Defesa da Reserva Legal e complexidade da agropecuária paulista

            Numa sociedade democrática, a livre manifestação de idéias e opiniões constitui um valor fundamental, em especial no debate sobre as decisões de políticas públicas. Nesse caso, inclui a decisão do Governo do Estado de São Paulo que, com base no Decreto n° 50.889, de 16 de junho de 2006, regulou a manutenção, recomposição, condução e regeneração natural, bem como a compensação da área de Reserva Legal em imóveis rurais, com a aplicação do determinado pelo Código Florestal, a Lei Federal n° 4.771 de 15 de setembro de 1965. Argumentos favoráveis e contrários a essa decisão política são fundamentais para que a opinião pública forme posição consistente a respeito desse fato que terá reflexos significativos na economia estadual, num setor econômico estratégico como a agropecuária.  Contra a medida, ressalta-se a avaliação dos impactos econômicos e sociais. Estima-se que 3,7 milhões de hectares produtivos devem ser revertidos para Reserva Legal, com perdas de renda bruta agropecuária estimadas em R$ 5,6 bilhões, levando a reflexos de queda de receitas no conjunto das cadeias de produção da agricultura da ordem R$ 67,0 bilhões. Além disso, os custos de recomposição a serem arcados pelos agropecuaristas somam R$ 14,8 bilhões, ao lado da potencial eliminação de 136,1 mil empregos1. São corolários expressivos que alteram de forma radical a formação de expectativas para o desenvolvimento da agricultura paulista, trazendo custos que podem produzir reavaliações de inúmeros investimentos previstos.
            A posição favorável à aplicação do Código Florestal mostra-se legítima, desde que realizada dentro de parâmetros consistentes que não busquem distorcer a realidade. A defesa do Decreto n° 50.889/2006 feita no documento 'Reserva Legal no Estado de São Paulo'2 não atende ao requisito acima mencionado. O mesmo busca mostrar que não teria fundamento a argumentação dos agropecuaristas com base na ' premissa de que não há área suficiente no Estado de São Paulo para atender esta exigência e que a produção agrícola seria afetada pela recomposição de matas naturais' por força da adoção do mecanismo de compensação previsto no referido Decreto. Três pontos do referido documento revelam desconhecimento do próprio conteúdo do Decreto n° 50.889/2006, além de visão distorcida da realidade da agropecuária paulista que leva a afirmações equivocadas e que chega mesmo à reprodução de descabido preconceito contra a pecuária estadual taxada de improdutiva sem qualquer sustentação mais consistente.
            O desconhecimento do conteúdo do Decreto n° 50.889/2006 está explícito na colocação de que 'a regulamentação permite que propriedades rurais, que já se encontram inteiramente ocupadas com culturas de interesse econômico, constituam reservas legais em outras propriedades, desde que atendidos os critérios estabelecidos'. Essa pretensa permissão mostra-se uma possibilidade quase nula se esclarecido o que está escondido na condição 'desde que atendidos os critérios es estabelecidos '. Então, esses critérios são os que constam do Inciso I do Parágrafo 1° do artigo 6°, segundo o qual, fora da propriedade rural, 'a área apresentada para compensação deverá equivaler em extensão e importância ecológica à área a ser compensada, pertencer ao mesmo ecossistema e estar localizada na mesma bacia hidrográfica onde se localiza o imóvel cuja reserva legal será objeto de compensação '. A agropecuária paulista é especializada e, no maior número de regiões, prevalece uma significativa especialização com uma ou duas atividades principais. Além disso, a área de compensação deve pertencer ao mesmo ecossistema e estar na mesma bacia hidrográfica, fazendo com que para a esmagadora maioria dos proprietários rurais, em especial os pequenos e médios, essa alternativa seja uma impossibilidade. Logo, a maior parcela das propriedades rurais terá de reduzir as plantações de interesse econômico pois o conhecimento da íntegra do Decreto permitiria observar que cria obstáculos intransponíveis para que propriedades rurais inteiramente ocupadas constituam reservas legais em outras propriedades.
            A evolução da distribuição da área cultivada com as principais lavouras na agropecuária paulista mostra que a somatória delas avançou de 5,6 milhões de hectares, no período 1969-1971, para 6,7 milhões de hectares em 2002-2004, numa expressiva mudança na composição de culturas, uma vez que a soma da área paulista de lavouras mais pastagens recua 500 mil hectares no mesmo período. Para verificar que a possibilidade de compensação fora das propriedades rurais se torna quase uma ficção, 'desde que atendidos os critérios estabelecidos' pelo Decreto n° 50.889/2006, tome-se a mais pujante região agropecuária estadual representada por Ribeirão Preto. Mais de uma bacia hidrográfica e inúmeros ecossistemas estão abrangidos no território regional ribeirão-pretano. Ainda assim, assumindo que fosse possível a compensação dentro do espaço geográfico regional, haveria recuo expressivo da área de lavouras para atender aos limites estabelecidos para compensação. A área regional de lavouras cresceu 1,0 milhão de hectares, indo de 1,1 milhão de hectares em 1969-1971 para 2,1 milhões de hectares em 2002-2004 (tabela 1). Assim, ocupou quase todo o espaço geográfico regional, onde se localizam as mais expressivas cadeias de produção agroindustriais estaduais como a sucroalcooleira e a de sucos cítricos, geradoras de emprego, renda e de cambiais. Como a lógica do Decreto vai na contramão do processo de desenvolvimento, essa região paulista de agricultura mais desenvolvida será a maior penalizada com redução de área com lavouras de interesse econômico.

Tabela 1- Evolução da área das principais lavouras no Estado de São Paulo, segundo as regiões agrícolas3. Triênios 1969- 1971 a 2002-2004, em hectares

REGIÃO
1969-1971
1979-1981
1989-1991
1999-2001
2002-2004
Araçatuba
305.539
270.119
304.320
349.604
434.942
Bauru
325.420
353.800
392.601
397.622
436.167
Campinas
688.277
889.129
934.549
921.643
959.403
Marília
622.566
826.662
746.979
747.473
808.556
Presidente Prudente
699.316
424.713
378.714
258.240
381.980
Ribeirão Preto
1.131.247
1.642.059
1.928.505
2.153.052
2.131.096
São José do Rio Preto
997.871
752.110
802.194
669.557
747.119
São Paulo
114.769
99.511
76.679
70.516
66.468
Sorocaba
597.161
772.556
645.827
618.943
708.389
Vale do Paraíba
72.733
58.046
57.621
41.126
37.551
ESTADO
5.554.899
6.088.705
6.267.992
6.227.776
6.711.670
(1) correspondem às 10 Divisões Regionais Agrícolas (DIRAs) do período 1973-1984 (PETTI et al. 2001).
Fonte: Instituto de Economia Agrícola (IEA)

            O aprofundamento na demonstração permite acrescentar que, na Região de Ribeirão Preto, a participação da área de lavouras cresceu de 39,7%, em 1969-1971, para 72,9% em 2002-2004 (tabela 2). Ora, onde se daria a compensação para formar reservas legais, considerando que a pecuária regional, também marcada pela alta tecnologia e uso intensivo do solo, em função da expressiva pressão da expansão da cana, recuou 900 mil hectares (de 1,7 milhão de hectares em 1969-1971 para 800 mil hectares em 2002-2004) (tabela 3 ), similar ao avanço das lavouras, detendo no último triênio considerado os demais 27,1% da área plantada? 
            Pelo menos 584,9 mil hectares da área plantada com lavouras mais pastagens da Região de Ribeirão Preto deverão deixar de ter esse uso e passarem a comportar vegetação nativa, apenas para cumprir que tal compensação da Reserva Legal deve se dar no mesmo ecossistema e na mesma bacia hidrográfica como determina o Decreto. Logo, por visão distorcida da realidade da agropecuária paulista, o documento2 equivoca-se ao afirmar que o Decreto 'evita que o proprietário rural seja obrigado a erradicar plantios comerciais para constituir a reserva'. Na verdade, o Decreto n° 50.889/2006 torna imperativo que tal erradicação seja procedida, a despeito das palpáveis perdas econômicas.

Tabela 2- Evolução da participação da área de lavoura na área plantada. Estado de São Paulo, segundo as regiões agrícolas3. Triênios 1989-1991 a 2002-2004, em %

Região
1969-1971
1979-1981
1989-1991
1999-2001
2002-2004
Araçatuba
18,43
15,56
18,16
21,76
26,61
Bauru
26,18
29,65
33,00
31,81
34,31
Campinas
39,40
53,58
54,48
55,43
57,07
Marília
36,78
44,93
45,36
42,63
44,85
Presidente Prudente
29,95
18,53
17,53
11,96
16,98
Ribeirão Preto
39,74
55,08
64,14
71,47
72,88
São José do Rio Preto
40,65
31,56
35,53
30,53
33,91
São Paulo
28,17
27,59
26,63
24,90
23,00
Sorocaba
28,49
35,79
31,8
31,08
33,02
Vale do Paraíba
7,76
7,33
6,57
6,06
5,56
ESTADO
31,89
35,00
36,55
37,54
39,77
(1) correspondem às 10 Divisões Regionais Agrícolas (DIRAs) do período 1973-1984(PETTI et al 2001).
Fonte: Instituto de Economia Agrícola (IEA)

Tabela 3- Evolução da área de pastagens no Estado de São Paulo, segundo as regiões agrícolas3. Triênios 1969- 1971 a 2002-2004, em hectares

REGIÃO
1969-1971
1979-1981
1989-1991
1999-2001
2002-2004
Araçatuba
1.352.214
1.465.620
1.371.172
1.257.396
1.199.508
Bauru
917.731
839.299
797.261
852.473
835.234
Campinas
1.058.550
770.340
780.906
741.033
721.697
Marília
1.070.100
1.013.199
899.782
1.005.895
994.264
Presidente Prudente
1.635.969
1.867.629
1.782.105
1.900.968
1.867.442
Ribeirão Preto
1.715.451
1.339.291
1.078.126
859.461
793.173
São José do Rio Preto
1.456.803
1.630.648
1.455.462
1.523.202
1.456.131
São Paulo
292.674
261.153
211.224
212.668
222.580
Sorocaba
1.499.039
1.385.983
1.385.129
1.372.430
1.436.814
Vale do Paraíba
864.256
733.852
819.281
637.179
637.408
ESTADO
11.862.786
11.307.015
10.580.448
10.362.707
10.164.251
(1) correspondem às 10 Divisões Regionais Agrícolas (DIRAs) do período 1973-1984(PETTI et al 2001).
Fonte: Instituto de Economia Agrícola (IEA)

            Porém o maior pecado do referido documento2 consiste em efetuar afirmações equivocadas que reproduzem um velho, ultrapassado e descabido preconceito contra a pecuária estadual, taxada de improdutiva sem qualquer sustentação mais consistente. O referido texto coloca nominalmente que 'áreas de pastagens são de baixíssimas densidades de ocupação para os padrões internacionais (1,4 cabeças de gado/hectare em SP, contra dezenas de cabeças/hectare na Europa). O rebanho vem aumentando mesmo com a redução das áreas destinadas à pecuária. A evolução do rebanho bovino e da área ocupada por pastagens no Estado de São Paulo mostra que há ainda grandes potenciais de ganhos de produtividade, não só nas pastagens como nas demais culturas. Dessa forma, o cumprimento do Código Florestal não afeta negativamente a produção agropecuária do Estado de São Paulo'. Desde logo, há que se rechaçar o equívoco da comparação entre os padrões de lotação das pastagens paulistas e das européias. O padrão produtivo da pecuária a pasto paulista mostra-se muito mais condizente com o respeito à natureza que o sistema estabulado ou semi-estabulado europeu. O boi paulista consiste num animal herbívoro como originado na natureza e não num boi carnívoro, alimentado com farinha de carne como no sistema europeu. Exatamente essa prática na Europa permitiu o surgimento da Encefalopatia Espungiforme Bovinas (Mal da Vaca Louca). A comparação na forma de argumento lança mão de um princípio que nega a necessária convicção de respeito ao meio ambiente, pois corrobora como técnica superior aquela que imputa significativa agressão à vida animal, negando-lhe a sua essência originalmente herbívora.
            Por certo, o processo de modernização da pecuária bovina paulista se mostra acelerado, impulsionado pela pressão das mudanças na composição de culturas desde o início dos anos 1970. Mas isso não significa que tenha condições de suportar, mesmo em 30 anos, a perda dos 3,7 milhões de hectares que são necessários para a compensação das áreas de reserva legal no total dos 22,0 milhões de hectares das propriedades rurais paulistas na forma determinada pelo Decreto n° 50.889/2006. Se aceita a tese da persistência de pecuária de baixa produtividade, os 10,2 milhões de hectares das terras agropecuárias paulistas ocupadas com pastagens haveriam de ser reduzidos em 36,3%, tomando a média do triênio 2002-2004 (tabela 3 ), o que implicaria em profundas perdas de renda numa atividade em que São Paulo detêm a liderança absoluta nas exportações brasileiras. Isto porque, a recomposição, se não for feita em cima das pastagens, teria de ser realizada nas áreas ocupadas com cana em Ribeirão Preto e demais espaços canavieiros; laranja em Bebedouro e demais municípios citrícolas; café em Franca e outras localidades cafeeiras; milho nas diversas regiões; feijão no Sudoeste Paulista; banana no Vale do Ribeira, etc.; cada qual nas regiões onde essas lavouras estão concentradas. De qualquer maneira, com sensíveis perdas de ocupação econômica do solo. O desconhecimento por parte do documento de defesa2 dessa complexidade da diversidade regional da agropecuária paulista, bem como a própria especificidade regional da aplicação do Decreto n° 50.889/2006 que define a recomposição a nível de bacias hidrográficas e ecossistemas semelhantes, fragiliza de forma definitiva o argumento em prol da manutenção da vigência do referido instrumento legal. Se os argumentos são esses, pela sua inconsistência, a revogação deve ser realizada no menor período de tempo possível4.

__________________________
1 O texto citado, com argumentos contrários ao Decreto, foi publicado oficialmente pelo Instituto de Economia Agrícola (IEA). Ver GONÇALVES, José Sidnei & CASTANHO F°, Eduardo Pires Reserva legal: obrigatoriedade e impactos na agropecuária paulista. IEA- APTA, São Paulo, Junho de 2006 (Publicado em http://www.iea.sp.gov.br).
2 O referido documento de defesa do Decreto n° 50.889/2006, na versão a que os autores tiveram acesso, não tem autoria definida, mas está sendo distribuído e seus argumentos multiplicados em várias discussões sobre o tema.
3 A regionalização do Estado de São Paulo sofreu intensa modificação nas últimas décadas, daí escolheu-se para permitir uma visão da evolução no tempo, a estrutura de divisões regionais agrícolas que prevaleceu no período 1973-1984. Ver: PETTI, Regina H. V. et al Evolução da estrutura regional da Secretaria de Agricultura e Abastecimento e atual divisão político-administrativa do Estado de São Paulo. Revista Informações Econômicas 31(12): 23-48. 2001.
4 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP- 68/2006.

Data de Publicação: 05/07/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Eduardo Pires Castanho Filho (castanho@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor