O Poder de Compra sob as Luzes da Ribalta

            A literatura microeconômica, na maior parte das vezes, enfatiza o poder de mercado (ou poder de monopólio) em detrimento do poder de compra. Em linhas gerais, o poder de mercado se caracteriza pelo fato de a empresa impor o preço de determinado produto junto aos consumidores acima daquele preço que prevaleceria no modelo de concorrência perfeita. Diante de uma situação de poder de monopólio, o preço cobrado pela empresa é superior ao seu respectivo custo marginal de produção. Em função desse fato, para fixar seu preço de venda, a empresa utiliza a fixação de markup (ou margem de comercialização)1.

            Por sua vez, conforme Motta (2004)2, a capacidade de uma empresa em praticar preços elevados também depende do grau de concentração dos compradores. Uma firma tem melhores condições de exercer o poder de mercado se há elevado número de consumidores pulverizados do que naquelas situações em que há poucos compradores3. Um grande comprador pode fazer uso de seu poder de barganha para estimular a competição entre vendedores dispersos, como, por exemplo, ameaçando trocar de fornecedor ou ameaçando verticalizar sua produção de insumos.

            Em relação ao denominado poder de compra4, especificamente no caso do Brasil, esse tema foi, aparentemente, apresentado pela primeira vez em Rangel (1986)5. No início dos anos 60s, a economia brasileira apresentava um quadro de estagnação conjuntamente com tendência de elevação da taxa de inflação. Em função desse quadro, o papel do setor agrícola dentro do processo de desenvolvimento econômico passou a ser questionado, pois esse segmento não estaria cumprindo o papel que lhe cabe em relação ao processo de desenvolvimento econômico6 do país, qual seja, produção de quantidade adequada de alimentos; liberação de mão-de-obra para o setor industrial; geração de divisas via exportações; transferência de capital, via confisco cambial para o setor industrial; e criação de demanda tanto de produtos agrícolas quanto industriais, pois o setor agrícola apresentava baixa produtividade relativamente ao setor industrial, tornando-se prioritária sua modernização.

            A partir dessa constatação, iniciou-se intenso debate sobre como o Estado deveria intervir no setor agrícola para elevar sua produtividade. Desse debate, basicamente, emergiram duas correntes de pensamentos antagônicas. A primeira, denominada estruturalista7, defendia a intervenção direta do Estado para reestruturar a propriedade da terra, ou seja, via um amplo programa de reforma agrária, logo, o problema da baixa produtividade agrícola relacionava-se com a estrutura fundiária no campo. A segunda linha de pensamento, denominada de Neoclássica8, pregava que a melhor solução para o segmento agrícola residia na formulação pelo Estado de uma política de estímulo à produtividade via choques tecnológicos deixando intacta a estrutura fundiária e concentrando esforços nos grandes e médios produtores; que são aqueles que têm melhores condições de absorver novas tecnologias.

            Uma terceira vertente para explicar o desempenho insuficiente do setor agrícola foi proposta por Rangel (1986). Segundo esse autor, o fraco desempenho do setor agrícola devia-se à sua própria estrutura de comercialização de produtos agrícolas, a qual era muito oligopolizada (poucas empresas). As empresas de comercialização compravam toda a produção a preços baixos e revendia a preços elevados aos consumidores. O oligopólio-oligopsônio deprime e desorganiza continuamente a produção, tornado-a escassa e aproveita-se da inelasticidade da demanda impondo preços extorsivos ao consumidor. Portanto, o problema devia-se menos à estrutura fundiária e mais ao setor de comercialização, que era oligopolizado e impunha preços baixos aos produtores, desestimulando a oferta de alimentos e elevando os preços em nível de consumidor. Não havia inelasticidade da oferta agrícola como sugeriram os Estruturalistas, pois seria possível aumentar a oferta de alimentos reformulando o setor de comercialização, configurando, dessa forma, o poder de compra do setor de comercialização frente aos produtores agrícolas.

            Recentemente, em função do processo de globalização, a questão do poder de compra ganhou novo contorno, saindo unicamente da esfera de relacionamento entre produtores agrícolas e empresas de atacado9 e passou a abranger o relacionamento entre empresas de atacado e varejo.

            No caso do Brasil, dada a globalização, o processo competitivo entre empresas ganhou maior dimensão a partir da década de 1990. Entre os fatores que condicionaram essa situação, tem-se o maior grau de abertura da economia em relação ao comércio mundial no início da referida década, processo que foi acentuado com a consolidação do Mercado do Cone Sul (MERCOSUL) conjuntamente com o sucesso da estabilização de preços da economia proporcionada pela implementação do Plano Real, ambos em meados da década de 1990. Essa conjunção de fatores mais o intenso processo de urbanização e a crescente inserção da mulher no mercado de trabalho alteraram significativamente as estruturas de consumo e comercialização de produtos alimentares no Brasil.

            Um aspecto relevante em relação à comercialização de produtos alimentícios reside no intenso processo de concentração que está ocorrendo no setor de supermercados, principalmente em função da entrada do capital estrangeiro nesse segmento, fator que elevou o seu poder de compra frente às indústrias. Conforme Cavalcante (2004, p. 3)10, no 'Brasil, essa relação desbalanceada e favorável à indústria começa a se inverter na década de 90, fruto de uma série de fatores conjunturais, dentre os quais pode-se destacar a abertura da economia, que permitiu às empresas comercializarem produtos importados, a entrada de diversos grupos varejistas internacionais (exemplos: o norte-americano Wal-Mart e os portugueses Jerônimo Martins e Sonae) no mercado brasileiro e, principalmente, as fusões e aquisições ocorridas no setor que levaram a um aumento de concentração. Apenas para se ter uma idéia, há que se recordar que, em 1995, as cinco maiores empresas varejistas atuantes no mercado brasileiro detinham 28% das vendas anuais do setor, enquanto que em 2001 referido índice já alcançava a cifra de 39%'.

            Especificamente, em relação ao segmento varejista, as principais práticas utilizadas para exercer seu poder de compra frente aos seus fornecedores, conforme apresentado em Dobson; Waterson; Chu (1998)11, abrangem, de maneira geral, 10 categorias12: 1) cobrar dos fornecedores para colocar seus respectivos produtos nos melhores lugares nas gôndolas; 2) acordos de exclusividade para distribuição dos produtos, visando, dessa forma, obter concessões de seus fornecedores; 3) comportamento condicional de compra, isto é, o comprador somente compra o produto se o fornecedor apresentar significativas concessões para o comprador; 4) contratos de exclusividade, dessa forma, no início, o comprador oferece acordos vantajosos para o fornecedor, visando, assim, 'capturar' esse último, aumentando sua dependência, para, posteriormente, forçar condições menos vantajosas de negócios para o fornecedor; 5) o varejista se engaja na produção de produto com a própria marca para concorrer com os produtos do fornecedor; 6) marketing conjunto, o comprador obriga o fornecedor a praticar descontos para grandes volumes de produto somente em sua própria rede, diferenciando-o dos demais concorrentes no varejo; 7) compra predatória de insumos, ou seja, o monopsonista (ologopsonista) expande suas compras de tal forma a induzir ao aumento de preços, forçando assim, na elevação de custos dos rivais, obrigando-os a abandonar o mercado, e, também, em muitos casos, funciona como barreira à entrada de possíveis firmas entrantes; 8) capacidade estratégica de compra, nesse caso, especificamente no segmento varejista, verifica-se a presença de grandes empresas de capital nacional e internacional, as quais operam em um mercado concentrado, e tem papel fundamental, pois consistem, praticamente, no único canal de ligação entre os produtores e consumidores. Essa situação proporciona elevado poder de compra do segmento varejista relativamente aos seus fornecedores; 9) relacionamento recíproco, em que o comprador monopsonista celebra acordos para comprar de um determinado fornecedor, porém, sob a condição de que esse último também adquira produtos do primeiro; 10) compromissos de negócios, tais como, divisão de gastos com promoções de produtos entre os fornecedores e varejistas.

            O poder de compra, conforme Dobson; Waterson; Chu (1998), consiste naquelas situações em que um determinado comprador consegue condições mais favoráveis frente a seus respectivos fornecedores do que naqueles casos em que prevalece o regime de concorrência perfeita. Sendo assim, o poder de compra está diretamente associado ao fato de os agentes econômicos exercerem suas respectivas posições dominantes de forma a alterar e/ou influenciar não somente as quantidades, mas também os preços de seus respectivos insumos. Como resultado dessa posição dominante, os 'compradores com elevado poder de mercado poderão deprimir substancialmente preços e quantidades contratados com seus fornecedores. Por outro lado, firmas com reduzido poder de mercado como compradoras não terão a capacidade de determinar preços ou quantidades dos insumos que adquirem' (GOLDBERG, 2006, p.141)13.

            Portanto, dada a dinâmica econômica, observa-se tendência do segmento varejista moderno no Brasil em elevar seu respectivo poder de compra frente aos seus fornecedores. Sendo assim, as autoridades de defesa da concorrência, Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), Secretaria de Direito Econômico (SDE) e Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE), devem ficar atentas a esse processo de concentração, pois isso pode ter reflexos relevantes não somente sobre o bem-estar dos consumidores, como também sobre o bem-estar total.
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1A fórmula do markup é a seguinte: P = CMg/(1+(1/Ed)), onde P representa o preço de venda do produto, CMg é seu custo marginal de produção e Ed é a elasticidade-preço da demanda da empresa (não do mercado) e 1/Ed é o inverso da elasticidade preço da demanda da empresa. Quanto maior a elasticidade-preço da demanda da empresa, mais o termo 1/Ed se aproxima de zero e como resultado, preço igual a custo marginal, configurando uma estrutura de concorrência perfeita.
2MOTTA, M. Competition policy: theory and practice. United States of America: Cambridge University Press, 2004. p. 616.
3GALBRAITH (1952) é provavelmente o primeiro autor que argumentou que o poder compensatório dos compradores pode restringir o poder de mercado dos vendedores. GALBRAITH, J. K. American capitalism: the concept of countervailing power. New Brunswick, USA: Transaction Publishers, 2006. 208 p.
4A teoria relacionada com o poder de compra será detalhada mais adiante.
5RANGEL, I. A inflação brasileira. 5. ed. São Paulo: Bienal, 1986. 150 p.
6Detalhes sobre as funções da agricultura no processo de desenvolvimento econômico podem ser encontrados em CASTRO (1969). CASTRO, A. B. de. 7 Ensaios sobre a economia brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 1969. v. 1, 191 p.
7Em linhas gerais, são três teorias relacionadas à estrutura do setor agrícola brasileiro, as quais foram desenvolvidas por FURTADO (1972), denominada Estruturalista; GUIMARÃES (1981), chamada de Tese Feudal e JÚNIOR (1966), intitulada Crítica a Tese Feudal. No entanto, apesar de enfoques diferenciados em relação à agricultura, todas convergem para o mesmo resultado, podendo todas ser denominadas como estruturalistas, pois, a baixa produtividade apresentada pela agricultura residia em relação à questão agrária e não agrícola. FURTADO, C. A estrutura agrária no subdesenvolvimento brasileiro. In: ANÁLISE do modelo brasileiro. São Paulo: Civilização Brasileira, 1972. 122 p. GUIMARÃES, A. P. Quatro séculos de latifúndio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. 255 p. PRADO JÚNIOR, C. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966. 332 p.
8Detalhes sobre o modelo neoclássico de modernização do setor agrícola no Brasil podem ser encontrados Pastore (1973), Pastore; Alves; Rizzieri (1974) e Santos (1986). PASTORE, A. C. A oferta de produtos agrícolas no Brasil. In: PASTORE, J. Agricultura e desenvolvimento. [S.l.:s.n.], 1973. p. 113-49. PASTORE, A. C.; ALVES, E.; RIZZIERI, J. A inovação induzida e os limites à modernização na agricultura brasileira. Brasília: EMBRAPA, 1974. (Teoria e Metodologia, v. 2). SANTOS, R. F. dos. Presença de vieses e mudança técnica na agricultura brasileira. São Paulo: IPE/USP, 1986. (Ensaios Econômicos, 63).
9Outro mercado em que há presença explícita do poder de compra é o mercado de trabalho.
10CAVALCANTE, L. B. Poder de compra no varejo supermercadista: uma abordagem antitruste. Brasília, fev. 2004. Disponível em: <http://www.seae.fazenda.gov.br/central_documentos/textos_artigos/2004/?searchterm= Leia%20cavalcante>. Acesso em: 4 jun. 2007.
11DOBSON, P.; WATERSON, M.; CHU, A. The welfare consequences of the exercise of buyer power. London: Office of Fair Trading, Sept. 1998. (Research Paper, 16).
12Aqui são apresentadas apenas algumas das estratégias para o varejista exercer seu pode de compra frente aos seus fornecedores. Uma lista mais detalhada dessas estratégias pode ser encontrada em CAVALCANTE (2004), op. cit. nota 10.
13GOLDBERG, D. K. Poder de compra e política antitruste. São Paulo: Singular, 2006. 309 p.

Palavras-chave: poder de compra, concentração.

Data de Publicação: 05/07/2007

Autor(es): Mario Antonio Margarido (mamargarido@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor