Pimenta, castanha e mel: primeiras vítimas da ausência de rastreabilidade

            Nos mercados mundiais de alimentos e bebidas, surgem, de maneira progressiva, em vários países medidas que visam proteger consumidores de eventuais danos à saúde, eventualmente decorrentes da ingestão de produtos que possuam resíduos e/ou contaminantes maléficos à saúde humana. Revestidos de preocupações com seus cidadãos - muitos especialistas crêem que tais barreiras são erguidas apenas com o intuito de proteger mercados domésticos - tais restrições estão se tornando e deverão ser ainda mais limitantes ao comércio internacional, notadamente entre os países do eixo Sul-Norte.
            Os surtos de epizootias - o mal da vaca louca; a gripe aviária asiática; a febre aftosa em bovinos; a contaminação de ovinos por dioxina e a peste suína, entre outros problemas sanitários1 - conferiram enorme preocupação às autoridades governamentais quanto à necessidade de estabelecer regulamentos sumamente estreitos para o acesso de alimentos aos seus mercados. Na realidade, as autoridades sanitárias dos diferentes países reverberam o eco provindo da população leiga no assunto que, nalguns casos, avança para o estado de pânico diante dessas novas ameaças à saúde.
            A crescente exigência de rastreabilidade dos produtos da agricultura brasileira, por parte dos principais clientes internacionais, tem implicado também na necessidade de certificação de laboratórios especializados e no desenvolvimento de refinados métodos e para o controle da existência de resíduos e/ou contaminantes. O desenvolvimento tecnológico não cessa e muitas legislações sanitárias já solicitam laudos que avaliem resíduos na dimensão da parte por bilhão2. Em muitos países, os laboratórios sequer são capazes, com os equipamentos a eles atualmente disponíveis, de realizar análises em partes por milhão.
            Diante desse quadro sumamente desfavorável aos países em desenvolvimento e agroexportadores, compete às autoridades, em sintonia com os diversos segmentos do agronegócio3, estabelecer protocolos visando ao alcance da garantia de que os processos conduzidos na obtenção de determinado produto estejam em concordância com as boas práticas agronômicas ou de manejo das culturas e das criações. Além disso, há a necessidade de emancipação dos procedimentos laboratoriais à condição de serviços especializados, enquanto um ramo de atividade econômica de suporte às teias de agronegócios da agricultura. Políticas de investimento em logística laboratorial devem ser estruturadas, dentro da concepção de redes laboratoriais de certificação de qualidade.
            A inclusão da prerrogativa de exigência crescente de qualidade superior certificada, ao lado da produtividade, coloca a análise laboratorial na condição de insumo produtivo de uso rotineiro e não mais apenas episódico. O progresso técnico, necessário à atual quadra de desenvolvimento da agricultura como teia de agronegócios entrelaçando culturas dentro de cadeias de produção, apresenta uma amplitude que vai para muito além de sementes, máquinas e técnicas culturais. Exige a qualidade certificada. Com isso, é preciso ser erigido um sistema compatível de certificação, para ofertar o insumo representado pelas análises laboratoriais, cuja aferição determina a formação de redes laboratoriais de certificação de qualidade.
            Para isso, há que se romper com o monopólio público para dar conta da demanda a custos compatíveis, formatando parcerias entre as estruturas públicas e privadas. Ao emancipar a análise laboratorial da condição subalterna dos laboratórios de pesquisa das universidades e instituições de pesquisa científica e tecnológica, surge a exigência de investimentos na edificação de sistema eficiente, como decorrência de novo aparato regulatório. Este deve envolver, também, nova relação público-privada para fazer valer os novos mecanismos de creditação; ou seja, compatibilizar monitoramento público da qualidade certificada com realização em escala de análises laboratoriais, mediante franquia e certificação de competência, nos laboratórios privados descentralizados nas mais distintas regiões produtivas e, portanto, mais próximos da demanda4. Apesar dessa necessidade da modernidade e da relevância da agricultura brasileira, pouco ou nada se fez na última década.
            O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) possui núcleo dedicado à criação de protocolos visando à certificação e à rastreabilidade de produtos agroalimentares. A metodologia dos chamados Programas Integrados tem obtido êxito comercial em algumas culturas em que foi empregada5. Mas avançou muito pouco na construção dos mecanismos regulatórios de uma rede nacional de laboratórios para certificação de qualidade, no sentido de ajustar os termos de uma necessária e específica modalidade de parceria público-privada em escala compatível com as exigências presentes e as perspectivas futuras das exportações da agricultura brasileira e mesmo para o acesso a alimento sadio no mercado interno.
            Ao contrário disso, o MAPA tem se perdido em ações episódicas que são tímidas frente ao desafio de alavancagem da competitividade externa dos produtos da agricultura nacional, além de enfrentar problemas depois que o estrago se mostra quase irreversível pela perda de mercados. Enquanto essa letargia persiste, a realidade nos atropela e surgem as primeiras vítimas do rigoroso sistema de controle para produtos agroalimentares implementado pela União Européia (UE): o mel, a pimenta do reino e a castanha de caju.
            No caso do mel, a diminuição no valor dos embarques para o mercado europeu monta a 60%, embora em volume tal redução tenha sido de 35% entre 2004 e 2005 (figura 1).

Figura 1 – Valor e volume das exportações brasileiras de mel, União Européia, 2000 a 20061

1 Somente primeiro semestre
Fonte: Instituto de Economia Agrícola (IEA), a partir de dados básicos do SECEX/MDIC

            Potencial para a presença de resíduos de agrotóxicos e a contaminação com antibióticos são as principais causas do arrefecimento das exportações de mel para a UE. Em 2006, persiste a tendência de queda nos embarques e nos valores apurados. No primeiro semestre desse ano, as exportações atingiram tão-somente 30% de todo o movimento de 2005 que foi menos do que metade daquilo que movimentou 2004. A incapacidade em fazer cumprir protocolos regulatórios, bem como a dificuldade em certificar produtos e processos envolvidos na cadeia de produção do mel, representa parcela importante da responsabilidade sobre a queda nas transações internacionais.
            Outro produto que começa a apresentar sinais de retração acentuada no comércio com a UE é a pimenta do reino. Desconfiança das autoridades sanitárias quanto à presença de toxinas cancerígenas de origem fúngica vem sendo apresentada na justificativa para a desaceleração dos embarques. Ainda que apenas contabilize o primeiro semestre do ano, a queda tanto no valor quanto no volume das exportações de pimenta em 2006 superou os 70% frente ao movimento do ano de 2005 (figura 2).

Figura 2 - Valor e volume das exportações brasileiras de pimenta do reino, União Européia, 2000 a 20061

1 Somente primeiro semestre
Fonte: Instituto de Economia Agrícola (IEA), a partir de dados básicos do SECEX/MDIC

            O fechamento de mercados internacionais para o produto implica no redirecionamento do excedente para o mercado interno, que sem condições de absorver de imediato tal oferta acabará por pressionar os preços para baixo. E em algum momento esse fenômeno se transmitirá para os produtores rurais que verão seus rendimentos encolherem, acentuando o problema de perda de renda.
            Por fim, o último produto dessa lista selecionada, que atravessa período de agruras no comércio com a UE, é a castanha de caju. Questões sanitárias similares as que afligem o comércio da pimenta do reino incidem também sobre a castanha; ou seja, contaminação fúngica com potencial cancerígeno6. No período considerado, as exportações de castanha para a UE vinham apresentando razoável crescimento. Porém, no primeiro semestre de 2006, ocorreu reversão dessa tendência, sendo bastante provável que se verifique algum declínio nas exportações para aquele mercado (figura 3).

Figura 3 - Valor e volume das exportações brasileiras de castanha de caju, União Européia, 2000 a 20061 


1 Somente primeiro semestre
Fonte: Instituto de Economia Agrícola (IEA), a partir de dados básicos do SECEX/MDIC

            Essa terceira vítima do atraso institucional na regulação da certificação de qualidade de produtos e processos constitui-se na principal fonte de renda para milhares de famílias pobres da zona rural brasileira, em especial no semi-árido nordestino, sumamente carentes em atividades que revertam em renda adicional para minimizar as agruras de suas parcas existências.
            Os casos dos produtos selecionados ajudam a delinear cenários para o futuro das relações comerciais internacionais em relação aos produtos agroalimentares. Barreiras técnicas de escopo sanitário serão determinantes na edificação dos marcos regulatórios dessas transações.
            Outros mercados igualmente fundamentais para o agronegócio brasileiro também lançam protocolos bastante restritivos para a presença de resíduos e contaminações. No caso do café, em particular, muitos defensivos de ampla utilização poderão ter sua utilização banida em decorrência da persistência de resíduos produto7.
            A questão crucial está na superação da intervenção governamental episódica, com a estruturação de marcos regulatórios mais amplos que avancem para além do envolvimento de tópicos típicos do velho modelo estatal, esgotado desde o final da década de 1970. O Governo atua como "bombeiro" em crises instaladas e não como ordenador do marco regulatório para minimizar conflitos e oferecer segurança jurídica. Por exemplo: quando surge a aftosa e se tenta corrigir o SISBOV; e quando aparecem os transgênicos e se cria no atropelo a especificidade da lei de organismos geneticamente modificados (OGM) com operacionalidade discutível.
            Mas tem faltado reflexão em profundidade sobre tais temas que envolva a definição de normas estruturantes para a regulação de produtos e processos numa perspectiva de concepção ampla. Isto exige a edificação de nova institucionalidade da agricultura com desenho explícito de parceria público-privada. Laboratórios públicos, à similaridade de outros insumos como as sementes selecionadas, deveriam desenvolver, aprimorar e difundir novos métodos e técnicas laboratoriais, franqueando o uso e monitorando mediante selo certificador as redes laboratoriais privadas.
            Perdeu-se tempo na ideologia do debate sobre transgênicos e no fim produziu-se uma lei imperfeita e truncada, enquanto persistem procedimentos impróprios para a regulação dos defensivos agropecuários. Há que se avançar na construção do novo aparato regulatório e institucional, "des-satanizando" assuntos e rompendo com a evolução típica de sociedade de história lenta, cujo passado insiste em pautar o futuro. Nessa toada... a agricultura brasileira pode perder o bonde da história e ficar peada para acompanhar a realidade que rompe horizontes na velocidade de trem-bala.8

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1 Os surtos epidêmicos ocorreram em diversas regiões e países. Ficaram gravadas as cenas de abate e deposição em valas dos animais com probabilidade de estarem contaminadas com o mal da vaca louca no Reino Unido; recentemente, da febre aftosa na Argentina e no Brasil e da peste suína na Alemanha. Preocupante também é a influenza aviária, que possui potencial para se tornar uma pandemia para a espécie humana.
2 Recentemente, o Governo do Japão, estabeleceu limites para resíduos clorados em café verde em ppb. A faixa de tolerância é tão ínfima que sequer existem estudos avaliando o grau de confiabilidade dos métodos utilizados para medições de escala tão reduzida.
3 Carece de sintonia, também, o governo federal ao departamentalizar suas decisões quando o Estado moderno necessita de agências com competência para deliberar em assuntos multidisciplinares que versam sobre temas como saúde, meio-ambiente e agricultura.
4 Ver a discussão nesse sentido em GONÇALVES, José S. Qualidade certificada e rastreada como determinante da competitividade da agricultura: análise setorial como insumo do processo produtivo. Revista Informações Econômicas 35 (10):63-71, 2005.
5 A sistemática, já aplicada na cultura da maçã, ganhou grande repercussão nos mercados nacional e internacional. Em outros casos, como o do café, o protocolo encontra-se em fase de formalização em que a participação de especialistas nos mais diversos campos do conhecimento aplicado à cultura ainda se faz necessária.
6 Distúrbios climáticos também afetaram a oferta da castanha na última safra.
7 Estarão compondo essa lista de produtos condenados aqueles à base de metilcarbamato/albicarbe (Furadan e Temik) e endossulfan (Thiodan).
8 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-75/2006.

Data de Publicação: 07/08/2006

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Celso Luís Rodrigues Vegro (celvegro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor