Produtos lácteos: alterações no consumo pós-Plano Real

            O mercado brasileiro de lácteos expandiu-se significativamente a partir do Plano Real, fato que levou ao 'acirramento da concorrência que se verifica pelo lançamento freqüente de novos produtos e pela busca incessante por consolidação de marcas. O domínio de novos processos tecnológicos, o uso de plantas industriais com capacidade mais elevada e o investimento significativo em marketing têm sido exigências para a sobrevivência das firmas que atuam nessa área'1.
            O consumo de leite fluído (em litros por habitante por ano) no Brasil apresentou trajetória ascendente no período em que prevaleceu o regime de câmbio administrado (1995 a 1998), passando de 67,6 l/hab./ano, em 1995, para 75,8 l/hab./ano em 1998. A partir de então, com a mudança do regime cambial no início de 1999, observa-se constante declínio até atingir 72,7 l/hab./ano em 20022 (tabela 1)3

Tabela 1 - Consumo de leite fluido, Brasil, 1995 a 2002

Ano
Consumo (em l/hab./ano)
1995
67,6
1996
69,0
1997
72,3
1998
75,8
1999
74,4
2000
73,4
2001
72,6
2002
72,7
Fonte: Elaborada pelos autores a partir de dados do ANUALPEC (1999, 2001, 2003)

            No entanto, ainda assim, o consumo per capita no período de desvalorização cambial pós-Plano Real foi superior ao do período que antecedeu o plano de estabilização econômica, pois em 1993, ano com elevadas taxas de inflação, o consumo foi de apenas 51,2 l/hab./ano. Em termos de taxa de crescimento, o consumo de leite per capita no Brasil, no período de 1995 a 2002, apresentou-se positivo, embora com reduzida magnitude, em cerca de 0,94% ao ano. Já no período mais curto, de 1995 a 1998, o consumo de leite per capita cresceu 3,98% ao ano. Porém, entre 1999 e 2002, o consumo de leite per capita decresceu em torno de 0,80% ao ano.
            Importantes alterações foram observadas no ambiente competitivo envolvendo empresas do segmento alimentício, com ênfase nas empresas ligadas ao setor de produtos lácteos. Elas resultam da elevação do nível de renda per capita e também nos preços da maior parte dos produtos à base de leite no município de São Paulo entre as décadas de 70 e 90.4
            Verificou-se, por parte das empresas de produtos lácteos, a utilização de estratégias mercadológicas embasadas em concorrência extrapreços, tais como diferenciação de produtos e ampliação do leque de produtos oferecidos aos consumidores, tanto quantitativa quanto qualitativamente, além da divulgação dos respectivos atributos nutricionais via campanhas de marketing, as quais visavam induzir o deslocamento positivo das curvas de demanda desses produtos.
            Assim, houve expressivo crescimento não somente no consumo de queijos como também em relação à variedade de seus tipos colocados no mercado à disposição dos consumidores. Os produtos de maior valor agregado e de processo mais elaborado foram os preferenciais.1
            O consumo de leite fluido pós-Plano Real também sofreu alterações relevantes quanto à predileção dos consumidores brasileiros. Em 1990, o consumo de leite tipo longa vida5 correspondia a apenas 4,3% do mercado, já, o de leite tipo C era de 86,7%.6
            Os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE)7, relativa a 1998/99 para a cidade de São Paulo, mostram a liderança do consumo de leite longa vida (61,7%). Em seguida, aparecem leite tipo B (24,1%), leite especial/ensacado (tipo C) (12,9%) e leite tipo A (1,3%) (tabela 2). Esses números refletem uma mudança acentuada no perfil de consumo do leito fluido, pois, praticamente, num período de quase uma década a variedade mais consumida passou a ser o leite longa vida, enquanto o leite tipo C caiu para a terceira colocação.

Tabela 2 - Quantidade média consumida por mês de leite por domicílio em litros por uma família de tamanho médio, independente da faixa de renda, cidade de São Paulo, 1998/99

Produto
Consumo domiciliar em l
Participação %
Acumulado
Leite Longa Vida
9,1
61,7
61,7
Leite Tipo B
3,6
24,1
85,8
Leite Especial (tipo C)
1,9
12,9
98,7
Leite Tipo A
0,2
1,3
100,0
Total
14,7
100,0
-
Fonte: Elaborada pelos autores a partir de dados da POF/FIPE 1998/99

            Ao considerar uma família de tamanho médio8, com faixa de renda entre 6 e 10 salários mínimos, observa-se que há predominância do consumo do leite longa vida, que representa quase 60,0% do total dos vários tipos de leite consumidos na cidade de São Paulo. Em seguida, destaca-se o leite tipo B, com 24,8% do total consumido. O leite tipo C ocupa o terceiro lugar em termos de consumo, com apenas 15,6%, enquanto a participação percentual do leite tipo A, em termos percentuais, é praticamente insignificante, cerca de 0,48% (tabela 3).

Tabela 3 - Quantidade média consumida por mês de leite por domicílio em litros por uma família de tamanho médio na faixa de renda de 6 a 10 salários mínimos1, cidade de São Paulo, 1998/99

Produto
Consumo domiciliar l
Participação %
Acumulado
Leite Longa Vida
8,6
59,1
59,1
Leite Tipo B
3,6
24,8
83,9
Leite Especial (tipo C)
2,3
15,6
99,5
Leite Tipo A
0,1
0,5
100,0
Total 6 a 10 SM
14,6
100,0
-
1 A renda média na cidade de São Paulo encontra-se no estrato de 6 a 10 salários mínimos conforme pesquisa Origem e Destino realizada pela Companhia do Metropolitano de São Paulo (1987)9
Fonte: Elaborada pelos autores a partir de dados da POF/FIPE 1998/99

            Paralelo à mudança no hábito de consumo de leite, outro aspecto relevante foi a alteração estrutural relativamente aos seus canais de comercialização. No período que antecedeu ao Plano Real, 'as padarias ocupavam ponto central nas vendas. Além de apresentarem mark up10 não inferior a 5%, principalmente no caso dos leites tipo B e C, contavam com a cessão de freezer pelas firmas laticinistas. Além disso, como o produto apresenta reduzido prazo de validade, elas arcavam com o prejuízo dos produtos que não eram vendidos pelo varejo ou eram recusados por ter a embalagem (sacos de um litro) perfurada. A redução do tamanho das famílias, a crescente adoção de hábitos da vida moderna e o surgimento do mercado do leite longa vida desobrigaram o consumidor a adquirir diariamente o leite fluido. Em conseqüência, os supermercados, pós Plano Real, têm deslocado cada vez mais as padarias da posição de principal canal de comercialização do produto, tendo crescido a importância deles no abastecimento alimentar, aliada a uma atuação mais profissional, com giro rápido de estoque e ganhos de escala no processo de distribuição'1.
            Com base nos dados da POF FIPE 1998/99, verifica-se que há predominância de vendas do leite tipo longa vida em supermercados, com 83,1% do total de leite comercializado na cidade de São Paulo, contra 13,5% vendido nas padarias. Para os demais tipos de leite fluido, a padaria continua a ser o principal equipamento de venda varejista. Cerca de 79,6% do leite tipo B e 77,2% do tipo C são comercializados nas padarias, enquanto somente 12,7% do tipo B e 16,4% do tipo C são vendidos em supermercados.
            Para o leite tipo A, as vendas em padarias ocorrem numa proporção menor (55,8%) em relação aos outros dois tipos de leite (B e C), enquanto em supermercados sua proporção é maior (30,0%). É necessário frisar que o leite longa vida responde por mais de 60,0% do total de leite consumido na cidade de São Paulo, independentemente da faixa de renda (ver tabela 2), apesar de as padarias dominarem a venda dos leites fluidos refrigerados, tipos B, C e A.

Tabela 4 - Participação percentual dos principais equipamentos de compra de leite fluido sem distinção de faixa de renda, cidade de São Paulo, 1998/99

Produto
Local de compra
Participação percentual
Leite Longa Vida
Supermercado
83,1
Padaria
13,5
Outros
3,4
Leite Tipo B
Padaria
79,6
Supermercado
12,7
Outros
7,7
Leite Tipo C
Padaria
77,2
Supermercado
16,4
Outros
6,5
Leite Tipo A
Padaria
55,8
Supermercado
29,9
Outros
14,3
Fonte: Elaborada pelos autores a partir de dados da POF/FIPE 1998/99

            Portanto, pode-se inferir que fatores em nível macroeconômico, tais como a ampliação do grau de abertura da economia brasileira no decorrer da década de 90, a estabilização econômica proporcionada pela implementação do Plano Real e a constituição do Mercado do Cone Sul (MERCOSUL), induziram o redesenho institucional e a desregulamentação do setor de produtos lácteos.
            Estas mudanças institucionais se refletiram no ambiente econômico tanto pelo lado da oferta quanto pelo da demanda, alterando o comportamento estratégico das empresas do setor de lácteos. Estas empresas, além de adotar uma política de introdução de novos produtos, também passaram a acentuar a diferenciação de produtos via investimentos em campanhas publicitárias.
            Estes fatos podem ser constatados através do aumento no consumo de diferentes tipos de queijos, o qual traduz o acirramento da concorrência extrapreços entre as empresas do setor. A mais importante mudança residiu na alteração do consumo do leite fluido refrigerado para o leite longa-vida, que em termos nutricionais não representa tanto impacto. Porém, influi na forma de aquisição por parte do consumidor, elevando a praticidade e evitando, dessa forma, a necessidade de aquisição diária do produto.
            Sob o aspecto logístico, significa quase que uma revolução com efeitos principalmente nos canais de distribuição da cadeia, na forma de comercialização e na capacidade das empresas de laticínios de gerir sua produção ao longo do ano. Dessa forma, beneficiam-se os consumidores em função do acirramento da competição entre as empresas e da ampliação da variedade de produtos introduzidos no mercado.

1 MARTINS, Paulo do C. Efeitos de políticas públicas sobre a cadeia produtiva do leite em pó. In: Cadeias produtivas no Brasil. Análise da competitividade / editores-técnicos Rita de Cássia Milagres Teixeira Vieira; Antônio Raphael Teixeira Filho; Antônio Jorge Oliveira ...[et al.]. – Brasília: Embrapa Comunicação para Transferência de Tecnologia / Embrapa. Secretaria de Administração Estratégia, 2001. 469p.
2 Os valores relativos a 2002 são estimativas.
3 ANUÁRIO DA PECUÁRIA BRASILEIRA - ANUALPEC 99. São Paulo: FNP & Consultoria, 1999. p. 281. ANUÁRIO DA PECUÁRIA BRASILEIRA - ANUALPEC 2001. São Paulo: FNP & Consultoria, 2001. p. 223. ANUÁRIO DA PECUÁRIA BRASILEIRA - ANUALPEC 2003. São Paulo: FNP & Consultoria, 2003. p. 240.
4 MACHADO, F. M. S. Estratégias de concorrência da indústria alimentícia e seus desdobramentos na dimensão nutricional, 2003. 200 p. Tese (Doutorado em Nutrição Humana Aplicada – PRONUT) -Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.
5 Processo UHT (Ultra High Temperature) ou UAT (Ultra Alta Temperatura) de ultrapasteurização é o processo que consiste em elevar a temperatura do leite, homogeneizado, de 135 ºC a 150 ºC no curto tempo de 2 a 4 segundos, sendo resfriado instantaneamente. O resultado é a destruição completa de todos os microrganismos que possam se desenvolver nos alimentos, conferindo ao produto maior tempo de prateleira e dispensa da conservação a frio, caracterizando por fim o Leite Longa Vida. De acordo com ODILON, L.; NAKAMURA, A. Tecnologia e Processos Impulsionam o Setor Lácteo. Leite & Derivados, Porto Alegre, v.10, n.55, p.48-57, nov./dez. 2000.
6 GOMES, S.T.; VILELA, D.; CALEGAR, G.M. Transformações da cadeia produtiva do leite no Brasil. Viçosa, MG: UFV/Departamento de Economia Rural, 1997. 20p. Citado por MARTINS (2001).
7 FIPE: www.fipe.com.br
8 Maiores detalhes acessar www.dieese.org.br/pof/pof2.xml
9 COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO – METRÔ. 1990. Pesquisa Origem e Destino 1987: Região Metropolitana de São Paulo, Síntese das informações / Coord. Pela Companhia do Metropolitano de São Paulo – METRÔ. São Paulo: METRÔ, 1990. 80P. il.
10 Grifo nosso. O mark up (ou margem) é representado pela seguinte expressão matemática: (PCMg)/P, onde P é o preço do produto e CMg é o seu respectivo custo marginal de produção. Quanto mais elástica for a demanda pelo produto de determinada firma, ou seja, quanto mais produtos substitutos estão à disposição dos consumidores, menor será o poder da firma para fixação de preço e menor será seu mark up. Contrariamente, quanto menos produto substituto no mercado, menor será sua elasticidade e maior o poder de monopólio da firma, e conseqüentemente, ela poderá estabelecer um mark up mais elevado. PINDYCK, Robert S.; RUBINFELD, Daniel L. Microeconomics. United States of America: Prentice Hall. Fifth edition. 2001. 700p.

Data de Publicação: 03/11/2004

Autor(es): Vagner Azarias Martins (vagnermartins@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Mario Antonio Margarido (mamargarido@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
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