Fora do PAC, a agropecuária empaca?

            A recente edição do Programa de Aceleração Econômica (PAC) pelo Governo Federal não trouxe qualquer medida direta de estímulo à agropecuária. Por ser esse segmento de produção no campo parte integrante do complexo produtivo da agricultura, do ponto de vista objetivo, a agropecuária foi posta fora do PAC enquanto programa de ações públicas direcionadas ao investimento. 


            Talvez isto se deva ao fato de que os principais pontos de estrangulamento desse segmento da agricultura brasileira não estejam associados à questão dos investimentos na sua capacidade produtiva, dado que nenhuma das últimos safras de grãos conseguiu atingir o recorde da safra 2002-2003 que produziu 124 milhões de toneladas desse conjunto de produtos. Logo, haveria capacidade produtiva a ser utilizada, estimando-se que em condições de preços remuneradores se possa atingir uma colheita maior que 135 milhões de toneladas de grãos. 


            Por certo, a agropecuária brasileira não se configura apenas numa agropecuária de grãos, mas abrange outros segmentos essenciais como a pecuária, a cana para indústria, as lavouras florestais para papel, celulose e madeira, a laranja para sucos cítricos, as frutas de mesa e as olerícolas frescas, num amplo arco de atividades que não estão em crise. Assim, a maior gravidade concentra-se exatamente nos grãos e fibras e isso tem contornos regionais muito nítidos. 


            Pois bem, para o conjunto da agropecuária paulista não faz sentido falar em crise, uma vez que no território estadual estão concentrados os produtos agropecuários com preços mais remuneradores no mercado internacional. Em São Paulo, o principal segmento agropecuário afetado por crise consiste na seqüência de produção de carne bovina, da qual o Estado é o principal exportador dentre as unidades da federação. 


            E a crise desse segmento agropecuário não tem origem na mesma causa da crise dos grãos e fibras, mas é derivada da fragilidade do aparato regulatório nacional da qualidade de produtos e processos, tanto em termos normativos quanto operacionais, o que acabou levando à ocorrência e detecção de foco de febre aftosa em Mato Grosso do Sul. Fruto disso, mais de meia centena de nações embargaram a compra de carne bovina de algumas unidades da federação brasileira, com os principais importadores incluindo as originárias de frigoríficos paulistas. 


            Assim, a crise da pecuária de corte paulista não tem origem dentro do território estadual. Recentemente, foram liberados os principais embargos, criando condições para a retomada das exportações paulistas. Mas a concretização dessa retomada exige tempo e não se tem certeza de que isso garanta a ocorrência da plenitude da situação anterior. Como as vendas externas da carne bovina brasileira se mantiveram em volume e valor, carnes brasileiras de outras origens substituíram a paulista no atendimento da demanda. 


            Os paulistas têm pouco a reclamar da denominada crise agropecuária brasileira que se configura como uma crise de grãos e fibras com localização territorial definida. Mas, assim como a agropecuária não se resume a grãos, a agricultura não se resume à agropecuária. A agricultura paulista é afetada pela menor venda de bens de capital e insumos, uma vez que essa agroindústria paulista supre a modernidade das agropecuárias das demais regiões brasileiras com esses elementos inovativos estratégicos. 


            Da mesma forma, a agricultura paulista configura-se como um setor agroindustrial exportador, no qual mais de dois terços das vendas externas se constituem de produtos com alguns nível de agregação de valor. A agricultura paulista, pela extensão de seu processo de industrialização, forjou uma eficiente estrutura agroindustrial de processamento, tanto para bens intermediários quanto de bens finais. Logo, as condições gerais da economia afetam diretamente esse principal segmento produtivo paulista. 


            Trata-se assim de colocar a questão da crise agropecuária brasileira dentro de uma ótica consistente com a realidade quando se visualiza a agricultura paulista. Em termos diretos, a agropecuária paulista não está em crise mas a agricultura paulista está. Isso precisa ser entendido com nitidez para que seja analisado o PAC. Os principais segmentos agropecuários paulistas não exigem medidas capazes de alavancar investimentos, já que estão ocorrendo em volumes substanciais e farão crescer a participação da agropecuária paulista na agropecuária brasileira. 


            Os problemas agropecuários paulistas estão noutra agenda, muito deles produzidos exatamente pelo ritmo dos investimentos em novas usinas e outras agroindústrias. Não enxergar isso consiste numa falta de conhecimento da realidade da agropecuária estadual. Em função disso, mostra-se essencial entender porque uma agropecuária em expansão pode conviver com uma agricultura em crise. Basta ter claro a inserção da agricultura paulista na brasileira pela sua consistente estrutura de produção de bens de capital e insumos e de agregação de valor pela transformação agroindustrial. 


            Ora, a agricultura paulista mostra-se muito maior que sua agropecuária não apenas pela pujança de suas agroindústrias como também pela oferta de agrosserviços modernos. É preciso entender como se estrutura o fundamental do padrão de financiamento da agropecuária brasileira de grãos e fibras e se entenderá como São Paulo é afetado. Os recursos oficiais do governo federal atendem a algo em torno de um terço do necessário para o custeio da safra de grãos e fibras. Dois terços são obtidos por meios de acesso ao mercado de títulos financeiros e outros mecanismos de venda antecipada. 


            E quem banca isso? Quem são os financiadores em última instância dessa agropecuária brasileira de grãos e fibras? São as agroindústrias de bens de capital e insumos que 'vendem financiamento' para garantir mercado para seus produtos e as agroindústrias processadoras que fazem 'compra antecipada' de matérias-primas. E onde estão as principais empresas desses segmentos agroindustriais? Em São Paulo. E onde está localizado o núcleo estratégico do mercado bancário e financeiro? Em São Paulo. 


            Aí então está a resposta do porquê uma agropecuária estadual 'que vai de vento em popa' convive com uma agricultura paulista em crise. Por certo, há problemas localizados na agropecuária paulista, mas não são expressivos em proporção econômica e decorrem de razões muito distintas da crise dos grãos e fibras. É que a agricultura de São Paulo, pela sua modernidade estrutural, consiste na viga sustentadora dos agronegócios em todo Brasil. Não enxergar isso não apenas impede que se entenda o conteúdo da crise da agricultura paulista como certamente levará a propostas sem consistência para enfrentá-la. 


            Dessa ótica, o endividamento da agropecuária, mesmo que de grãos e fibras, interessa a São Paulo pois afeta diretamente sua economia. E o PAC não enfrentou a necessidade de eqüacionamento desse elemento crítico para o desempenho desse segmento da agricultura. Interessante fazer um paralelo entre a dívida pública interna em relação ao produto interno bruto (PIB) e a dívida agropecuária como proporção do respectivo PIB.
            Os economistas são unânimes quanto ao fato de que deva haver uma tendência descendente da relação Dívida/PIB. Tal fato se mostra fundamental para que as taxas de juros recuem substancialmente e, ao gastar menos recursos públicos com juros, podem se aumentar os investimentos públicos e reduzir a carga tributária. 


            O mesmo ocorre com a dívida rural que, como proporção do PIB agropecuário, supera em muito a proporção da dívida pública em relação ao PIB brasileiro. E, se considerado o fato de que essa dívida rural se concentra em alguns segmentos agropecuários como grãos e fibras, as proporções do endividamento assumem níveis astronômicos. 


            Da mesma forma, há que reduzir o grau de endividamento para que as taxas de juros do financiamento agropecuário com recursos privados recuem. E sem isso há obstáculos para um ritmo acelerado de crescimento da produção agropecuária. Logo, por estar fora do PAC, nesse aspecto a agropecuária de grãos e fibras empaca no seu ritmo de crescimento, levando consigo amplos segmentos da agricultura brasileira, em especial da paulista por ser fornecedora de insumos estratégicos e processadora de matérias-primas. 


            Mas é preciso frisar o fato de que, se o endividamento agropecuário está fora do PAC, não estão garantidas as bases para um vigoroso processo de crescimento da economia brasileira. A agricultura consiste não apenas no principal setor econômico no plano da dinâmica mas, principalmente, garante a proporção esmagadora do superávit comercial brasileiro. 


            Ressalte-se em contraponto que os investimentos em infra-estrutura e logística inseridos no PAC são fundamentais para a redução dos custos de transação da agropecuária, favorecendo de forma nítida a descentralização agroindustrial, em especial no primeiro processamento, ao reduzir desnecessários custos de transportes. Isto, além do escoamento da produção e sua exportação. 


            A malha de transporte modernizada produziria vantagens alocativas fundamentais para a competitividade da agricultura brasileira ao favorecer um avanço substancial na sua integração entre os vários territórios. Assim, realizado o PAC, a agricultura brasileira passa a ter caminhos sólidos e energia para mover-se como motor fundamental da economia continental brasileira, incorporando amplos rincões territoriais distantes. E isso não é pouco, e a seriedade de propósitos manda reconhecer tal fato. 


            Também há que se considerar como ponto efetivo do PAC, no que diz respeito à agricultura, a reestruturação do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, numa atividade cujo futuro enseja a necessidade de contratos consistentes com a modernização dos mecanismos de coordenação vertical. Ou seja, há medidas estruturantes interessantes no PAC. 


            Outras das críticas mais contundentes ao fato de a agricultura estar fora do PAC consiste em três elementos, dos quais dois realmente não teriam sentido ser considerados num programa de investimentos: câmbio e juros. O outro - a desoneração fiscal -, apesar de estar no PAC, não contemplou a agricultura. 


            Entretanto, ao tomar em primeiro lugar a questão tributária, há que se conhecer a profundidade da questão fiscal da agricultura, para que seja feita uma crítica adequada às medidas governamentais. A colocação mais contundente refere-se à não-inclusão da agricultura na desoneração do PIS/COFINS realizada pelo PAC. Isto poderia ser feito, mas a questão tributária crucial para a agricultura brasileira seria essa? 


            De forma alguma, conquanto isso seja importante, especialmente para a agricultura de São Paulo como núcleo moderno da agricultura continental brasileira. A reforma tributária exige a consideração de pontos muito mais amplos e que são essenciais para a integração setorial. Há que se ter em conta a insustentabilidade de manutenção da expansão lastreada em renúncias fiscais (guerra fiscal) na mesma medida em que as crises intermitentes da dívida rural exigem somas expressivas de recursos públicos. 


            Na atual conjuntura de endividamento rural, faz sentido, num programa de investimentos como o PAC, não estimular de forma desordenada mais investimentos na capacidade produtiva rural, exatamente no setor agropecuário que teria realizado 'sobre-investimento em máquinas e equipamentos' nos anos anteriores à crise. Aliás, isto constitui parte integrante do próprio conteúdo do nível do endividamento. 


           Tudo isso, contudo, não descarta a necessidade de um PAC que enfrente os limites de estruturação de um novo ciclo de desenvolvimento da agricultura brasileira. 


            Fora do PAC, a agropecuária empaca em níveis muito inferiores às suas potencialidades. 


            Isso, não em razão do desenho do PAC, mas exatamente de suas virtudes, pois, ao se assegurar o fornecimento de energia e transportes, há que se garantir incrementos de produção capazes de ampliar a produção da riqueza em níveis compatíveis com a manutenção das metas fiscais. Noutros termos, apenas o PAC mostra-se insuficiente para ensejar a necessária retomada do dinamismo setorial, de forma a cumprir o seu papel na retomada do desenvolvimento.1
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1 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-06/2007.

Data de Publicação: 29/01/2007

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor