Agricultura, ações governamentais e diferenças regionais em São Paulo

            A questão das diferenças regionais não vem recebendo reconhecimento compatível com sua importância nos debates sobre as políticas públicas federais e estaduais. Na verdade, essa postura de completa falta de prioridade para o tema decorre das velhas práticas clientelistas que permeiam a política nacional.
            Elege-se genericamente municípios como se todos fossem iguais em todas as variáveis econômicas e sociais, não existindo relação entre recursos transferidos e dimensão local do problema a ser enfrentado. Não sem razão, as práticas mais dissonantes com a racionalidade orçamentária e a austeridade fiscal têm sido aquelas encontradas nas relações das duas instâncias federativas superiores com os municípios.
            Isto decorre da absoluta falta de regramento quanto aos critérios de regionalidade na aloçação de recursos orçamentários, sem indicadores precisos e programação compatível. O governo federal trata com os municípios à revelia dos governos estaduais, e vice-versa, muitas vezes concorrendo no apoio político.
            Nessa concepção, o número de municípios atendidos virou indicador sem qualquer avaliação consistente de mérito. Não é preciso muita argumentação estatística para se verificar que nessas relações está concentrado o mais elevado nível de desperdícios de recursos e de distribuição de recursos públicos no Brasil. Isto para ficar apenas nesse aspecto, uma vez que as notícias sobre desvios de várias ordens parecem corroborar a tese de que existe aí elevado nível de corrupção1.
            A corrupção, que deve ser combatida com toda a energia, consiste apenas numa face menor do problema de desperdícios de recursos. As perdas mais elevadas são aquelas decorrentes da completa irracionalidade dessa prática de distribuição orçamentária sem critérios. Para não ficar apenas nas ações federais, o governo do Estado e a prefeitura de São Paulo têm, cada um, seu programa de distribuição de leite específico para o público infantil paulistano, o que gera, mesmo com todo esmero administrativo na execução dessas ações, no mínimo, alta possibilidade de duplicação de atendimento.
            Essas distorções decorrem da completa falência do atual pacto federativo brasileiro. Os desperdícios e os níveis de corrupção não serão combatidos com a adoção de procedimentos avaliatórios (por melhores que sejam) e pela multiplicação de corregedorias e auditorias que, muitas vezes duplicadas, simplesmente vão aumentar os custos das atividades-meio dos programas. Os mecanismos de controle podem chegar ao absurdo de ficarem mais caros que os dispêndios nas atividades-fim.
            Há que se pensar numa alternativa de revisão do pacto federativo e de estabelecer procedimentos mínimos de co-responsabilidade entre as instâncias federativas. Um critério poderia ser que os recursos do governo federal, de programas de qualquer espécie, não fossem, por vedação constitucional, transferidos diretamente aos municípios, mas à instância federativa representada pelos governos estaduais.
            Por outro critério, tais recursos deveriam fazer parte dos orçamentos estaduais e todas as avenças submetidas ao controle dos tribunais de contas estaduais, mais próximos dos fatos e com estrutura já existente para avaliar contas estaduais e municipais. Cada uma das ações do governo federal, nesses casos, obedeceria a critérios de regionalidade específicos, a serem seguidos na distribuição dos recursos orçamentários, reduzindo o espaço para o clientelismo.
            Recursos para defesa animal, por exemplo, teriam uma relação direta com o tamanho dos rebanhos estaduais e os recursos para as lavouras de mandioca seguiriam índices próximos aos da área plantada dessa cultura. Esses indicadores são todos conhecidos e produzidos por instituições confiáveis e transparentes como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
            A questão das distorções derivadas das enormes diferenças regionais, porém, não se esgota nos casos de corrupção nem se mostra uma característica apenas de unidades da federação mais pobres. No Estado de São Paulo, ela se mostra dramática, embora aqui já tenham sido dados avanços relevantes para que sejam encaminhadas as soluções.
            Um destaque é a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) que, nas últimas legislaturas, vêm desenvolvendo mecanismos compatíveis com o enfrentamento das enormes diferenças regionais. Dentre muitas contribuições para a reflexão sobre a economia paulista no século XXI, disponíveis no site dessa casa de leis (www.al.sp.gov.br), é fundamental destacar alguns dos principais aspectos do Relatório 2003/2004 do Fórum Legislativo de Desenvolvimento Econômico Sustentado: uma contribuição à reflexão sobre o desenvolvimento2.
            Para solucionar o problema das diferenças regionais, é preciso conhecer a existência e a dimensão dessas distorções. Pois bem, o Legislativo paulista, em parceria com a Fundação Seade, desenvolveu um consistente Sistema de Indicadores de Responsabilidade Social. O primeiro indicador consiste no Índice Paulista de Responsabilidade Social (IPRS), criado em 2000, para expressar o grau de desenvolvimento social e econômico dos 645 municípios paulistas.
            Os cinco grupos do IPRS indicam de 1 a 5 níveis crescentes de diferenças de renda, longevidade e escolaridade e, assim, sabe-se quais municípios estão necessitando de maior atenção das políticas públicas estaduais. Da mesma forma, os mapas do IPRS permitem verificar a concentração desses municípios. Assim, os de melhor condição se situam no eixo Anhangüera-Bandeirantes, com concentração nas regiões metropolitanas da Grande São Paulo, Litoral Paulista e de Campinas. Já a maioria dos municípios em piores condições localiza-se na enorme mancha regional representada pelo Vale do Ribeira e Sudoeste Paulista.
            Conhecido o mapa territorial das enormes diferenças regionais paulistas, o Sistema de Indicadores foi complementado pelo Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) que resolve a distorção crucial para o reconhecimento da distribuição das pessoas mais carentes. Mesmo tendo IPRS que as coloca entre os municípios com melhores condições, as regiões metropolitanas concentram o maior número de pessoas carentes e necessitando de atendimento das políticas sociais.
            O IPVS permite, numa escala intra-urbana, identificar dentro dos municípios, no espaço detalhado por setor censitário (agrupamento contínuo de cerca de 300 domicílios), os níveis de vulnerabilidade social dos respectivos moradores. As áreas de maior vulnerabilidade social predominam nos municípios de grande porte, sendo mais de um quarto no Município de São Paulo.
            A ação consistente da ALESP permitiu, assim, o reconhecimento explícito, com endereço irrefutável, das diferenças regionais e sociais paulistas, que são enormes e exigem que as intervenções governamentais reflitam esse eficiente espelho da realidade. Num passo adicional, a reflexão do Legislativo enfrentou o polêmico tema da transferência do Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para os municípios paulistas.
            Em termos de distribuição per capita (R$ por habitante), o município mais aquinhoado (R$ 6.700,32/hab) tem uma receita 140 vezes maior que a do menos aquinhoado (R$ 47,62/hab) e 28,8 vezes a média estadual (R$ 232,89/hab). Mais uma vez, fica demonstrada a face mais dramática das distorções produzidas pelo atual sistema tributário brasileiro, agravada pela inexistência de mecanismos ordenadores das transferências de recursos entre instâncias federativas que sejam transparentes e tenham o requisito da racionalidade.
            Muitos poderão estar pensando onde entra a agricultura que aparece em destaque no título do artigo. Como as mudanças econômicas consistem na única alternativa consistente de transformação dessa história de iniqüidades que se aprofundam no tempo e no espaço, o setor econômico essencialmente associado ao espaço, e com isso corresponde a uma prioridade nas ações governamentais de redução das disparidades regionais, consiste exatamente na agricultura, em todas as suas dimensões e segmentos.
            Para completar esse quadro que apresenta a magnitude e a relevância da questão das diferenças regionais paulistas, destacam-se os resultados de trabalhos do Instituto de Economia Agrícola (IEA) no contexto desse setor econômico estratégico.
            Os orçamentos municipais permitem mostrar que a reduzida aplicação em agricultura torna inconsistente a prática pura e simples de repassar as responsabilidades das políticas setoriais para essa instância federativa, pois, sem recursos em montantes consistentes para financiar essa ação compartilhada, com certeza ocorre apenas a transferência da precariedade dos serviços.
            'A constatação fundamental, consiste na enorme disparidade da distribuição regional das aplicações orçamentárias na função agricultura. Os municípios com melhores indicadores sociais, cuja maioria situam-se no denominado complexo metropolitano expandido conformado no centro e no entorno do triângulo São Paulo-Campinas-São José dos Campos, aplicam menos proporcionalmente em agricultura mas pela dimensão dos respectivos orçamentos acabam investindo somas maiores em valores absolutos que os municípios com piores indicadores sociais, os quais, ainda que comprometendo maiores percentuais de seus orçamentos na agricultura, aplicam valores absolutos muito menores pela exiguidade de seus recursos fiscais. Paradoxalmente, quanto pior o indicador social, mais dependente da agropecuária se revela o município, demonstrando os efeitos distributivos diretos das políticas para agricultura'. Noutro ponto crucial para a agricultura, a maioria dos municípios sequer tem condições de manter de forma adequada sua malha viária rural, fator fundamental para o escoamento da safra, além de permitir à população rural o acesso a serviços urbanos essenciais3.
            Completar um quadro consistente e transparente que as distorções alocativas dos recursos públicos acabam configurando requer o enquadramento nessa lógica do orçamento estadual, no qual as diferenças de tratamento certamente são enormes, mas do que não se tem uma dimensão exata. A concentração dos órgãos públicos nas três regiões metropolitanas configura-se como uma realidade visível, mais que o número de unidades pelo contigente de pessoal alocado, mesmo para atividades onde isso deveria estar mais descentralizado em função da distribuição espacial como a agricultura. Assim, as disparidades tendem a superar todas as já descritas, configurando-se estratosféricas.
            Aliás, o Estado de São Paulo sequer dispõe de um critério de regionalização consistente. Com isso, vários órgãos adotam critérios próprios, o que gera uma enorme incongruência na construção de indicadores compatíveis e comparáveis. As antigas regiões administrativas deveriam ser substituídas pelas novas estruturas regionais, previstas na Lei Complementar nº 760, de 1º de agosto de 1994, que estabelece diretrizes - nunca concretizadas - para a Organização Regional do Estado de São Paulo 4. Ao contrário, mantêm-se o uso das antigas regiões administrativas, sem compatibilizá-las com as novas estruturas criadas, ao invés de organizar o sistema de microrregiões previsto nessa lei, pois apenas as regiões metropolitanas tiveram tratamento de instrumentalização para a execução de políticas regionais.
            A criação da Região Metropolitana de Campinas pela Lei Complementar nº 870, de 19 de junho de 2000, não resolveu a pendência de redefinição da vinculação regional dos 44 municípios da antiga Região Administrativa de Campinas (63 municípios), não incluídos no novo espaço metropolitano (19 municípios)4. Em função disso, essa situação de imensas distorções nas regionalizações, mais que uma questão formal, representa atualmente um problema para a compreensão da realidade regional estadual pelas enormes dificuldades de consistência das estatísticas.
            O governo paulista tem ignorado o dispositivo da Constituição Estadual relativo às ações regionais, gerando os problemas estatísticos decorrentes dos critérios de regionalização, uma vez que o artigo 156 determina que 'os Planos Plurianuais do Estado estabelecerão, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da Administração Estadual'. Esse dispositivo não determina de forma simplória e simplista que 'o orçamento estadual deva ser regionalizado' 4, mas fixa o princípio de que os programas, atividades e projetos dos orçamentos estaduais devam incorporar a regionalidade como critério objetivo.
            Assim, por exemplo, a distribuição dos totais dos recursos aplicados na agricultura seguiria a proporção regional da área plantada, envolvendo lavouras, e dos rebanhos nas atividades voltadas para a pecuária. De outro lado, as proporções dos recursos dos programas sociais seriam compatíveis com a concentração metropolitana do número de pessoas carentes. O cumprimento desse dispositivo constitucional deveria ser objeto de compromisso formal na construção da legislação orçamentária do Governo do Estado de São Paulo, a partir do próximo Plano Plurianual 2008-2011.
            Mais ainda, há que se fazer uso do notável avanço do sistema eletrônico de planejamento, avaliação e execução orçamentária do governo paulista. Trata-se de verdadeira revolução de eficiência nesse quesito, com a implantação do Governo Eletrônico, na construção de contribuição estratégica para a transparência da ação pública e para a conformação de um quadro definitivo da sua regionalidade.
            Todas as operações de execução de despesa deveriam ter um código que determinasse o município onde foi aplicado o recurso, inclusive de pessoal pois salários conformam demandas efetivas onde estão morando os funcionários. E os relatórios orçamentários por programa, projeto e atividade trariam a consolidação dessa distribuição municipal da alocação dos recursos orçamentários estaduais.
            Tudo isso, para instrumentalizar a sociedade paulista para discutir e enfrentar a dramática disparidade regional verificada na principal unidade da federação brasileira. Apenas assim, ao romper com a prática do clientelismo em relação aos municípios, a redução dessas diferenças estaria sendo alicerçada na superação do diagnóstico e passaria a freqüentar a ação pública que conduziria à solução.5
 

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1 Não é necessário grande esforço para comprovar essa assertiva, uma vez que os jornais trazem todo dia pelo menos uma notícia mostrando os problemas dessa relação entre instâncias federativas. No jornal O Estado de S. Paulo de 3 de junho de 2006, na Página A 20, destaca-se a reportagem de Lisandra Paraguassú 'Bolsa Família: só 5% das cidades cumprem requisitos'. Nesse artigo, ao par de mostrar as dificuldades de gerenciamento de programas em nível nacional, mostra-se que inúmeros municípios pobres ficarão sem os recursos por não atingirem o padrão mínimo. Na página seguinte (A 21), aparece a matéria de Sônia Filgueiras 'Operação Sanguessuga: nova lista da Planam tem mais nomes de políticos'. Esse trabalho não apenas mostra a gravidade da questão, associada a desvios de recursos de ação essencial, como também destaca a saúde na informação de que 'outra quadrilha é descoberta'.
2 O referido documento, apresentado pela Mesa Diretora da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, impresso na Imprensa Oficial e datado do final de 2004, contêm 166 páginas e consiste numa relevante contribuição ao desenvolvimento econômico e social paulista. Além de sua versão impressa, utilizada neste artigo, pode ser obtido no site do Parlamento paulista (www.al.sp.gov.br) no ícone relativo ao Fórum Legislativo de Desenvolvimento Econômico Sustentado.
3 Sobre a questão dos orçamentos municipais, ver GONÇALVES, José S., ANGELO, José A & SOUZA, Sueli A M 'Recursos orçamentários dos municípios paulistas alocados na função agricultura: representatividade nas despesas totais e perfil distributivo para o ano de 2003'. V International PENSA Conference on Agri-food Chains/Networks Economics and Management July, 27–29th, 2005 Ribeirão Preto, Brazil. No tocante à malha viária rural ver, GONÇALVES, José S. & SOUZA, Sueli A M 'Manutenção da Infra-Estrutura Viária e o Orçamento Municipal de 2001: uma análise do comprometimento das receitas nos municípios paulistas'. Revista Informações Econômicas 33 (8):31-94, 2003 (os trabalhos podem ser encontrados por consulta em www.iea.sp.gov.br).
4 Uma discussão da questão da legislação de regionalização no Estado de São Paulo e da inserção da dimensão da regionalidade no orçamento estadual pode ser encontrada em GONÇALVES, José S. 'Inserção da dimensão da regionalidade na estrutura orçamentária do Governo do Estado de São Paulo'. Revista Informações Econômicas (2): 72-86, 2006.
5 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-60/2006. 

Data de Publicação: 07/06/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor