Exportação dos agronegócios: superando as falsas dicotomias

            A discussão sobre o papel das exportações na dinâmica econômica brasileira sofreu radical mudança nos últimos dez anos, como resultado das transformações estruturais do capitalismo tardio nacional. O simples contato com os principais textos teóricos mostra a profundidade da mudança conceitual com que são encaradas as exportações e toda a política de comércio exterior desenvolvida pela nação brasileira, se adotarmos como parâmetros as discussões realizadas no contexto dos grandes embates da crise agrária nacional, fixando-se nos anos 60, na virada dos anos 80 e na realidade atual.
            O dualismo entre produtos exportáveis e produtos domésticos, derivado dos distintos processos de formação de preços, representa uma dicotomia fundamental das análises de economia aplicada à agricultura que simplesmente saiu de cena, embora tenha ocupado posição central do debate nos anos 70 e 80. Esse paradigma na verdade já estava presente nas análises da crise agrária brasileira, realizadas na efervescência dos anos 60, mas foi alçado à condição de destaque no plano teórico nos anos 70, persistiu nos 80 e absolutamente desapareceu das argumentações nos anos 90 em diante.
            Os produtos exportáveis seriam aqueles cujos preços se formam no mercado internacional e, em função disso, apresentariam dinamismo tanto pelo incremento de área e produção quanto pela inovação tecnológica que determina elevado ritmo de progresso técnico. Os produtos domésticos seriam aqueles cujos preços se formam no mercado interno, apresentando baixo incremento de área, produção e tecnologias, o que conduz a oferta reduzida desses produtos, gerando escassez e elevação dos preços ao consumidor.
            Ainda que a formação de preços em ambos os tipos de produtos continue a se dar com base nos mesmos pressupostos, as transformações produtivas tornaram impróprias muitas das conclusões quando explicadas com base nesse dualismo. Isto confirma a concepção de que a produção da agricultura responde a preços, sendo inconsistentes as teses defensoras da inelasticidade da oferta, para todo o conjunto de produtos ou para grupos deles em particular.
            Na quadra atual, muito longe das concepções anteriormente associadas à dicotomia entre exportáveis e domésticos1, verifica-se uma eliminação dessa argumentação dualista, com a construção de uma universalidade conceitual de defesa da inserção competitiva dos agronegócios no mercado internacional, numa lógica em que exportar é o que importa. A questão do acesso de camadas da população aos alimentos, ainda presente em importantes faixas de renda, está associada à insuficiência de renda dos que ganham pouco ou não ganham nada face o desemprego.
            Exatamente o emprego passou a justificar as estratégias exportadoras, agora validadas pelo interesse nacional, em especial das camadas sociais sem acesso aos benefícios do desenvolvimento. A exportação passou a ser defendida como instrumento de geração de riqueza e de empregos, logo uma prioridade nacional, uma vez superada a visão dualista, dada a universalidade pró-exportadora das análises da economia brasileira, que trazem inclusive para o primeiro plano um posicionamento mais duro e consistente do Estado Nacional na luta contra os mecanismos protecionistas das agriculturas dos países capitalistas desenvolvidos. Em função disso, desde a metade dos anos 90, período em que foram criados os alicerces do sucesso exportador atual, ficou nítida a estratégia governamental de criação de mercados para produtos brasileiros, de cuja demanda crescente, em escala global, resultariam empregos e renda.
            O detalhamento do perfil do comércio exterior dos agronegócios, entretanto, mostra, da ótica da agregação de valor, uma maior força dos produtos de menor valor agregado, como os básicos, que ainda preponderam nas exportações, enquanto nas importações setoriais prevalecem os manufaturados. Nesse sentido, verifica-se ainda a prevalência do quantitativo sobre o qualitativo no avanço das transações externas dos agronegócios.
            Pode-se notar um avanço das vendas e queda nas compras de manufaturados, mas em níveis que ainda não alteraram o perfil do comércio externo dos agronegócios nacionais, em que quase a metade do que se vende consiste de produtos básicos e mais da metade do que se compra são manufaturados. Por certo há uma lógica no mercado internacional para que assim ocorra, mas, de qualquer maneira, a luta para alterar esse perfil, de forma a gerar mais emprego e agregar mais renda interna, representa elemento que deve estar sempre presente na formulação e execução de políticas comerciais e nas negociações internacionais.
            O Brasil fechou o ano de 2004 com exportações recordes de US$ 96,50 bilhões e importações de US$ 62,80 bilhões. O superávit da balança comercial foi, assim, de US$ 33,72 bilhões, 36% superior ao de igual período do ano anterior. Isso decorre do incremento nas exportações (+32%) em proporção maior do que o as importações (+30,0%). Num recorte setorial, as exportações dos agronegócios cresceram 29,8% em relação a 2003, atingindo US$ 39,01 bilhões (40% do total). Já as importações do setor subiram 21,5%, também em comparação com 2003, somando US$ 4,88 bilhões (8% do total), segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)2. O superávit dos agronegócios atingiu US$ 34,13 bilhões, 36% superior ao de igual período do ano passado e, mais uma vez cobre o déficit das contas externas dos demais setores da economia cuja balança comercial se mostrou negativa.
            Importante ressaltar a redução proporcional das compras setoriais dos agronegócios no exterior, cujos incrementos foram menores que os das importações totais. Esses indicadores mostram a magnitude da competitividade dos agronegócios brasileiros, que consolidou o sucesso da estratégia exportadora cujas bases estruturais foram lançadas na virada do século, permitindo crescimentos substantivos que forjaram o desempenho atual.
            De qualquer forma, não mais se ouvem questionamentos ao papel das exportações para o desenvolvimento nacional, mesmo porque fica nítido que a demanda interna se revela uma questão de renda e não de oferta, Noutras palavras, não se questiona nem a inelasticidade da oferta da agricultura que responde a preços nem a concorrência entre atividades de exportação e de consumo interno por fatores, mas sim a necessidade de gerar renda e emprego para melhorar o tamanho e o perfil da demanda do mercado interno.

Pilares fundamentais

            O sucesso das exportações dos agronegócios brasileiros, com significativo aumento na geração de divisas no período 1997-2004, decorre de medidas estratégicas tomadas na segunda metade dos anos 90. As decisões do Governo brasileiro que tiveram impacto decisivo nesse processo estão assentadas em três pilares fundamentais:

  • Decisão que permitiu aos agentes econômicos setoriais usufruírem da desoneração tributária efetuada pela Lei Federal n° 87/96 (Lei Kandir), cujos efeitos puderam ser amplificados pelas demais medidas no campo comercial. Representou uma renúncia fiscal em termos de Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da ordem de R$ 18 bilhões em 2004, patamar comparável ao valor da produção agropecuária paulista, que está em torno de R$ 26 bilhões. Noutras palavras, a desoneração de ICMS praticada com base na Lei Kandir compara-se com o valor da produção agropecuária da unidade da federação com maior participação no total nacional nesse indicador. Trata-se, pois, de medida que, além de inteligente, evita a 'exportação de impostos', com impactos significativos na rentabilidade dos negócios exportadores. E, mais recentemente, tem-se a desoneração do PIS/COFINS dos bens destinados à exportação.
  • Finalização do processo de ajuste interno de acesso ao financiamento decorrente da securitização da dívida dos agricultores da segunda metade dos anos 1990. A maturação desse processo dá-se na virada do século pela seqüência das parcelas pagas e, ao reabrir para essa massa de empreendedores o financiamento bancário, alargou os horizontes da modernização que ampliou as bases da competitividade com base em novos investimentos que ampliaram a capacidade produtiva no campo. Essa reengenharia financeira dos negócios agropecuários implicou na formação de expectativas consistentes que geraram o dinamismo setorial e a alavancagem da demanda de insumos e máquinas, o que redundou em mais inovações e maior competitividade setorial com produtividades e qualidades crescentes.
  • Desvalorização cambial de janeiro de 1999, que destravou a competitividade dos agronegócios brasileiros, os quais, na verdade, estavam pagando o preço da sobrevalorização cambial e ainda tinham de concorrer no mercado interno com produtos estrangeiros tornados mais baratos pelas condições de financiamento das transações internacionais (juros e prazos). Com isso, os produtos brasileiros puderam não apenas ganhar novos mercados com a demanda - ao alavancar o crescimento da capacidade produtiva interna, num segmento que responde a preços -, como também implicaram no encarecimento de produtos estrangeiros que haviam conquistado relevância no mercado interno, em razão de terem se tornado mais baratos pela política cambial. Produtos importados mais baratos representam menor pressão inflacionária, ainda que aliada a um aumento da compra de elementos não-essenciais. Em resumo, a mudança da política cambial foi decisiva para as contas externas por quaisquer ângulos que se as analise.

            Entretanto, há de se institucionalizar de forma definitiva algumas questões. Uma delas é que a Lei Kandir está sendo bancada pelos estados exportadores sem ressarcimento federal, o que implica em menor capacidade dessas unidades da federação de executar políticas estaduais consistentes. No médio prazo, isto pode significar menor competitividade, em especial pela redução dos investimentos em inovações, na melhoria da logística e, no caso dos agronegócios, em defesa agropecuária.
            A discussão no Congresso Nacional do Orçamento Federal para 2005 mostra a não-implementação do fundo de compensação com recursos federais. Ainda que não contemplada a proposta dos governadores de repartir esse ônus de queda de receita, meio a meio, entre os estados e a União, o que implicaria em repasses de recursos federais da ordem de R$ 9,0 bilhões em 2005, foram fixados recursos da ordem de R$ 5,2 bilhões.
            Outra questão que permeou esse debate diz respeito ao critério de repartição entre os estados das compensações. Ao invés de usar como indicador o fato gerador (exportações), fala-se em mesclar esse mecanismo com a participação dos estados nos saldos da balança comercial.
            Desde logo, é fundamental esclarecer que esse critério aventado, se adotado, se configura em nítido casuísmo contra o Estado de São Paulo. Basta verificar a pauta do comércio exterior paulista para se notar que as importações são mais expressivas, de um lado pela importação de componentes da indústria aeronáutica e automobilística e, de outro, pela importação de componentes das máquinas e insumos dos agronegócios, que atendem à demanda de todas as unidades da federação, em especial aquelas com elevados saldos comerciais nos agronegócios.
            Mais ainda: na mesma discussão do Orçamento 2005, constava da pauta a necessidade de alocar recursos para intervenção na safra a ser colhida em fevereiro-abril de 2005, da ordem de R$ 2,0 bilhões, a fim de que o Governo Federal tenha instrumentos para evitar os efeitos deletérios da pressão sazonal das colheitas sobre os preços de commodities relevantes como milho, soja, algodão e trigo. Pela relevância da presença brasileira nas transações internacionais desses produtos, uma queda de preços devido à manifestação de elevado desequilíbrio transacional entre oferta e demanda no pico de safra, se concretizada, terá efeitos dramáticos na renda agropecuária, funcionando como poderoso fator de desestímulo ao incremento da capacidade produtiva, podendo mesmo redundar em retração da produção nacional.
            No patamar das taxas de juros, atual e projetada, não há como carregar estoques na órbita privada, exigindo o escoamento rápido da safra, o que leva à queda dos preços agropecuários internos pela pressão de oferta. Mais grave que tudo isso é que o ajuste futuro decorrente dessa queda sazonal de preços numa realidade de custos crescentes da safra 2004-05 pode ser dramático pela renda corroída nesse processo. Os diferenciais a menor dos preços serão apropriados pelos demais agentes das cadeias de produção numa erosão de volta de riqueza, numa ópera que, no próximo ato, demandará intervenção pública numa realidade de recursos fiscais escassos.
            O boom recente dos agronegócios fez a oferta de grãos e fibras bater o patamar dos 120 milhões de toneladas na safra 2002/03 - a safra 2003/04 já foi menor. Caso a comercialização da safra 2004/05 gere desestímulos de preços, devido à apreciação do dólar (câmbio abaixo de R$ 3,00/U$S) e à pressão para baixo na colheita, esse recorde da safra 2002/03, curiosamente a última plantada pelo Governo anterior, pode permanecer por alguns anos.
            O desafio atual consiste em tomar medidas para ao menos manter esse recorde. Para isso, os tomadores de decisão precisam ter claro que o superávit da balança comercial é tão relevante do ponto de vista da política macroeconômica quanto o superávit primário das contas públicas. E que, no mundo real, ambos se condicionam mutuamente e, por seu turno, condicionam as dinâmicas das transações tanto no mercado interno quanto no mercado externo. Ou seja, que o Brasil não caia em mais uma armadilha de falsa dicotomia. 3

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1 Mesmo que, como resultado da ampla aceitação dessa falsa dicotomia, a participação brasileira no comércio exterior reduziu-se de forma dramática, sendo, nos primeiros anos do século XXI, menor do que a verificada nos anos 1970. Agora tem-se de correr atrás do prejuízo.

2MAPA: www.agricultura.gov.br

3 Artigo registrado no CCTC-IEA sob n. HP-375/2004

Data de Publicação: 14/01/2005

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor