Algumas observações sobre a agricultura familiar

            O avanço da agricultura familiar configura elementos estruturais relevantes para a economia, uma vez que 'a disseminação das pequenas propriedades é de grande vantagem para qualquer país, porque traz, indiscutivelmente, uma melhor distribuição da riqueza e deve redundar sempre, pelo menos teoricamente em maior produção per capita, pois é sabido que o homem trabalhando por conta própria produz mais que o assalariado'.
            Entretanto, quase todas as propriedades familiares 'estão localizadas em terras impróprias para a agricultura'. Basta ver que a grande parcela delas no Brasil está situada no agreste nordestino e em outras áreas marginais da ótica da qualidade agrícola da terra.
            As grandes propriedades 'que possuem terras boas eram, como ainda são nos dias de hoje, lucrativas, não tendo os seus proprietários que picá-las em lotes'. Mas consiste em 'grande inconveniência para o país essa localização das propriedades familiares em terras impróprias', pois 'trabalhando em terras impróprias para a agricultura o homem não pode conseguir grandes colheitas, o que significa diminuição do rendimento de seu trabalho'.
            A transformação da agricultura de escala para a agricultura familiar não consiste tão-somente numa mera subdivisão de terras, mas na implantação de outro modelo de agricultura - que não as grandes lavouras de grãos e fibras -, qual seja ampliando a agricultura de frutas e olerícolas. O fato de que a população urbana vem 'adquirindo novos hábitos de alimentação tem influenciado a agricultura... A procura de grandes quantidades de frutas, verduras, legumes, etc., neste mercado, vem fazendo com que a exploração da `pequena agricultura’, isto é, das culturas de frutas, verduras, legumes e tubérculos, se torne mais lucrativa do que a exploração da ‘grande agricultura’, ou seja, a cultura de milho, café, algodão, arroz, etc.'.
            A gama de agricultores familiares de sucesso, 'que se apresentam em boas condições financeiras, é constituída de elementos que conseguiram efetuar a mudança de, ao menos, uma parte de suas atividades, da grande para a pequena agricultura'. Isto mostra ser fundamental para a agricultura brasileira discutir e absorver as diferenças entre a pequena e a grande agricultura, dimensões dadas pela contingência da escala das operações, de modo que seja possível construir um modelo não excludente para o desenvolvimento nacional que, num país continental, inexoravelmente passa pelo campo.
            Mas a construção da agricultura familiar não se mostra muito simples, dado o 'grande número daqueles que tem sofrido prejuízo com esta tentativa de mudança. A técnica, a ser usada na produção da ‘pequena agricultura’, é bem diferente, e geralmente os agricultores familiares não têm dela os conhecimentos necessários. Para a pequena agricultura, é não somente aconselhável, como mesmo imprescindível que o produtor aplique os métodos da agricultura intensiva. O uso de muito adubo, de diversas pulverizações, de irrigação e de muito trabalho manual para uma pequena área de terra, é inevitável'.
            Noutras palavras, a agricultura familiar se mostra mais intensiva em inovação e exige uma relação mais íntima entre a terra, o homem, a planta e a economia que a agricultura de escala, cuja condições técnicas são multiplicáveis no espaço pela mecanização, pois, 'para esta pequena agricultura, ou o produtor aplica os métodos modernos da agricultura intensiva, ou não vive à custa desses produtos'.
            Tanto assim que os solos de várzeas são muito valorizados e contemplam expressiva parcela dos agricultores familiares de sucesso. Afinal, 'qualquer várzea de fácil drenagem, com solo fértil, fora do perigo de enchentes, está atualmente valendo fortuna, e com razão, porque é aí que se pode explorar com maior sucesso a pequena agricultura'. Entretanto, ainda não prosperaram políticas públicas adequadas para a ocupação das várzeas, que, se tem tanto relevância para a agricultura quando absorvidas pela expansão urbana desordenada, representam um enorme problema social e para as políticas municipais.
            Essa necessidade de visualizar a agricultura familiar com outro ângulo, que não aquele com que se contemplou a visão da agricultura de escala, pode ser encontrada na própria história brasileira, com especial destaque para os imigrantes japoneses. Na ‘pequena agricultura’, 'os japoneses estão sendo bem sucedidos... porque é de se esperar tal sucesso, considerando que este povo vem praticando, há séculos, a agricultura intensiva, de modo que a exploração da nossa `pequena agricultura’ tem naturalmente que lhes ser fácil e lucrativa, uma vez que lhes oferece poucos problemas'.
            Interessante destacar que essa `pequena agricultura’ exige uma relação mais estável entre o homem e a terra, condição essencial para a sustentabilidade. Assim, não é correta a crítica 'de que o japonês esteriliza a terra com a sua agricultura', pois isso 'poderia encontrar bases também no fato de que o japonês arrendando terra não pratica nenhuma rotação de cultura. A prática da agricultura intensiva requer um sistema planejado de rotação de cultura, sem o qual a terra se cansa e a produção cai enormemente. É exatamente o que acontece com terras usadas pelos japoneses. Estão cansadas e produzindo pouco, mas longe de se mostrarem estéreis, como é a idéia geral'.
            Há de se atentar também para o risco da mudança que é maior nas pequenas propriedades do que nas grandes propriedades. 'Em uma grande propriedade bem montada, o proprietário, quando experimenta uma nova cultura, está fazendo uma experiência; emprega nela somente uma parcela pequena de seu capital. O fracasso desta cultura não ocasionará mudança alguma nas condições gerais da propriedade ou na situação do empresário rural. O mesmo não se dá com o agricultor familiar. A mudança da grande para a pequena agricultura representa para este grande e perigoso passo... Um fracasso, portanto, na exploração destes produtos, o que é, aliás, relativamente comum, representa para o agricultor familiar uma verdadeira catástrofe. Perdendo o capital empatado e o seu tempo, dificilmente poderá manter o mesmo padrão de vida durante o ano seguinte, ou mesmo manter-se de posse de sua pequena propriedade, além do que se vê impedido de nova tentativa, perdendo assim até a experiência adquirida com esse primeiro fracasso'.
            Daí ser fundamental para a expansão da agricultura familiar a estruturação adequada de uma política de seguro rural que garanta a renda agropecuária contra riscos agronômicos (climáticos e biológicos). Isto permitiria o avanço estrutural desse modelo produtivo atraindo mais agricultores, uma vez que 'o risco que acompanha esta mudança da grande para a pequena agricultura é um dos fatores que estão impedindo o rápido aumento dos agricultores que se dedicam à exploração da pequena agricultura'.
            Há ainda a necessidade de estruturação na agricultura familiar de frutas e olerícolas, da produção com qualidade certificada e rastreada e da organização de estruturas de mercado compatíveis com as transações com perecíveis, induzindo-a 'a produzir para o mercado... Convém explicar melhor o que entendemos por ‘produzir para o mercado’. Na produção de milho, arroz, algodão, etc., o produtor tem sempre em mente o valor do custo de produção. Tudo faz a fim de produzir mais barato e obter maior lucro. Ao contrário, na de tomate, cebola, verdura, etc., o produtor precisa fundamentalmente acompanhar as exigências do mercado, porque os preços variam tanto de acordo com a variedade, como com a qualidade do produto, com a época do ano, qualquer falha do produtor, em considerando essas exigências do mercado, redunda em grandes prejuízos... Torna-se aconselhável pois considerar o custo de produção apenas depois que os produtos apresentem as exigências requeridas pelos mercados consumidores... Os nossos agricultores familiares têm tido muita dificuldade em compreender que a pequena agricultura está agora sujeita a um mercado exigente e que se torna necessário, mesmo imprescindível, apresentar os produtos de acordo com essas exigências... Desenvolver nos agricultores familiares esta mentalidade de ‘produzir para o mercado’ é uma necessidade sem a qual não poderão dedicar-se com êxito à pequena agricultura'.
            Por fim, para o desenvolvimento da agricultura familiar há ainda que ser superado um constrangimento essencial que limita a concretização dessa ocorrência. Isso porque, dentre os agricultores familiares, a maioria não se interessa pelo crédito agrícola, dada 'a existência de grande desconfiança por parte desses agricultores, desconfiança essa que aumenta quando há a necessidade de uma hipoteca para o empréstimo. Eles não crêem muito na possibilidade de arranjar reforma das dívidas, caso tenham uma ano muito magro de colheita, e acham melhor não se arriscar a tanto'.
            Dado que não há condições de pleno desenvolvimento da agricultura familiar sem sustentação do crédito agrícola, há que se buscar a redução dos riscos com seguro rural que garanta a renda agropecuária, associada à ação governamental para que os agricultores familiares 'possam mudar sua agricultura para uma mais intensiva, aplicando melhor técnica na produção e na venda de seus produtos. O próprio governo poderia guiá-lo'.
            Essas constatações sobre a agricultura familiar são fundamentais para o desenvolvimento nacional. E presente artigo presta dupla homenagem. A primeira, a uma das mais antigas, se não a mais, instituições de pesquisa científica em economia do Brasil, o Instituto de Economia Agrícola (IEA). Surgido enquanto Comissão de Estudos de Economia Rural, em 9 de setembro de 1942 - primeira estrutura de estudos de economia agrícola pois a Secção de Economia Rural criada em 1935 no Instituto Agronômico não havia sido implantada em função da ida de Ruy Miller Paiva para realizar treinamento nos Estados Unidos -, o IEA tem tido sua data de aniversário simplesmente ignorada pela sociedade e pelas autoridades como mais uma vez ocorreu em setembro último.
            A segunda homenagem é a um dos maiores pensadores da economia brasileira, Ruy Miller Paiva, engenheiro agrônomo e fundador do IEA, que também de forma indevida não freqüenta o rol dos maiores pensadores econômicos para a maioria dos intelectuais que simplesmente o desconhecem. Miller Paiva escrevia sobre economia no início dos anos 1940 e sua tese de mestrado defendida no Texas College, em fevereiro de 1941, tratava a emergente economia algodoeira da região meridional brasileira.
            Foi Miller Paiva quem lançou no Brasil, nos anos 1940, a idéia de crédito facilitado (subsidiado) e de preços remuneradores (preços mínimos), bem como defendeu de forma ardorosa a modernização da agricultura. Isto o coloca entre os criadores da economia brasileira, que não se resume à contribuição de Eugênio Gudin, e nega a idéia de que essa ciência tenha raízes apenas no processo de industrialização, pois tem fortes raízes agrárias.
            Na construção da aludida homenagem, dentro da estratégia de resgate das contribuições do IEA (cuja sigla mesmo instituições mais jovens pretendem usurpar sem cerimônias), buscou-se mostrar a atualidade de muito dos conhecimentos produzidos. Tem-se como base o artigo de Ruy Miller Paiva, denominado 'Algumas observações sobre a agricultura dos pequenos sitiantes'1, que foi publicado na extinta 'Revista de Agricultura', editada pela Secretaria de Agricultura de São Paulo em 1941. Este artigo fora publicado antes no jornal 'O Estado de S. Paulo', edição de 16 de outubro de 1941.
            Pois bem. Neste 16 de outubro de 2005, quando se comemora o Dia Mundial da Alimentação, em itálico e entre parênteses reproduz-se o texto original de Ruy Miller Paiva, apenas trocando a palavra sitiantes por agricultores familiares, agricultura dos sitiantes por agricultura familiar e fazendas por grandes propriedades.
            O texto original de Miller Paiva, ao tratar dos riscos nas mudanças exigidas na agricultura dos sitiantes, não incorporava a idéia de seguro rural, mas definia de forma magnífica seu conteúdo. Também em inúmeras outras passagens há de se ter nítido que todas as idéias são produto de seu tempo e de seu lugar. Deve se lembrar que, nos primórdios dos anos 1940, sequer a Rodovia Anhangüera havia sido construída.
            Deixando de lado esses aspectos e as diferenças terminológicas, o texto apresenta enorme atualidade para a discussão da temática. Inclusive porque talvez as diferenças apontadas por Miller Paiva entre sítio e fazenda (sitiantes e fazendeiros) formem conceitos melhores que os hoje utilizados.
            De seu conteúdo, aprende-se que não fazem sentido falsas dicotomias entre agronegócios e agricultura familiar, como não faziam no início dos anos 1940 entre agricultura dos fazendeiros e agricultura dos sitiantes. São modelos de agricultura complementares e não excludentes, como são os belts do Texas e as frutas e olerícolas da Califórnia (que foi apontada por Josué de Castro nos anos 1950, em seu 'Geografia da Fome', como o principal estado agrícola norte-americano).
            A questão da qualidade das terras e da necessidade de qualidade dos produtos e outros elementos da agricultura familiar, bem como a especificidade das políticas públicas, estavam presentes na agricultura dos sitiantes, objeto da observação direta da agricultura de sitiantes feita por Ruy Miller Paiva em visita realizada a propriedades em 1941. Para aqueles que preferem a erudição das extensas referências sobre a 'agricultura familiar' com base na literatura internacional, sugere-se a leitura sem pré-conceitos desse pensador econômico pioneiro.
            Especial atenção para o seu alerta quanto ao equívoco dos transplantes entre nações e regiões de conceitos históricos, ao aduzir que 'o assunto não é assim tão simples. É necessário que se lhe dedique mais atenção, principalmente nos países que precisam mudar o sistema de grandes propriedades para o de pequenas. Cada país e mesmo cada região apresenta problemas diferentes e requer estudos especiais... E esta conclusão é que a intensa subdivisão de terras traz realmente ótimas vantagens a um país, dependendo, entretanto, entre outros fatores de menor importância, do de estar seu povo preparado para tal sistema. Considera-se povo preparado, quando existe particularmente no trabalhador rural educação suficiente e mentalidade desenvolvida'.2

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1PAIVA, Ruy M. Algumas observações sobre a agricultura dos pequenos sitiantes. Revista de Agricultura, SP, v. 16, p.487-500, 1941.

2Artigo registrado no CCTC sob número HP-91/2005

Data de Publicação: 14/10/2005

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Soraia de Fátima Ramos (sframos@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor