Cana: nova expansão e a insustentável exploração de sua força de trabalho

            A grandeza da produção de álcool hoje em todo Brasil e sua projeção para o futuro estão norteadas por uma linha de raciocínio extremamente favorável: são boas e equilibradas as perspectivas de crescimento e do fortalecimento do mercado interno de carros biocombustíveis (flexfuel), bem como estão os países signatários do Protocolo de Kioto mais do que nunca a favor de que sejam rigorosamente cumpridas as exigências de redução de poluentes – o que valoriza a demanda pelos combustíveis limpos.
            Estudos recentes dão conta de que o consumo de álcool no país tem crescido em torno de 8,7% anuais nos últimos três anos. O jornalista Celso Ming, em artigo publicado pelo jornal 'O Estado de S. Paulo', dia 8 de outubro passado (O álcool decola), afirma que o consumo deste ano deverá alcançar os 14 bilhões de litros.
            Na mesma linha otimista, a União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (UNICA)1 projeta um consumo interno de 22,1 bilhões de litros de álcool na safra 2010/11. Somado à exportação, cuja previsão é de que cresça mais do que duas vezes e meia (5 bilhões de litros em 2010), este volume vai significar o crescimento dobrado da demanda nos próximos cinco anos.
            A explicação principal, no que se refere ao mercado interno, está na já citada adoção de carros biocombustíveis, cujas vendas não param de crescer – no mês de setembro, foram vendidos em torno de 90 mil veículos flexfuel contra 38 mil movidos só a gasolina. Assim, passaram de um patamar de 3% das vendas em 2003 para até 50% da procura por carros novos, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA)2.
            Dessa forma, deverá ser colhido algo em torno de 300 milhões de toneladas de cana-de-açúcar somente para a obtenção do combustível. Isto se de fato for alcançada a meta de 22,1 bilhões de litros de álcool produzidos e considerando, ainda, a hipótese de que 1 tonelada de cana no Brasil rende 85 litros de álcool – na realidade, esta seria a média do Centro-Sul.
            Acrescente-se que a matéria-prima usada para a produção do álcool, que totalizava 44,8% - portanto, 55,2% para o açúcar até poucos anos atrás -, alterou significativamente por conta da situação mais favorável ao combustível. Atualmente, deve se considerar um mix de produção em que a cana para produção do álcool totaliza em torno de 52%, com os restantes 48% para o açúcar. De qualquer maneira, a projeção em 2010 para todo o plantio brasileiro estará em torno de 700 milhões de toneladas.
            Isto é, o setor terá de se preparar devidamente para o caso de ter de dobrar o seu crescimento em cinco anos, com ênfase na implantação de novas usinas e ganhos de produtividade das que operam há anos. Isto já está ocorrendo, segundo a UNICA.
            De imediato, estas informações sugerem um enorme crescimento da demanda por mão-de-obra volante, pois é sabido que o emprego alocado neste produto se concentra na operação do corte da cana-de-açúcar. Pessoas ligadas ao setor - como João Guilherme Ometto, coordenador do Comitê da Cadeia Produtiva do Agronegócio/agroindústria da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) - asseguram que haverá a criação de mais de 200 mil empregos diretos.
            O certo é que não há nada a se comemorar com este resultado, sem averiguar se esse provável crescimento do emprego, tal como afirmado, corresponde de fato à expansão projetada da cana-de-açúcar – o que poderia ser feito através do cruzamento da utilização dos coeficientes de utilização de mão-de-obra comum no corte deste produto (em dias/homem) com a área a ser expandida. O corte da cana sob o ponto de vista do número de postos de trabalho é dos mais significativos, mas, se o olhar for sobre a saúde do trabalhador, fica muito difícil torná-lo minimamente defensável.
            Em recente matéria publicada no jornal 'O Estado de S. Paulo', com o sugestivo título O lado sombrio dos canaviais (assinado por Agnaldo Brito), o padre Antonio Garcia Peres, assessor da Pastoral do Migrante, na região conhecida como coração da principal zona canavieira do Estado de São Paulo, dá o tom exato da exploração da força de trabalho nesta cultura ao afirmar que estes volantes 'não são máquinas. São pessoas, e acho que esta dimensão se perdeu'. E mais à frente, acrescenta: 'O que deixa todos muito intrigados é que em todos os casos a causa das mortes é parada cardiorrespiratória. É preciso saber o que ocorreu com essas pessoas'.
            A resposta para esta, e outras questões envolvendo a saúde do trabalhador volante da cana, pode estar incluída em artigo que discute os problemas acarretados pela queima da palha desta cultura agrícola.3 Este artigo permite esclarecer como o uso do fogo, considerado erroneamente pelos produtores como 'um mal necessário', representa 'uma irresponsável agressão à saúde humana e ao meio ambiente'.
            Num universo em que 70% dos canaviais dependem da força bruta na colheita, choca saber que a precarização das condições de trabalho no campo se agrava mais ainda com o fogo, que é usado justamente para facilitar esta operação. E também que em São Paulo sofreu regulamentação por parte do Governo Estadual que determinou sua erradicação para 2021 (áreas mecanizáveis) e 2031 (não-mecanizáveis).
            A discussão dos males provocados pelas queimadas começa pelo alerta da área médica de que a combustão da palha da cana gera compostos orgânicos, como os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), que podem tanto provocar intoxicações através das vias respiratórias quanto fazer com que, pelo contato com a pele, ocorram cânceres de pulmão, de bexiga e de pele. Isto, além da emissão dos gases CO, CO2, O3 e SO2, que causam problemas respiratórios.
            Os HPAs presentes na fuligem da cana são dotados de grande potencialidade para que sejam desencadeados processos carcinogênicos e mutagênicos nos seres humanos. O perigo que representam pode se manifestar por inalação ou penetração dérmica aos volantes que cortam a cana queimada. E, qualquer que seja o nível absorvido, sempre haverá o risco de intoxicação pela substância e de que se desenvolva o câncer.
            Cita-se, também, o material particulado presente na fumaça, constituído de 94% de partículas finas e ultrafinas que transpõem a barreira epitelial e atingem o interstício pulmonar, de forma a desencadear o processo inflamatório.
            Acrescente-se aos problemas causados pelas queimadas a estupidez do aumento da produtividade do trabalho, cuja evolução pode ser aquilatada ao se mencionar que a produtividade média/homem aumentou seis vezes em quatro décadas, saltando de um patamar de 2 toneladas/homem/dia para 12 toneladas/homem/dia – e há ainda os que chegam a cortar até 30 toneladas/dia. Os resultados à saúde humana preocupam cada vez mais os profissionais da área médica, com danos irreversíveis à coluna, quando o volante tem apenas em torno de 30 anos, e até mesmo casos de paradas cardíacas.
            Ou seja, as excelentes perspectivas de expansão dos canaviais, em função do ganho de relevância alcançado pelo Brasil como fornecedor de álcool combustível, não combinam com uma estrutura produtiva em que, por um lado, se garante o emprego de milhares de trabalhadores na operação da colheita e, por outro, são alarmantes os efeitos muitas vezes irreversíveis sobre a saúde humana.
            Como, então, defender uma exploração da força de trabalho que avilta e degrada muito mais até que o próprio desemprego?

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1 ÚNICA: www.unica.com.br
2 ANFAVEA: www.anfavea.com.br
3 GONÇALVES, D. B. SOB AS CINZAS DOS CANAVIAIS: o perigoso impasse das queimadas no Estado de São Paulo. Informações Econômicas, SP, v. 35, n.8, ago. 2005.
4 Artigo registrado no CCTC-IEA sob o número HP-106/2005.

Data de Publicação: 18/11/2005

Autor(es): José Eduardo Rodrigues Veiga (zeveiga@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor