Globalização e Diferenciação no Consumo de Alimentos

            A facilidade de deslocar fisicamente um produto de um ponto do planeta a outro e de levar as informações eletronicamente, em tempo real, incrementou de forma tremenda tanto o comércio global como o dos alimentos. No período de 1997 a 2006, o comércio mundial de produtos do agronegócio cresceu de US$388,6 bilhões para US$609,8 bilhões, o que significa um incremento de 56,9%1.

            Por outro lado, este processo de globalização refletiu-se também na abrangência e dimensão das crises alimentares devido a problemas sanitários e doenças em animais, como o BSE (Bovine spongiform encephalopathy) ocorrido nos anos 90 e, posteriormente, a disseminação da gripe aviária.

            Com as inovações tecnológicas aplicadas no setor agrícola, as produtividades vegetal e animal aumentaram significativamente. Os impactos sobre a qualidade de produto agroalimentar, porém, passaram a ser questionados. A qualidade do produto para populações de elevado poder aquisitivo, com as inovações tecnológicas das nações capitalistas centrais que já superaram os limites quantitativos da alimentação, passou a ser demandada cada vez mais. No entanto, na África, por exemplo, onde multidões famintas se expõem a níveis inaceitáveis de nutrição, a questão ainda é quantitativa. Nesse novo mercado de qualidade, o uso de grãos transgênicos na alimentação animal e na composição de alimentos industrializados tem sido alvo de controle e exigência de rotulagem discriminada para o conhecimento do consumidor.

            A qualidade aqui assume um requisito inexorável da saúde e cada vez mais o alimento sadio passa a ser pré-requisito.

            Outro fator relevante a ser analisado como indutor de um consumo de massa é a estrutura da indústria global de alimentos e as grandes redes de supermercados. A indústria de alimentos, por meio da incorporação de tecnologia, transforma os alimentos em insumos químicos e depois os incorpora novamente, desenvolvendo novos alimentos. Campanhas contra o consumo de gorduras trans obrigaram as empresas alimentícias brasileiras a declararem a presença ou não desse composto no alimento. Problemas de aumento da obesidade infantil e de doenças crônicas, como diabetes mellitus, preocupam cada vez mais os consumidores e os dirigentes governamentais.

            A estrutura de varejo atual tem um papel muito importante na formatação do tipo de consumo. A concentração do varejo em poucas grandes redes de supermercados tem conduzido à padronização das exigências quanto ao produto alimentar e às mudanças nos sistemas produtivos agroalimentares de alta qualidade.

            No Brasil, em 1999, as cinco maiores redes de supermercados já respondiam por cerca de 60% do faturamento total do setor. O estudo analisou os processos de fusões e aquisições no setor que propiciaram a presença de poucos grandes grupos e alto nível de concentração.

            A rede Carrefour no Brasil tem um centro de distribuição em São Paulo que serve a mais de 50 milhões de consumidores. O Carrefour compra melões de três produtores do Nordeste para abastecer suas lojas brasileiras, e também envia a fruta para outros centros de distribuição em 21 países. No setor de lácteos, no Brasil, também ocorreu uma concentração de 1997 a 2001, quando doze grandes processadoras de leite retiraram cerca de 75 mil produtores de sua lista de fornecedores2.

            Na Ásia, especificamente na Tailândia, um grande supermercado reduziu sua lista de fornecedores de 250 para 10, demonstrando que tem ocorrido um estreitamento do varejo de supermercados para os pequenos produtores familiares. O custo de transação decorrente da necessidade de gerenciar muitos contratos com pequenos levou os supermercados a concentrarem seus fornecedores. Isso é efeito-escala típico das sociedades de massas. A alternativa consiste em fugir desse mercado de massa e apostar na segmentação.

            As alternativas para os pequenos produtores têm sido se organizarem em cooperativas para obter certificações de produtos orgânicos, fair trade e os ambientalmente corretos. Para os pequenos produtores, o sistema orgânico oferece um lucro maior, pois os preços são melhores. A maior rentabilidade é derivada de preços maiores e de custos menores, pois se retira a dependência com insumos químicos aumentando o uso do fator mão-de-obra, cujo custo é menor.

            Produtos certificados melhoram o acesso destes ao varejo nacional e aos países industrializados, pois parcela dos consumidores demanda cada vez mais qualidade, segurança alimentar e sustentabilidade. Mas, em alguns casos, a certificação tem um custo, que pode ser um obstáculo para o pequeno produtor, que enfrenta o dilema da escala e, ainda, paga caro ou geralmente não tem acesso ao crédito. Também há um efeito-escala em função dos custos de transação, ou seja, para o financiador é muito mais custoso administrar vários contratos de pequenos valores. A Indicação Geográfica, por sua vez, oferece a possibilidade de agregar valor ao produto para um grande número de produtores dentro de um espaço geográfico.

            Os supermercados no mundo são o local de compra da elite saudável, da classe média e das classes populares. Se por um lado a atuação globalizada acabou por democratizar o consumo pela igualdade de acesso, por outro também padronizou a demanda pela irradiação de um dado padrão de consumo de massas com inquestionáveis ganhos de escala. Além disso, resultou em um efeito perverso, pois muitos pequenos produtores rurais ficaram marginalizados do processo de fornecimento para esta massa consumidora.

            A globalização dos supermercados também aumentou o custo da rastreabilidade do alimento e, diante das exigências do consumidor, alguém terá que arcar com este custo e os produtores devem se preparar para atender a estas novas regras para continuar comercializando seus produtos, seja no nível local, regional ou global.

            Com o comércio global observam-se, no setor agroalimentar, a padronização do consumo, da forma de produzir o alimento e do modelo de distribuição pelo grande varejo de supermercados, e também as crises que afetam o setor produtivo, como a disseminação de doenças em animais e plantas.

            A perda da identidade original do alimento, além do desconhecimento de como e em que condições ambientais e sociais este é produzido, têm levado esses segmentos de mercado da qualidade à utilização de mecanismos de identificação e rastreabilidade.

            A denominação de origem foi utilizada no passado para ajudar os produtores de vinhos de Bordeaux e do vinho do Porto a se protegerem contra possíveis fraudes e, posteriormente, este tipo de certificação passou a ser utilizado para produtos que apresentavam uma qualidade diferenciada que geralmente está relacionada com um espaço geográfico e uma comunidade produtora. Hoje, para esses mercados da qualidade, as Indicações Geográficas passam a ter um papel relevante no contexto de comercialização globalizada dos alimentos e do consumo massificado de produtos padronizados.

            Na Europa, a proteção dos produtos com denominações de origem e indicações geográficas está amparada por legislação específica, pelo Regulamento (CEE) nº 2081/92 relativo, da Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia3.

            No Brasil, a Lei 9279 de 1996, que regulamenta a propriedade industrial, trata das Indicações Geográficas, nos artigos 176 a 182. O registro deve ser solicitado ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), e o Ministério de Agricultura e Pecuária (MAPA) foi designado para fazer o fomento de IGs4.

            Falta ainda uma estrutura nos moldes do Institut Nacional de l´Origine et Qualité (INAO) na França, para realizar o acompanhamento e controle destes produtos. Estão envolvidos neste processo vários atores, tais como SEBRAE, institutos de pesquisa, universidades e governos locais e nacionais.

            Surge nos espaços rurais a possibilidade de criar marcas de qualidade regionais e marcas coletivas de produtos com especificidade particular. A Indicação Geográfica é hoje, para um amplo segmento da agropecuária de não-commodities, um instrumento de desenvolvimento rural local e regional que tem uma capacidade de agregar valor a produtos anteriormente considerados commodities, e também capaz de valorizar uma comunidade e seus atores sociais, dando uma identidade aos seus produtos5.

            A produção e o consumo de alimentos no contexto de globalização apresentam-se, portanto, sob duas forças ou tendências: a "standartização" e a diferenciação. A primeira foi impulsionada pela economia de escalas na produção dos alimentos e da comercialização de massa promovida pelas estruturas oligopólicas do fluxo produção-consumo, e tornada mundial como padrão de consumo pelas redes transnacionais de supermercados. A "diferenciação", como força contrária ao movimento da "standartização", busca dar características de identidade pela origem do produto e de qualidade construída em espaços territoriais específicos por meio da participação de atores sociais locais.

            Esta tensão criada por estas duas forças, que derivam de segmentos de mercados com atores diferenciados em função do poder de compra, surge devido à crescente perda da informação sobre a natureza intrínseca do alimento ocasionada pelas inovações tecnológicas aplicadas desde a produção agrícola, na indústria de alimentos e na comercialização do produto no mundo (Figura 1).

Figura 1 – Fluxo do Alimento para o Consumo Global.

Fonte: Elaborada pela autora.

            No contexto de globalização, o comércio de alimentos representa um intercâmbio de produtos de origens diversas e ao mesmo tempo com características similares. Atualmente, observa-se um paradoxo que caracteriza dois movimentos distintos. Se por um lado tem-se o fluxo de alimentos tipo commodities já estabelecido, alimentos com denominação de origem, qualidade diferenciada e com selos de certificação também estão presentes e com crescente relevância em diversos mercados, principalmente no europeu.

            Este panorama que se vislumbra ocorre por influência de diversos fatores. Inicialmente, deve-se à mudança ocorrida no perfil da demanda, ou seja, das novas exigências do consumidor. Este novo consumidor tem preocupações que transcende a fronteira do produto alimento em si, e está preocupado em ter informações sobre "quem" produz este alimento, "como" ele é produzido e "quais os efeitos" de sua ingestão sobre a saúde humana e seu corpo ao longo de sua vida.

            A preocupação de quem produz o alimento industrializado está relacionada com a origem da matéria-prima e com a maneira como é produzida. Os mecanismos de mercado introduzidos para fornecer esta informação são as denominações de origem, as indicações geográficas e as certificações. Além da origem, os produtores de alimentos procuram informar ao consumidor como este é produzido, e se o sistema de condução respeita questões ambientais e sociais.

            A qualidade do alimento não mais se limita a uma boa visualização, mas diz respeito também a sua qualidade nutricional e a seus efeitos sobre a saúde. Alimentos sem resíduos de agrotóxicos, sem presença de antibióticos, sem estimuladores de crescimentos e com certificados são considerados diferenciados e com agregação de valor.

            Nesse contexto, o comércio e a distribuição de alimentos estão passando por mudanças de exigências, com crescentes regulações qualitativas que podem construir barreiras não-tarifárias à entrada de produtos de um país para outro. Dessa forma, os produtores rurais estão, juntamente com o governo de seus países, procurando formas de valorizar seus produtos para adequá-los a esta nova configuração do perfil da demanda. Esses produtores buscam construir a institucionalidade desses mercados regulados pela qualidade. E os instrumentos presentes no mercado são a denominação de origem, as certificações e a indicação geográfica.
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1MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO – MAPA. Intercâmbio comercial do agronegócio 2008. Brasília: MAPA, 2008. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/portal/page?_pageid= 33,6157747&_dad=portal&_schema=PORTAL> . Acesso em: 4 fev. 2009.

2FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS - FAO. The State of Food Insecurity in the World 2004. Roma: FAO, 2004. Disponível em: <http://www.fao.org/docrep/007/y5650e/y5650e00. htm>. Acesso em: 2009.

3FRAGATA, A. Elementos para elaboração social e técnica da qualidade dos produtos agrícolas tradicionais. In: Congresso de estudos rurais, 1., 2001, Portugal. Anais eletrônico... Disponível em: <http://home. utad.pt/~des/cer/CER/CONTEUDO/05C.HTM>. Acesso em: 2009.

4INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL - NPI. O que é Indicação Geográfica? Disponível em: <http://www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/indicacao/o-que-e-indicacao-geografica>. Acesso em: 9 fev. 2009.

5VAN DE KOP, P.; SAUTIER, D.; GERZ, A. Origin-based products, lessons for pro-poor market development. Amrstedam: Royal Tropical Institute/CIRAD/French Agricultural Research Centre for International Development, 2006. (Bulletin, 372).

Palavras-chave: globalização, alimentos, consumo.

 

Data de Publicação: 18/06/2009

Autor(es): Geni Satiko Sato (sato@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor