Novo Código Florestal:uma lei Frankenstein

        A novela do novo Código Florestal ganhou mais um importante capítulo, mas pode ainda não ter chegado ao seu fim.
 

            Os vetos anunciados pela presidente da República corroboraram o dissenso entre ela e o Congresso Nacional percebido anteriormente, o que não contribuiu para desanuviar o ambiente.
 

            Na verdade, os vetos suprimiram partes da Lei 12.651/12 (novo Código Florestal, editado em 25 de maio) que, posteriormente, sofreu sensíveis alterações pela Lei 12.727/12 e foi regulamentada, em parte, pelo Decreto 7.830/12, emanado do Poder Executivo.
 

            O novo código manteve antigos problemas de ordem técnica, destacados a seguir que, se não forem sanados futuramente por outros diplomas legais, deverão fazer parte da 'lição de casa' dos estados, para tornar possível sua aplicação:

    • A proteção efetiva dos bens ambientais, notadamente os corpos d’água;
    • A eficácia da conservação da biodiversidade;
    • O financiamento da política pública.


            A definição de metragens para a proteção das margens dos rios1 foi elaborada de modo uniforme para todo o País, agravada pela chamada 'escadinha', sem considerar peculiaridades de cada bioma ou de cada bacia hidrográfica ou ecossistema, e piorando, se é que é possível, o antigo código.
 

            O absurdo técnico da 'escadinha' (regulamentada no decreto)2 é querer colocar a preservação de um bem ambiental em função de um parâmetro socioeconômico. Se o curso d’água precisa de uma proteção de 30 metros em cada margem, não é o fato de uma propriedade que o margeia ser considerada pequena que faz com que essa proteção passe a ser de 5 metros. Ou se precisa de 30 ou de 5 metros!
 

            Se forem várias propriedades pequenas, uma ao lado da outra (caso de um assentamento), valem os 5 ou os 30 metros? E há quem defenda essa aberração tecnicamente.
 

            Se a necessidade de proteção fosse feita caso a caso, eliminava-se essa questão e o bem ambiental que se quer preservar ficaria eficazmente protegido. Como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) será feito para cada propriedade, essa questão poderia ser resolvida nessa fase dos procedimentos.
 

            Além do mais, a definição da reserva legal (RL), por propriedade cientificamente não é adequada, pois desconsidera tanto os tamanhos das propriedades como, também, o esgotamento da fronteira agrícola, passando, por sua vez, o ônus da recuperação ao agricultor, que outrora foi incentivado por políticas governamentais a desbravar.
 

        Indiretamente, passa a ser, portanto, mais um imposto suplementar a cargo dos produtores rurais.
 

            Remeter ao produtor rural a incumbência de gerir uma política pública, além de injusto tributariamente, implica em dois aspectos potencialmente negativos. Em primeiro lugar, a imensa maioria dos produtores é composta de médios e pequenos (84% em São Paulo), com condições precárias de acesso às sofisticadas e custosas tecnologias de recuperação ambiental. Em segundo lugar, deixar a política de regeneração/recuperação ambiental por conta e risco desses agentes é apostar no seu fracasso, já que não poderão contar nem com assistência técnica especializada, dado o número de propriedades envolvidas (273 mil), e muito menos com os custos de recuperação ambiental (por volta de R$10.000,00 por hectare).
 

            Daí a necessidade de que a implantação dessas RLs, para que se tornem de fato relevantes ambientalmente, seja objeto de uma política pública tecnicamente muito bem delineada e implementada pelo próprio Estado.
 

            Cálculos preliminares e ainda aproximados estimam que o Estado de São Paulo teria que recuperar uma área de cerca de 1 milhão de hectares, ou quase 5% da área agrícola estadual. Por que não incorporar áreas equivalentes como reservas à rede de unidades de conservação do próprio Estado, utilizando mecanismos inovadores baseados no pagamento de serviços ecossistêmicos aos produtores e proprietários rurais engajados no programa?
 

            Dados dos Levantamentos Censitários das Unidades de Produção Agropecuária (LUPAs) do Estado de São Paulo, realizados em 1996 e 2007, permitiram estimar que a área florestal nativa no Estado cresceu 150 mil hectares nos dez anos que permearam os dois levantamentos (Tabela 1). Dados do inventário florestal feito pelo Instituto Florestal, da Secretaria Estadual do Meio Ambiente de São Paulo, fornecem valores ainda maiores, apontando para um crescimento de quase 400 mil hectares entre os dois últimos levantamentos, mesmo feitas as devidas ressalvas metodológicas. O fato é que São Paulo está em plena transição florestal3, como aconteceu com todos os países desenvolvidos.
 

Tabela 1 - Áreas das Unidades de Produção Agropecuária (UPAs), Vegetação Nativa e a Recuperar, São Paulo, 2012

LUPA

ÁREA
UPAs
Veg. nat.
(C)

20 % RL

Recuperar
(A)
(B)

(D=0,2XA)

(D-C)

1995/1996 (1)

1.000 ha
%
1.000 unid.
%
1.000 ha
%
1.000 ha
1.000 ha

UPAs

19.999,0
100
277,0
100
2.779,0
100
3.999,8
1.220,8

Até 4 MF1

4.968,0
25
227,0
82
436,6
16
993,6
557,0

Mais 4 MF1

15.031,0
75
50,0
18
2.143,4
77
3.006,2
862,8

2007/2008 (2)

UPAs

20.504,0
100
324,0
100
2.928,0
100
4.100,8
1.667,8

Até 4 MF1

5.587,0
27
273,0
84
486,2
17
1.117,4

Mais 4 MF1

14.917,0
73
51,0
16
2.242,8
77
2.983,4
960,4

Cresc. (2/1)

505,0
47,0
149
101

¹MF:  módulos fiscais. Art. 61-A, da Lei 12.651/12.    

Fonte: Elaborada pelos autores a partir de dados do IEA.



            Observou-se também que as mudanças no atual código acabaram por reduzir a área a ser recuperada como RL, já que permite a contagem das áreas de preservação permanente (APP) no cômputo dos 20%, além de flexibilizar o estabelecimento dessas reservas em locais fora da propriedade, respeitado o bioma. É óbvio que essa regra tem condicionantes para sua aplicação, o que faz com que as áreas de RL possam crescer bastante.
 

            Ademais, estados como São Paulo, com fronteira agrícola já consolidada há quase 40 anos, jamais terão recuperada sua biodiversidade primitiva, notadamente em nível de propriedade, como querem os defensores da reserva individualizada. A biodiversidade primitiva, uma vez degradada, não se recupera ao que era. Isso é uma falácia técnica. Ela volta a reconstituir-se em outra coisa e, portanto, diferente da original e, para que seja relevante do ponto de vista ambiental, é necessário que seja tratada como tal. Isso quer dizer que precisam ser respeitadas algumas precondições teóricas que devem ser levadas em conta em relação a áreas de conservação4.
 

            De qualquer forma, a lei editada, com seus prós e contras, é um marco regulatório necessário, diminuindo, de certa forma, a insegurança jurídica, e relegando ao Poder Judiciário a decisão sobre o arbitrado pelos agentes fiscalizadores.
 

            Há de se esclarecer que o decreto foi editado para regulamentar a lei, estando, portanto, sempre em função dela e possibilitando sua execução.
 

            A Constituição Federal prevê a edição dessa forma de decretos que têm como pressuposto a existência de uma lei.
 

            O decreto deve se restringir aos limites e ao conteúdo da lei, detalhando-a, não estando autorizado, portanto, a ampliar ou contrariar a lei.
 

            Há definições ainda em aberto no novo Código Florestal que poderão ser regulamentadas por novos decretos e também por normas próprias de cada estado ou mesmo serem contestadas juridicamente.
 

            A revisão técnica do código é fundamental. Porém, até que isso aconteça, os entes federados poderiam adaptar, de forma inteligente e criativa, a atual lei aos seus propósitos conservacionistas.
 

            O Estado de São Paulo, por exemplo, deveria fazer um esforço institucional para unificar suas informações estatísticas a respeito das florestas, atualmente produzidas pelas Secretarias de Agricultura e Abastecimento e do Meio Ambiente. Poderia disponibilizar para os produtores rurais, por meio das citadas pastas, instrumentos já existentes, como as fotos aéreas, as imagens de satélite, o georreferenciamento expedito, as cartas de declividade, as cartas do inventário florestal que permitam delimitar as APPs e os remanescentes florestais em nível de propriedade rural, facilitando os cálculos e as exigências para o CAR.
 

            Ainda para auxiliar no CAR e facilitar análises de percentuais de reserva legais e aplicação da 'escadinha', deveriam ser disponibilizados nas Casas de Agricultura mosaicos com as fotos aéreas de 1962 até 1965, que permitissem verificar quais propriedades já haviam sido desmatadas antes dessa época.
 

            A iniciativa mais importante, no entanto, seria a do Estado assumir as reservas legais como uma política pública articulada e pagando por serviços ecossistêmicos aos produtores envolvidos.
 

            A estimativa é de que em 20 anos essa política esteja efetivada, valendo-se de instrumentos adequados para o setor e a um custo social perfeitamente financiável.
 

            A proposta de criação de comissão técnica para rever as anomalias da lei e fazer as adaptações regionais cabíveis é urgente e necessária. Tem-se notícia que no Congresso Nacional já se propôs a criação de um grupo de trabalho interministerial para acompanhar a
regulamentação e a implementação da nova lei. Sugere-se também a criação de grupo de trabalho nos estados – envolvendo órgãos das secretarias estaduais, prefeituras, universidades e representantes da sociedade civil.

______________________________________________________________
1Art. 4, Inciso I, da Lei 12.651/12 - BRASIL. Lei 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nos 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial da União, maio 2012. Disponível em: <http:// http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/1032082/lei-12651-12>. Acesso em: out. 2012.

2Art. 19, parágrafos 1º ao 7º do Decreto 7.830 de 2012. BRASIL. Decreto 7.830, de 17 de outubro de 2012. Dispõe sobre o Sistema de Cadastro Ambiental Rural, o Cadastro Ambiental Rural, estabelece normas de caráter geral aos Programas de Regularização Ambiental, de que trata a Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012, e dá outras providências. Diário Oficial da União, out. 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7830.htm>. Acesso em: out. 2012.

3FARINACI, J. S. Transição florestal e modernização ecológica: afinidades teóricas, críticas e perspectivas. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM AMBIENTE E SOCIEDADE (ANPPAS), 5., 2010, Florianópolis. Anais... Pará: ANPPAS, 2010. Disponível em: <http://www.anppas.org.br/encontro5/cd/resumos/GT10-284-196-20100519213157.pdf>. Acesso em: 31 out. 2012.

4CASTANHO FILHO, E. P.; SCHWENCK JUNIOR, P. M. Florestas e zonas de amortecimento das unidades de conservação. Florestar Estatístico, São Paulo, v. 8. n. 17, p. 17-24, jul. 2005.
 

Palavras-chave: Código Florestal, política pública, legislação.

 


 

Data de Publicação: 09/11/2012

Autor(es): Eduardo Pires Castanho Filho (castanho@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
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