fora de tempo e de lugar, tendo nítidas as diferenças das realidades entre produtos e as limitações do Estado Nacional. Isto também sem a ilusão de defender a volta da adoção de mecanismos pretéritos e ultrapassados de instrumentos de política agrícola (como os de crédito subsidiado e de preços mínimos), pensados no Brasil na década de 1940 na concepção de crédito facilitado e preços remuneradores e implementados nos anos 1970.
            Nessa nova institucionalidade para a produção de commodities a mercado, recursos públicos devem ser reservados para medidas estruturantes. Assim, a amarração da estrutura exportadora à lógica da modernidade produtiva cria nexos de relações entre os agentes econômicos da agricultura que ampliem a força política do setor, ao mesmo tempo em que se rompe com o 'ruralismo arcaico', típico do atraso.

Data de Publicação: 11/05/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor