Evolução das Características do Mercado de Leite

            O mercado brasileiro de leite teve muita irregularidade ao longo do tempo, principalmente por conta do tabelamento dos preços do produto desde 1945, ano em que ele se iniciou apenas na capital federal com o objetivo de 'amparar a produção do leite destinado ao consumo do Distrito Federal'1 e garantir o abastecimento. Posteriormente, foi ampliado para outros estados até alcançar todo o País.

            O tabelamento de preços, que na década de 80 atingiu outros produtos lácteos além do leite, estendeu-se até o início dos anos 1990, quando o preço deixou de ser tabelado. Este controle foi profundamente prejudicial ao setor, pois teve como conseqüência a falta de investimentos na produção com dependência das importações e o fortalecimento do mercado informal2.

            A maior preocupação do governo era com o abastecimento. Assim, a principal política para o setor era a formação de estoques por meio da compra de leite em pó para reidratação que, na maioria das vezes, era importado devido aos preços inferiores do mercado externo. Com isso, a concorrência com o produto estrangeiro tornou-se um dos principais obstáculos ao desenvolvimento da pecuária leiteira.

            O fim do controle dos preços na década de 1990, aliado à queda da inflação em 1994 e à abertura do comércio internacional, trouxe mudanças no mercado e no perfil do consumidor, o que possibilitou um crescimento no consumo de leite e seus derivados. No entanto, este aumento não era restrito aos produtos nacionais e industrializados, mas também aos importados e informais.

            Foram dois os pontos que tiveram maior interferência no mercado do produto: a informalidade e o surgimento e crescimento do leite longa vida (UHT).

            A liberação do comércio externo possibilitou a oportunidade de consumo de produtos importados. Se, por um lado, esse fato tornou o consumidor mais exigente em relação à qualidade e também à comodidade (com o leite longa vida), por outro, fez com que ele convivesse com um grande volume comprado na informalidade.

            Ao mesmo tempo, o leite longa vida apresentou uma expansão de seu consumo, e após o Plano Real, conseguiu o aumento mais expressivo entre os lácteos (340%), seguido do iogurte (62%). Esta evolução teve um vínculo direto com a redução de preços desses produtos e o aumento do poder de compra3.

            A mudança aconteceu também devido a uma nova estrutura social com maior participação da mulher no mercado de trabalho, impulsionando o crescimento dos supermercados e facilitando as compras.

            Nesse aspecto, o leite longa vida teve papel importante, já que a possibilidade de estocagem era uma solução para a nova situação da mulher, que tinha menos tempo para fazer as compras da casa. Além disso, contribuiu ainda para fugir da alta da inflação.

            Foi nessa época que houve um aumento significativo no consumo per capita de leite e de derivados, passando da média de 100 l/ano, que se perpetuava desde os anos 1970, para cerca de 140 l/ano4.

            No entanto, no final dos anos 1990 e início do século XXI, outro problema passa a ser grande preocupação ao setor: a informalidade (apesar de controvérsias sobre os números do seu volume comercializado).

            Dados mais recentes da Pesquisa Municipal Agropecuária do IBGE informam que, apesar de haver aumentos e quedas na produção informal entre 1997 e 20055, ela representava cerca de 30% da produção total de leite em 20056.

            Os problemas causados pela informalidade são vários e têm impactos diferentes que atingem desde o Estado, com a sonegação fiscal, até a saúde do consumidor, com a falta de controle sanitário e de tratamento térmico, não tendo acompanhamento das condições mínimas de higiene exigidas para sua produção, captação e transporte, além da falta de pasteurização7. Além do desequilíbrio nas condições de concorrência do mercado, devido ao volume significativo comercializado de forma clandestina.

            Estudo divulgado em 2000 com o apoio da empresa de embalagem Tetra Pak e feito com o consumidor final nos Estados de Minas Gerais e São Paulo, em municípios de importantes bacias leiteiras, aponta as razões pelas quais havia a preferência pelo produto informal. Essa opção ocorria pelo quesito saúde (50%), seguido da aparência (24%) e praticidade (21%). A qualidade e o preço formam o binômio responsável pela preferência do consumidor, o que mostra a força do aspecto cultural na escolha do produto, apesar de o preço ser um fator importante na decisão de compra8.

            Atualmente há indícios de que a informalidade está mais localizada em regiões distantes dos grandes centros urbanos. No entanto, mesmo que a preocupação do setor tenha diminuído em relação à questão, é um tema que ainda merece atenção.

            Há uma compreensão de que a forte concorrência e o crescimento dos laticínios criaram um aumento no processamento de leite sob inspeção federal9, que tem relação com o processo de fusões e concentrações que também ocorreram neste setor.

            No período entre 1999 e 2005, o volume de leite industrializado e inspecionado cresceu 45,3%, chegando a 16 bilhões de litros, por conta do aumento da regulamentação e fiscalização da qualidade de sua produção no País, da diminuição das importações e do aumento das exportações do produto, que deve atender padrões mínimos de qualidade para evitar as barreiras sanitárias.

            O papel do consumidor é fundamental no mercado, pois é ele que tem o poder de decisão de compra. No caso de lácteos, essa decisão de consumo tem uma relação direta com seu poder aquisitivo, influenciada pelo preço relativo dos derivados, frente aos demais produtos.

            Existe uma tendência de retração de consumo de leite pela redução de renda real, motivada por inflação ou pela perspectiva de desaquecimento da economia e provável desemprego, e ainda pelos preços do produto e seus derivados mais elevados que de outros bens e serviços disponíveis10.

            O contrário também ocorre. Se a renda melhora, há uma estabilidade econômica e os preços ficam num patamar médio. O consumo de lácteos torna-se sensível a estes fatores e se amplia consideravelmente.

            O fator elasticidade-renda se mostrou importante ao longo do tempo. Por um bom período, o crescimento da produção nacional foi inferior ao da demanda, levando o Governo a importar leite para compensar tal pressão. Essa demanda reprimida é determinante no País, pois se a renda per capita aumentar, pode haver um déficit entre produção e consumo.

            Aspectos como alta da inflação em produtos básicos, semelhante à ocorrida recentemente, afetam diretamente o consumo de lácteos e podem fazer os preços subirem.

            Com o Plano Real, as melhorias significativas no poder de compra do consumidor, devido à estabilização econômica, aumentaram a procura por produtos como iogurte e bebidas lácteas, o que leva a inferir que o consumidor procura aliar, no momento da compra, preço baixo e produto de alta qualidade, além de outros quesitos, como praticidade, valor nutritivo e segurança. No mercado de leite fluido, o crescimento explosivo do consumo de leite tipo UHT foi possível por causa da tecnologia empregada, que tornou viável a produção longe dos principais centros consumidores e o fornecimento a preços baixos, devido a custos inferiores nestas regiões.

            Há de se considerar o papel que o varejo, mais especificamente os supermercados, passou a exercer nesse contexto, obtendo junto aos fornecedores preços competitivos que atendem os consumidores, mas que prejudicam o elo mais frágil da cadeia produtiva de leite, que é o produtor.

            Atualmente, existe uma retração do consumo por conta dos elevados preços do leite, por questões conjunturais, como elevação da inflação, e estruturais, como mudanças no comércio exterior.

            O mercado para o leite e derivados tem condições de expansão, apesar da forte competição com outras bebidas, como refrigerantes, sucos de fruta e de soja. Este crescimento pode ser estimulado a partir de uma atuação conjunta dos diversos segmentos da cadeia produtiva para incentivar o consumidor, mostrando as qualidades do produto. Sem uma ação objetiva para promovê-lo, uma eventual expansão pode se dar apenas em nível suficiente para satisfazer o crescimento vegetativo da população. Aumento de produção com vistas ao mercado externo exigirá esforços também para melhorar a qualidade do produto.
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1 MEIRELES, A. J. A desRazão laticinista: a indústria de laticínios no último quartel do século XX. São Paulo: Cultura Editores Associados, 1996. 268 p.

2BORTOLETO, E. E. et al. Leite: realidade e perspectivas. São Paulo: Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, 1997. 57 p. (Cadeias de Produção da Agricultura, v. 3).

3GOMES, S. T. Cadeia agroindustrial do leite no Mercosul. Disponível em: <http://www.ufv.br/der/docentes/stg/stg_artigos/Art_109%20%20CADEIA%20AGROINDUSTRIAL%20DO%20LEITE%20NO%20MERCOSUL%20(20-9-97).pdf>. Acesso em: 25 fev. 2008.

4Op. cit. nota 3.

5Para efeito de análise considera-se que o leite informal não é só aquele comercializado pelo produtor direto aos consumidores, mas também o transformado em queijos e ainda o consumido diretamente nas propriedades, apesar de serem os dois primeiros que afetam diretamente o mercado.

6MILKPOINT. Mercado informal perde 700 milhões de litros. Disponível em: <http://www.milkpoint.com.br/?noticiaID=33424&actA=7&areaID=50&secaoID=165>. Acesso em: 7 abr. 2008.

7CAMARGO, A. C.; WALDER, J. M. M. Conservação pelo calor: divulgação da tecnologia da irradiação de alimentos e outros materiais. Disponível em: <http://www.cena.usp.br/irradiacao/CONSERVACAO_PELO_ CALOR.HTM>. Acesso em: 14 fev. 2008.

8TETRA PAK. O consumo de leite informal no Brasil. Fevereiro, 2000. Disponível em: <http:www.bebaleite. com.br/materias/1-pesquisa20000801.php>. Acesso em: 16 ago. 2000.

9CONEJERO, M. A.; CÔNSOLI, M. A.; NEVES, M. F. O setor agroindustrial de leite no Brasil. In: CÔNSOLI, M. A.; NEVES, M. F (Coord.). Estratégias para o leite no Brasil. São Paulo: Atlas/PENSA, 2006. p. 154–211.

10MARTINS, P. C. Políticas públicas e mercados deprimem o resultado do sistema agroindustrial do leite. Juiz de Fora: EMBRAPA, 2004. 135 p.

Palavras-chave: leite, consumo, informalidade, leite longa vida.

Data de Publicação: 22/10/2008

Autor(es): Rosana de Oliveira Pithan e Silva (rosana.pithan@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor