Difícil liberalização do mercado internacional de produtos da agricultura

            As perspectivas de desenvolvimento da agricultura brasileira estão condicionadas à liberalização do mercado internacional para produtos setoriais, dada a magnitude da importância nas exportações para alavancar a renda setorial. Tanto assim, que na ordem do dia das reivindicações estão a mudança da política cambial e a redução dos subsídios pelas nações importadoras, em especial dos dois maiores mercados mundiais representados pelos Estados Unidos da América (EUA) e pela União Européia (UE).

            As dificuldades maiores decorrem do fato, nem sempre levado em conta, de que nesses espaços econômicos estão localizadas as duas maiores agriculturas mundiais e que o Brasil constitui-se num país de agricultura desenvolvida (um dos New Agricultural Countries-NACs). Ainda que seja necessário persistir nesse objetivo de ampliar a liberalização de mercados no exterior, há que se ter sempre em mente o tamanho dos obstáculos a serem superados. Uma leitura de algumas notícias com posicionamentos de autoridades brasileiras, norte-americanas e européias mostram com nitidez os desafios para a construção de expectativas mais favoráveis para o futuro.

            Na proximidade da visita do Presidente dos EUA ao Brasil, no primeiro semestre de 2007, em cuja agenda constou a busca de aproximação e mesmo formalização de parcerias no campo de biocombustíveis, os interesses se mostraram antagônicos com difícil superação das diferenças no curto prazo. O presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, 'descartou a viabilidade de firmar grandes contratos de exportação de álcool para os Estados Unidos enquanto a tarifa de importação americana permanecer no patamar atual'. Para ele, 'é praticamente impossível fazer negócio com a taxação de US$0,54 por galão (3,78 litros)'¹ .

            A resposta norte-americana veio tão imediata quanto contundente, deixando claro que a referida visita presidencial não decidiria que conduzisse à suspensão dessa barreira do mercado dos EUA ao álcool brasileiro. De forma clara Stephen Hadley, Conselheiro da Segurança Nacional dos EUA, afirmou que 'a tarifa não está em negociação e não temos a intenção de propor qualquer alteração. Isso é um assunto do Congresso'2. Noutras palavras, busca-se uma cooperação EUA/Brasil para terceiros mercados e para uma ação interna à América Latina, pouco avançando em destravar o mercado norte-americano que, na verdade, consiste no mercado potencial grande importador. Tanto assim, que na finalização do ano de 2007, observou-se uma estagnação nas vendas externas do etanol brasileiro, inclusive para os Estados Unidos.

            Noutra frente, na Europa mesmos parceiros históricos como a França ensejam dificuldades para a liberalização dos mercados de produtos agropecuários, o que se mostra consistente com a defesa do politicamente forte segmento rural francês que se constitui o mais relevante do continente europeu. Não estando disposto a abrir esse mercado estratégico, o Ministro da Agricultura francês chamou o Brasil de 'depredador', em uma referência aos interesses ofensivos do País na luta pela liberalização dos mercados agrícolas na Organização Mundial do Comércio (OMC) 3.

            Isso fazendo coro com o então o Presidente francês Jacques Chirac que 'já havia dado o tom ao declarar que a Europa deveria permanecer ’firme como uma rocha’ em sua posição agrícola'. Isso em plena campanha presidencial, em que o titular da pasta da agricultura afirmou que 'países como Brasil, Argentina, Austrália e Nova Zelândia são as ‘grandes potências agroindustriais’ e ‘depredadores’ no cenário internacional'. Segundo ele, 'esses países gostariam de ter acesso aos nossos mercados, mas sem dar uma contrapartida para que entremos em suas economias'. Como exemplo, para ele, 'uma abertura do mercado de carnes da França para os produtos brasileiros significaria ‘a destruição da pecuária francesa’'3.

            Há também que ser destacado o fato de que, ao contrário do que muitos têm propalado, a política de subsídios à agricultura ainda encontra elevado respaldo social e político no continente europeu. O resultado de 'pesquisa feita pela Comissão Européia, com cidadãos dos 27 países do bloco, mostra que 60% da população defende a manutenção dos altos subsídios ou mesmo um aumento da ajuda estatal'4. Isso apesar da UE ter destinado US$55 bilhões à agricultura durante o ano de 2006, sendo que 45% consideraram o volume adequado, outros 15% apóiam o aumento e apenas 16% acreditam que os subsídios são exagerados. Conquanto tenha reduzido o pleito para aumento dos subsídios em relação à virada do século4, fica nítido o ainda considerável apoio às políticas européias de proteção da agricultura.

            Na verdade as duas grandes agriculturas mundiais, a da UE e a dos EUA, travam disputas nos fóruns de negociação internacional, cada qual querendo que o outro desmonte o respectivo sistema de proteção, haja vista que ambas sustentam-se em políticas de subsídios setoriais. Os europeus argumentam que os norte-americanos 'precisam cortar mais seus subsídios agrícolas em prol da conclusão bem-sucedida da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMS)'5. A Comissária Agrícola da Comissão Européia, Mariann Fischer Boel, afirmou que 'a UE está comprometida com as conversações multilaterais, mas acha que os cortes nos subsídios que distorcem o comércio têm de ser recíprocos' 5. E complementou dizendo que 'todos os grandes players devem levar a sério a questão de cortar o apoio doméstico para evitar distorção, e deve existir disciplina verdadeira em relação a todos os subsídios às exportações'5.

            Essas posições das autoridades que formulam e executam políticas para as duas principais agriculturas mundiais, nos casos da européia e norte-americana, correspondem na verdade a resultantes de um amplo e complexo sistema de interesses sociais e políticos internos a cada economia. Tanto assim, que a liberalização de mercados para produtos brasileiros nessas economias quase sempre decorrem de episódios sem controle que promovem necessidade de grandes volumes de importações. Aproveitar essas janelas de oportunidade e firmar-se como fornecedor relevante, representa a alternativa que tem se mostrado mais efetiva.

            Dois exemplos são historicamente elucidativos: as vendas de sucos cítricos para o mercado norte-americano e de carne bovina para os europeus. Nos derivados de laranja, as famosas geadas da Flórida e outros fenômenos naturais promoveram o estímulo para permitir a construção de um competitivo complexo de produtos de suco de laranja concentrado e congelado. A expansão mais recente desse segmento agroindustrial exigiu, contudo, um amplo esforço de diversificação de destinos das exportações, dado que o Governo dos Estados Unidos mantêm inalterada a poderosa barreira de proteção de seu mercado interno, taxando as aquisições de produtos brasileiros. Logo, como em outros segmentos da agricultura, abrir significa impor ônus a relevante segmento interno, daí que as políticas norte-americanas mantêm a proteção tarifária.

            Na carne bovina, a oportunidade decorreu também de fenômeno aleatório, na medida em que o surgimento do problema sanitário representado pela Encefalopatia Espungiforme Bovina, conhecido como 'Mal da Vaca Louca', representou um duro golpe para a estrutura européia de produção de carne em sistemas de confinamento de animais, que eram alimentados, entre outros ingredientes, com farinha de carne. Em função da necessidade de combater essa doença nos rebanhos de vários países do continente europeu, é que se abriram as portas para que a carne brasileira produzida a pasto, pudesse ser exportada.

            Da mesma forma, a detecção do mesmo problema nos Estados Unidos permitiu que muitos mercados antes ocupados pela carne norte-americana pudessem ser abastecidos pelo Brasil. Entretanto, há que se ter cuidados com as perspectivas futuras pois, não apenas cresce na Europa pressões para tolher com restrições sanitárias a entrada da carne brasileira6, como faz parte da estratégia da política externa dos EUA, retomar mercado para sua carne, caso das recentes demandas sobre o Japão para que eliminem barreiras impeditivas, erguidas quando do surgimento do problema sanitário norte-americano.

            Dessa maneira, o considerável avanço das exportações da agricultura brasileira nos últimos anos, quando o setor ampliou de forma significativa o saldo comercial nas transações com o exterior, foi construído ainda que na vigência de proteções nos dois principais mercados (UE e EUA). A diversificação de destinos, aproveitando as maiores taxas de crescimento de países emergentes como a China e as reduzidas janelas de oportunidades nas principais nações capitalistas, explicam o sucesso da inserção externa da agricultura brasileira.

            Noutras palavras, trata-se de um fenômeno determinado essencialmente pela demanda que produziu um ajuste estrutural na capacidade de oferta brasileira e não de decisões multilaterais, que alterassem de forma significativa os mecanismos de regulação do comércio internacional de produtos da agricultura.

            Há que se ter nítido que os obstáculos não são determinados por meras decisões políticas comerciais nos principais mercados capitalistas. Há sustentação estrutural para tais postulações que não devem ser esquecidas. No caso norte-americano, ainda que seja a principal economia industrial do mundo, a agricultura tomada no conceito de cadeia de produção ('farm to table') se mostra um setor nada desprezível em termos da produção da riqueza nacional (emprego e renda). E, se avaliada no sentido da imensa economia continental do Atlântico ao Pacífico, em termos de representatividade geográfica (por estar presente em praticamente todo quinhão territorial norte-americano), configura-se como principal setor econômico. Noutras palavras, para imensos espaços territoriais dos EUA, a agricultura constitui-se, na praticamente única, atividade econômica relevante.

            E essa representatividade geográfica tem seus interesses imbricados com o de amplos segmentos da economia norte-americana. O financiamento da produção, com base em títulos fundiários negociáveis no mercado secundário lastreia a existência de milhares de bancos regionais e locais, nos quais esses títulos são preponderantes nas respectivas carteiras. Ademais, parcelas significativas das safras são custeadas com vendas antecipadas, também lastreadas em derivativos agropecuários, que fazem parte das carteiras de fundos de pensões. Um sistema de seguro sustenta a proteção à agricultura quanto a fenômenos climáticos na mesma medida em que as transações em bolsas reduzem os riscos de preços.

            Essas características não podem ser entendidas como mera inserção da agricultura no mercado financeiro como por vezes se afirma. A 'financeirização' da agricultura funciona como uma considerável ampliação dos interesses envolvidos na agricultura norte-americana que não são apenas os dos agropecuaristas que lavram a terra. Há interesses de uma poderosa agroindústria de insumos e máquinas, de uma portentosa agroindústria processadora que imbrica com a agroindústria de alimentos, ao mesmo tempo em que isso se irradia por um amplo sistema financeiro que vai dos bancos regionais às bolsas, passando pelas seguradoras. Além disso, há ainda o interesse de última instância de uma rede de fundos de pensão que adquiriram derivativos agropecuários e títulos fundiários. E esses portadores de títulos financeiros não querem a posse da terra, mas a renda monetária dos títulos, daí também o interesse em que agricultura vá bem. Percebe-se, portanto, que há mais interesses envolvidos na agricultura norte-americana que a visão restrita e tradicional da produção no campo consegue captar.

            Uma quebradeira em série na agricultura dos EUA teria impactos macroeconômicos muito mais profundos e irradiados que a crise imobiliária verificada em 2007 causou e exigiu bilhões de dólares dos bancos centrais das nações capitalistas. Aliás, a construção institucional se mostra muito similar. Daí que a abertura desses mercados enfrenta obstáculos mais relevantes que uma leitura superficial de mera decisão protecionista. Há mais a ser protegido que uma dada lavoura ou determinada criação, cada qual com alta representatividade local ou regional, face à extrema especialização regional inerente ao padrão agrário dominante, com o que haverá sempre a associação entre a resistência à retirada de subsídio de algum produto da agricultura e os efeitos devastadores sobre dado espaço territorial interno.

            A isso deve ainda ser agregada uma outra razão de cunho social que vale para a realidade norte-americana, mas que se mostra mais nítida na sociedade européia. Trata-se do fato de que para sociedades de alta renda média e com distribuição menos iníqua, o percentual dos dispêndios familiares com alimentação se mostra baixo ainda que em termos absolutos possam ser elevados para os padrões brasileiros. Uma família que gasta US$1000 em alimentação a partir de uma renda de US$10000 (compromete apenas 10% com esse item), enquanto que para famílias de US$2000 de renda isso significativa metade do que ganha. Essa condição em sociedades que foram marcadas por episódios históricos de fome extrema como a da Europa produz como efeito elevada sustentação social e política para as práticas de subsídios, tanto assim, que a mais relevante política comunitária consiste na Política Agrícola Comum (PAC). Por esse ângulo, os espaços para avanços são reduzidos.

            Em síntese, a discussão dos obstáculos à abertura do comércio internacional de produtos da agricultura exige, que sejam levados em consideração uma série de elementos estruturais, sociais e políticos que transcendem os limites setoriais, envolvendo interesses internos mais amplos na defesa da política protecionista. Por isso mesmo, o único caminho plausível para as negociações internacionais, para a redução dos protecionismos dados à agricultura, corresponde a perseverar apostando em avanços sucessivos ainda que pouco expressivos em termos de ampliação do comércio. Conquanto sejam potencias industriais a UE e os EUA são antes de mais nada economias continentais que são potencias na agricultura. E neste setor o emaranhado de interesses locais envolvendo ampla rede de grupos sociais se mostra muito mais complexo que uma leitura apressada e superficial das respectivas realidades possa indicar. Por isso, o caminho mais promissor para a agricultura brasileira consiste em amplificar destinos, forjando acordos bilaterais, principalmente, com nações emergentes, que centrar sua estratégia somente em negociações multilaterais.
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1TARIFA dos EUA para álcool dificulta negócios, diz Gabrielli. Disponível em:
< http://www.estadao.com.br/gronegocios/noticias/2007/mar/06/50.htm>. Acesso em: 06 mar. 2007.

2TARIFA do etanol não está em negociação, diz conselheiro dos EUA. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/agronegocios/noticias/2007/mar/06/52.htm >. Acesso em: 06 mar. 2007.
³FRANÇA diz que não dará abertura a produtos agrícolas do Brasil. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/agronegocios/noticias/2007/mar/05/368.htm >. Acesso em: 05 mar. 2007.
460% dos europeus rejeitam corte de subsídios agrícolas. Disponível em:
< http://www.estadao.com.br/agronegocios/noticias/2007/mar/30/50.htm>. Acesso em: 30 mar. 2007.

5UE reitera necessidade de que EUA cortem subsídios agrícolas.Disponível em:
< http://www.estadao.com.br/agronegocios/noticias/2007/mar/06/53.htm>. Acesso em: 06 mar. 2007.

6CARNE brasileira é bombardeada na UE. Disponível em:  < BR > <http://www.zoonews.com.br/noticiax.php?dnoticia=115496>. Acesso em: 2007.

Palavras-chave: comércio exterior, negociações internacionais, políticas agrícolas, liberalização comercial.

 

Data de Publicação: 30/01/2008

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
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